Conceitos divergentes de populismo
Muitas vezes a mesma palavra é utilizada por diferentes pessoas com
diferentes significados e isto pode ser uma fonte de imensa confusão. O
Banco Mundial aproveitou-se bem disso, apossando-se de expressões que
estavam a ser utilizadas num sentido particular, especialmente pela esquerda, e
utilizando-as num sentido muito diferente, a fim de criar confusão
deliberada e explorar de alguma forma o sentimento simpático que a
expressão havia despertado na sua utilização inicial.
"Ajustamento estrutural" é um bom exemplo de tal
apropriação pelo Banco Mundial. Na sua utilização
inicial sugeria que a solução mercado era inadequada em
países do terceiro mundo e que, em alternativa, o que era
necessário era "mudança estrutural" associada a
mudanças nas relações de propriedade, tais como reformas
agrárias. Mas o Banco Mundial utilizou a expressão
"ajustamento estrutural" para dizer exactamente o oposto,
nomeadamente para evitar quaisquer mudanças em relações de
propriedade e para introduzir "mercados livres" por toda a parte.
A expressão "sociedade civil" utilizada por Hegel, e muitas
vezes mencionada por Marx, é outro exemplo óbvio. "Sociedade
civil" nos seus escritos era para ser distinguida do Estado e referia-se a
todo o conjunto das relações sociais (as quais de acordo com Marx
eram determinadas em última análise pelas relações
de propriedade dentro das quais a produção era executada). Mas
nos dias de hoje a expressão é utilizada essencialmente para
referir-se às ONGs, as quais são designadas como sento
"Organizações da Sociedade Civil".
Um destino muito semelhante está agora a ser experimentado,
infelizmente, pela palavra "populismo". Nos dias actuais a palavra
está a ser utilizada para mencionar a tendência para criar, ou
entregar-se a, um estado de espírito que é anti-elite,
anti-intelectual e é difundido com um certo maioritarismo irracional.
Portanto diz-se de Donald Trump que excita "populismo"; da
votação do Brexit diz-se reflectir sentimentos
"populistas". Em ambos os casos a referência é para o
ressuscitar de sentimentos racistas ou xenofóbicos entre um grupo
maioritário, sentimentos esses que podem ter estado dormentes
anteriormente ou repousarem dormentes por algum tempo, mas são agora
deliberadamente reatiçados. A palavra "populismo" nesta
utilização está próxima de palavras como
"fascismo", "semi-fascismo", "quase-fascismo" e
assim por diante. De facto, dado o contexto da crise económica que
atingiu duramente o povo e criou as condições para a
emergência do "populismo" neste sentido, e também o
facto de que promover um tal "populismo" invoca um
"nacionalismo" sem ao mesmo tempo tomar qualquer
posição explícita contra a hegemonia da finança, a
afinidade com "fascismo" é bastante forte.
Mas apesar de nestes dias a palavra "populismo" ser frequentemente
utilizada como um eufemismo para "fascismo" ou
"semi-fascismo", nem sempre foi assim. A agitação
jallikattu
, por exemplo, tem sido descrita como "populista". Se bem que tenha
algo em comum com o movimento estilo Trump, ela obviamente não classifica
um grupo particular de pessoas como "o outro" e portanto difere muito
de tais movimentos. Uma caracterização mais geral da palavra
"populismo" na sua utilização actual como anti-elite,
anti-intelectual, maioritarismo "irracional" parece portanto ser mais
adequada.
Isto contudo é muito diferente do modo como tradicionalmente a palavra
tem sido entendida na literatura marxista. "Populismo" aqui refere-se
não a um estado de espírito anti-intelectual entre o povo mas sim
a uma tendência intelectual muito específica, a qual encara o
povo, especialmente o campesinato, como um grupo mais ou menos homogéneo
ainda não dividido em classes e não experimentando qualquer
processo de diferenciação forte. Os
Narodniks
russos eram "populistas" neste sentido. Eles acreditavam que poderia
ser feito uma transição directa da comuna aldeã russa, o
mir
, para o socialismo sem passar por uma fase de desenvolvimento capitalista.
Vera Zasulich
, uma Narodnik importante, escreveu a Karl Marx a pedir sua opinião
sobre tal possibilidade.
Os Narodniks foram revolucionários. A tendência intelectual do
"populismo" que lhes é atribuída nada tem a ver com
qualquer fascismo, semi-fascismo ou quase-fascismo; eles eram
"populistas" apenas em contraste com os sociais-democratas: encaravam
o campesinato como uma força revolucionária de vanguarda em
oposição à classe trabalhadora que os sociais-democratas
viam como a força revolucionária principal. Eles viam o
campesinato como sendo indiferenciado e concebiam uma transição
directa do
mir
para o socialismo. Na verdade, muitos deles, Vera Zasulich inclusive,
posteriormente aderiram ao Partido Social-Democrata, bem como Plekhanov,
Axelrod, Lenin, Martov e Potressov, que estavam no conselho editorial do
Iskra,
o jornal dos sociais-democratas russos.
Lenine escreveu a sua obra clássica
O desenvolvimento do capitalismo na Rússia
como uma crítica intelectual à posição Narodnik.
Nessa obra ele argumentou, com base em estatísticas pormenorizadas, que
o capitalismo estava a desenvolver-se rapidamente na Rússia,
razão pela qual a velha
mir
russa havia-se desintegrado, dando lugar à diferenciação
entre o campesinato, e havia emergido uma classe trabalhadora que podia, como
em outros países capitalistas, proporcionar liderança à
Revolução Russa mesmo na sua fase democrática.
Os Narodniks e o fenómeno Trump estão portanto tão
afastados como a água do vinho. Nenhum conceito único pode
uni-los. Portanto, quando o termo "populismo" está a ser
utilizado para o fenómeno Trump, está a sê-lo num sentido
completamente diferente do seu uso ao descrever os Narodniks. Não
perceber esta distinção pode ser uma fonte de imensa
confusão nas fileiras marxistas.
A tendência intelectual do "populismo", tal como entendida na
literatura marxista, não se confinava apenas aos Narodniks dos tempos
antigos. Trata-se de uma tendência forte e persistente, especialmente
sociedades camponesas que ainda existem. Todas as teorias que enfatizam o
primado da contradição "campo versus cidade" caem
dentro desta categoria, uma vez que vêem um "campo"
indiferenciado a ser explorado por uma "cidade" indiferenciada. Mesmo
formas inflectidas, nas quais o primado da contradição
"campo versus cidade" aparece muitas vezes, tais como o "sector
organizado" a explorar o "sector desorganizado", ou o
"sector formal" a explorar o "sector informal", as quais
estavam muito em voga em certo momento quando a classe trabalhadora organizada
era vista como uma "classe privilegiada", uma beneficiária do
"intercâmbio desigual" imposto sobre o sector desorganizado
pelo sector organizado, pode em linhas gerais (ainda que discutivelmente) ser
classificada como pertencente a uma tradição
"populista".
Quando o desenvolvimento do capitalismo é fraco, tal como na
Rússia pré revolucionária (onde, não obstante as
obras de Lenine, não se pode negar que em comparação com a
Europa Ocidental a Rússia tinha um grau menor de desenvolvimento
capitalista), ou em economias coloniais, ou seja, quando a classe trabalhadora
é uma força pequena e a questão de ser ou não uma
"classe privilegiada" não é sequer muito relevante, a
tendência rumo ao "populismo", rumo à
percepção da sociedade em termos "campo versus cidade",
é particularmente forte. Na verdade, uma grande quantidade dos escritos
de Gandhi pode ser descrita como caindo dentro do género
"populismo" no sentido marxista.
Num período mais recente, o falecido V.M. Dandekar, o economista que
argumentou, com base nos escritos de J.K. Galbraith, que na Índia havia
o sector organizado, consistindo tanto de "capital organizado" como
de "trabalho organizado", o qual explorava o sector desorganizado,
pode-se dizer que pertencia a este género de "populismo". Tal
"populismo" no contexto indiano, entretanto, sempre foi inexacto
pois mesmo os trabalhadores organizados sempre foram um grupo
marginalizado e extinguiu-se completamente sob o impacto do
neoliberalismo: o facto de os "trabalhadores" como um todo terem sido
gravemente esmagados sob as novas condições torna qualquer
alusão ao primado das contradições "campo versus
cidade" obviamente inadequado.
Na própria Rússia, mesmo após a Revolução
Bolchevique, houve um ressuscitar da tradição
"populista", ou uma emergência do que tem sido chamado
"neo-populismo", nos escritos de A.V. Chayanov, o qual negava a
existência de qualquer tendência no sentido da
diferenciação entre o campesinato, argumentando ao invés
que as diferenças observadas na dimensão da propriedade
agrícola deviam-se a diferenças no tamanho familiar. Isto era
completamente contrário à tradição intelectual
marxista sobre a questão agrária, articulada entre outros por
Kautsky e Lenine, os quais viam a produção capitalista de
mercadorias dar origem a uma diferenciação dentro do campesinato
e a sua divisão numa classe proto-capitalista de camponeses risco, por
um lado, e uma classe semi-proletária de camponeses pobres, por outro
lado.
Toda esta linha de pensamento que é de uma tradição
intelectual séria, com a qual o marxismo tem estado em contínuo
enfrentamento e conflito, e à qual os marxistas geralmente compreenderam
como "populismo", deve ser distinguida dos movimentos estilo Trump
que estão a aparecer por todo o mundo na actual conjuntura e que
também está a ser descrita pela mesma palavra. Por outras
palavras, temos mais uma vez o mesmo termo a ser utilizado para descrever
fenómenos inteiramente diferentes; devemos estar em guarda contra a
possível confusão que isto possa gerar.
19/Fevereiro/2017
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2017/0219_pd/differing-concepts-populism
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|