Taxas de juro e utilização de papel-moeda
O capital financeiro sempre se opôs à utilização de
medidas orçamentais para estimular uma economia. Isto acontece porque
este estímulo orçamental mina a legitimidade social do
capitalismo e especialmente aquele segmento dele que constitui o mundo
da finança e que está povoado com "investidores
inúteis"
("functionless investors")
nas palavras de Keynes ou "cortadores de cupões" nas palavras
de Lenine, ou seja, de entidades que não desempenham qualquer papel no
processo de produção. Se a intervenção do Estado
chegar a ser vista como necessária para estimular a economia,
então pode-se levantar a seguinte questão na mente do
público: por que necessitamos nós destas entidades? Por que o
próprio Estado não assume o comando e dirige toda a economia
instituindo a propriedade pública?
O receio de que esta questão seja levantada faz com que o capital
financeiro se oponha à intervenção orçamental e
apoie apenas aquela intervenção do Estado que não destrua
a mística do capital e do capital financeiro em particular. Ele
só quer aquela forma de intervenção estatal de
estímulo à economia que promova o "incentivo a
investir" dos capitalistas, ou que opere através da
redução do custo do crédito para os capitalistas.
É por esta razão que o capital financeiro prefere antes a
utilização da política monetária para reviver uma
economia capitalista do que a utilização da política
orçamental. E uma vez que na actual era da globalização
temos capital financeiro que é
internacional
a confrontar-se com Estados que são
Estados-nação,
os últimos quer queiram quer não têm de aceder às
exigências da finança, razão pela qual a maior parte dos
países têm mesmo legislações de
"responsabilidade orçamental" que descartam um estímulo
orçamental, ao passo que a política monetária desfruta de
centralidade por toda a parte.
Contudo, na actual crise capitalista levanta-se uma situação
peculiar. Apesar de as taxas de juro na maior parte dos países
avançados terem sido empurradas para quase zero, tão sombria tem
sido a perspectiva dos capitalistas sobre o crescimento da procura que muito
pouco investimento tem surgido e, portanto, a crise continua a persistir. E
ainda assim, ao invés de aceitar a necessidade de estímulo
orçamental na presente conjuntura, porta-vozes da finança
têm argumentado que se deveria perseverar na política
monetária, mas que as taxas de juro deveriam ser conduzidas para
abaixo de zero
para ressuscitar o sistema.
Taxas de juro negativas, entretanto, exigem duas coisas, uma das quais é
fácil de alcançar mas a outra não. Os bancos têm
acesso a fundos de duas maneiras: a partir de depósitos feitos pelo
público e de empréstimos feitos pelo banco central. Se houver
taxas de juro negativas nos créditos concedidos eles terão de ter
acesso a fundos com taxas ainda mais negativas (de outro modo não teriam
lucros). Agora, os bancos centrais podem cobrar taxas de juro negativas aos
bancos sobre os empréstimos que eles fazem; isso é uma
questão de decisão política. E em países onde s
bancos centrais sã de propriedade do Estado (como na Índia, por
exemplo) e
os lucros do banco central simplesmente acrescentam-se ao orçamento do
governo, quaisquer perdas incorridas pelo banco central através da
cobrança de taxas de juro negativas, pelo menos sobre certos tipos de
empréstimos feitos a bancos, saem consequentemente do orçamento.
(Isto só ilustra incidentalmente que a oposição do capital
financeiro é a meios orçamentais de estímulo
directo
à economia, não à colocação do
orçamento ao serviço do capital).
O Banco Central Europeu desde há algum tempo tem estado a cobrar taxas
de juro negativas sobre empréstimos a bancos que posteriormente os usam
para certas espécies específicas de desembolso creditício.
Embora isto mal tenha qualquer impacto para reviver a economia, o
próprio facto da sua instituição mostra que taxas de juro
negativas neste sentido não são difíceis de
alcançar.
Mas se taxas de juro negativas tiverem de ser cobradas mais amplamente sobre o
crédito bancário, então deve haver taxas de juro negativas
também sobre depósitos bancários. Contudo, levanta-se aqui
um obstáculo: por que deveria alguém depositar papel-moeda
(cash)
nos bancos se tais depósitos produzem taxas de juro negativas? Seria
melhor aferrar-se ao próprio papel-moeda do que colocá-lo em
bancos que dão taxas de juro negativas.
Na verdade, manter papel-moeda traz algum risco, de roubo ou de perda por
outros modos, que os depósitos bancários evitam (excepto em
situações em que os próprios bancos correm o risco de
falência); mas isto pode levar as pessoas a aceitarem no máximo
uma taxa de juro muito pequena sobre o depósito a fim de compensar tal
risco. Portanto, de modo geral pode-se dizer que o papel-moeda pode ter uma
taxa de juro de quase zero, de modo que se depósitos bancários
produzissem taxas negativas então ninguém manteria
depósitos bancários. Dito de modo diferente, a
utilização de papel-moeda estabelece um piso em zero para as
taxas de depósito bancário e isto descarta taxas negativas
de concessão de empréstimos pelos bancos, as quais economistas
conservadores, reflectindo a oposição do capital financeiro ao
estímulo orçamental, acabaram por aceitar como sendo
necessárias para o ressuscitar do capitalismo.
A dificuldade de ter taxas de juro negativas sobre depósitos
bancários é ilustrada pelo caso da Suécia. Enquanto bancos
suecos introduziram taxas negativas sobre depósitos, o governo sueco
permite pagamentos por conta
(advance tax payments)
sobre os quais dá uma pequena taxa de juro positiva (cerca de meio por
cento). Devido a isto há um súbito inchaço da receita
fiscal do governo sueco, com a qual ele não sabe bem o que fazer. As
pessoas simplesmente comutaram da manutenção de depósitos
bancários para a manutenção de direitos sobre o governo na
forma de pagamentos antecipados. E uma vez que todo o objectivo de ter taxas de
depósito negativas é permitir aos bancos, onde tais
depósitos se acumulam, emprestar também a taxas negativas a fim
de estimular o investimento na economia, se os próprios depósitos
encolhem então este objectivo é claramente derrotado.
O caso sueco apenas ilustra a questão mais geral, nomeadamente que taxas
de depósito negativas, e portanto taxas de concessão de
empréstimo negativas pelo bancos numa escala generalizada, são
impossíveis na medida em que meios alternativos de manter poder de
compra que rendam uma taxa não negativa estejam disponíveis.
Mesmo se pagamentos antecipados de impostos ao governo, atraindo alguma taxa
positiva, não existissem, a simples manutenção de
papel-moeda que produz uma taxa zero, impediria qualquer reviver da economia
através de um regime de taxas de depósito negativas.
Assim, alguns economistas conservadores começaram agora a argumentar em
favor de uma abolição conjunta do papel-moeda. Proeminente entre
eles está um economista de Harvard, Kenneth Rogoff, que foi em tempos
economista chefe do FMI e que escreveu um livro chamado
A maldição do papel-moeda (The Curse of Cash)
a argumentar precisamente isto. Ele naturalmente não está a
pedir uma abolição do papel-moeda do dia para a noite; encara
isto como algo que deveria ocorrer ao longo de um período de tempo
razoavelmente prolongado. Mas a razão porque isto deveria ocorrer,
segundo ele, não é apenas a que é avançada
habitualmente, inclusive pelo governo indiano, nomeadamente que a
abolição do papel-moeda elimina transacções
não registadas e portanto reduz o âmbito do "dinheiro
negro". Uma importante razão, além desta, é que torna
possíveis as taxas negativas. Se o papel-moeda for simplesmente
eliminado do sistema e toda a gente for forçada a manter e transaccionar
em depósitos bancários, então taxas de depósito
negativas podem ser impostas ao povo sem que este seja capaz de fazer algo
acerca disto.
Deveriam ser notados três pontos quanto a este argumento. O primeiro
é o seu autoritarismo absoluto. O que equivale a dizer é que para
ressuscitar a economia capitalista de hoje deve ocorrer uma
comutação maciça da distribuição do
rendimento da generalidade do povo para os capitalistas, de modo que estes
últimos sejam "induzidos" a fazer investimentos. Não
só devemos nós ter capitalistas, e investimento pelos
capitalistas, como único meio de estimular a economia (e não o
gasto público), como também, para fazer com que os capitalistas
empreendam tal investimento, o povo tem de suportar seja qual for o sofrimento
necessário na forma de perdas de rendimento!
Isto é reificação com uma vingança. A
abolição do papel-moeda é advogada no "interesse
social", isto é, para a melhoria das condições do
povo. Para a sua própria "melhoria", portanto, o povo, de
acordo com este argumento, deve fazer seja quais forem os sacrifícios
necessários, de modo a que o reino dos capitalistas permaneça
imperturbável e incontestável.
O segundo ponto é que, mesmo com taxas de juro negativas, hoje é
improvável qualquer ressurreição da economia
capitalista mundial. Uma vez que o capitalismo moderno é dominado pelos
oligopólios, os quais investem só de acordo com o crescimento
esperado do mercado e cujo investimento é insensível à
taxa de juro, enquanto o mercado permanecer estagnado (precisamente por causa
desta crise) muito pouco investimento ocorreria, mesmo se houvesse um
rebaixamento da taxa de juro até à região negativa
e este mesmo facto perpetuaria a crise.
O terceiro ponto a notar é que mesmo a abolição do
papel-moeda não pressionará as taxas de juro para a região
negativa. Isto acontece porque haveria outros meios que seriam utilizados se o
papel-moeda se tornasse indisponível, os quais partilham com o
papel-moeda a propriedade de terem muito poucos "custos financeiros"
("carrying costs"),
isto é, cujo valor em relação ao seu volume é
enorme (de modo que o custo de armazenagem é mínimo), e que
não sofrem muito desgaste devido à armazenagem. Um dos tais meios
óbvios é o ouro e se se procura que o papel-moeda seja abolido
então as pessoas simplesmente comutarão para ouro o qual,
tal como o papel-moeda, tem virtualmente uma taxa de juro zero se o poder de
compra for mantido nessa forma e que portanto impõe um mínimo de
zero para a taxa de depósito bancário.
A espécie humana começou a sua jornada no âmago da moeda
inicialmente através da utilização do ouro. É
irónico que hoje, sob a mais avançada forma de capitalismo,
estejam a ser feitas exigências que só nos empurrariam de volta
para trás, para a era da moeda-ouro.
05/Março/2017
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2017/0305_pd/interest-rates-and-use-cash
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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