O aumento fenomenal na desigualdade de riqueza
O Credit Suisse publica todos os anos um
Relatório da riqueza global (
Global Wealth Report
).
O relatório deste ano refere-se à discussão
específica da questão da desigualdade de riqueza. O termo
"riqueza" no relatório cobre apenas riqueza familiar e
refere-se ao valor de activos a preços correntes. Por outras palavras,
ele inclui ganhos de capital e portanto os efeitos de factores especulativos.
Há dois pontos a serem observados ao discutir os números
apresentados no relatório do Credit Suisse. Primeiro, o termo
"riqueza" utilizado no relatório difere do stock de capital,
ou de activos reais em geral. Isto acontece porque, muito embora toda riqueza
refira-se em última análise à propriedade de activos
reais, com activos financeiros sendo nada além de
declarações de direitos
(claims)
sobre activos reais, os preços dos activos reais e os preços das
declarações de direitos sobre activos reais podem mover-se muito
desigualmente. Portanto, quando há uma "bolha" no mercado de
acções, o valor da riqueza na forma de, digamos,
acções aumenta; mas pode não haver qualquer aumento
correspondente no valor dos activos reais da firma cujas acções
aumentaram de valor.
Em segundo lugar, em qualquer comparação internacional há
uma questão importante relacionada com a taxa de câmbio apropriada
à qual o valor da riqueza em diferentes países deveria ser
comparado. O número de bilionários indianos entre os 100
principais no mundo, por exemplo, variaria grandemente conforme se convertesse
a sua riqueza em rupias para US dólares à taxa de câmbio
oficial ou em alguma taxa de câmbio PPC
[1]
(a qual tipicamente atribui à rupia um valor mais alto). Este segundo
problema, entretanto, não se levanta se estivermos a comparar
mudanças de desigualdade de riqueza transversalmente a países,
pois isso envolve somente a distribuição relativa de riqueza
dentro de cada país e não exige qualquer conversão de
diferentes divisas em dólares. Limitar-nos-emos aqui a este
último exercício.
A primeira coisa a perceber é o notável aumento na desigualdade
de riqueza que se verificou no mundo capitalista após a década de
1970, isto é, desde que começou a nova ascendência do
capital financeiro. Nos Estados Unidos, por exemplo, entre 1910 e 1970 a fatia
dos 10% de topo das famílias no total da riqueza familiar declinou de
81% para 64%, depois de 1970 aumentou acentuadamente de 64% para 75%. Da mesma
forma, a fatia dos 1% de topo das famílias no total da riqueza total
entre 1910 e 1970 declinou de 45% para 28%; mas aumentou posteriormente de 28%
para 34%. E mais ou menos o mesmo quadro mantém-se para as outras
economias capitalistas avançadas.
Mas neste último período, quando a desigualdade de riqueza
aumentou, este aumento foi substancialmente consumado por volta de 2000; se
tomarmos o período 2000 a 2014, então a fatia do
decil
de topo ou do
percentil
de topo na riqueza total não aumentou muito mais, no todo, dentro das
economias capitalistas avançadas do mundo. Neste último
período, entretanto, o aumento dramático real teve lugar na
desigualdade de riqueza dentro das chamadas "economias de mercado
emergentes".
Em 2014, a "desigualdade muito alta", definida como uma
situação em que o decil de topo tem mais do que 70% da riqueza
familiar total, caracterizou Hong Kong, Suíça e Estados Unidos
entre as economias avançadas. Mas caracterizou também uma
dúzia de "economias de mercado emergentes", nomeadamente
Argentina, Brasil, Egipto, Índia, Indonésia, Malásia,
Peru, Filipinas, Rússia, África do Sul, Tailândia e
Turquia. (A China e Formosa estão entre os de "alta
desigualdade", o que é diferente de "desigualdade muito
alta", países onde a fatia do decil de topo em riqueza familiar
está acima dos 60% mas abaixo dos 70%).
Além disso, entre 2000 e 2014, entre as economias em que houve o que o
Relatório chama de uma situação de "ascensão
rápida" na desigualdade, definida como aumento de 0,5 ponto
percentual ou mais por ano na fatia do decil de topo na riqueza familiar total
ao longo do período em referência, estas chamadas "economias
de mercado emergentes" estiveram bem representadas. A
"ascensão rápida" verificou-se na China, Egipto, Hong
Kong, Turquia, Coreia, Índia, Rússia, Argentina e Formosa.
É como se a onda de ascensão na desigualdade de riqueza,
começada a partir do mundo capitalista avançado, se propagasse
por todas as "economias de mercado emergentes" ao longo do tempo.
CONSEQUÊNCIAS PERIGOSAS
Embora o relatório do Credit Suisse não diga isso, esta mesma
onda está inextrincavelmente ligada ao processo de
"globalização" desencadeado sob a hegemonia do capital
financeiro internacional. Este enfraqueceu sindicatos e o movimento da classe
trabalhadora na generalidade, fortaleceu muito os músculos do capital o
qual pode agora manter a ameaça de abandonar um país se o seu
diktat for desobedecido e, portanto, forçar cada
Estado-nação a inclinar-se a fim de impedir a fuga do capital.
Mas a sua propagação através do globo provocou uma
mudança imensa cujas consequências sociais e políticas
são extremamente perigosas. Esta mudança equivale a uma
verdadeira reversão do avanço democrático feito pelo povo
em grandes partes do mundo no decorrer das últimas várias
décadas.
Entretanto, mesmo entre os países escolhidos pelo relatório do
Crédit Suisse como exemplos de "ascensão rápida"
em desigualdade de riqueza, a Índia sobressai. O aumento da desigualdade
de riqueza na Índia entre 2000 e 2014, o período em estudo, foi
verdadeiramente fenomenal. E isto resulta não tanto da fatia percentil
do decil de topo na riqueza familiar total, a qual, embora tenha aumentado de
65,9% para 74% durante o período, foi ofuscado pelo aumento em
vários outros países, como do aumento na fatia do percentil de
topo. Hoje a fatia dos 1% do topo da riqueza total na Índia é
maior do que a fatia dos 1% do topo desde sempre nos Estados Unidos, a economia
capitalista arquetípica, em toda a sua história ao longo do
século passado.
Por outras palavras, dentro do próprio decil do topo, se excluirmos os
outros 9% daqueles 1% do topo, a sua fatia na riqueza familiar total aumentou
de cerca de 19% em 2000 para 26% em 2014, o que por si mesmo constitui a
"ascensão rápida" pela definição dada
acima. Mas a ascensão da fatia dos 1% do topo em quase um ponto
percentual por ano entre estas duas datas constitui um caso de
"ascensão super rápida".
A própria ideia de uns meros 1% da famílias possuírem a
metade da riqueza é quase incrível. Além disso, é
um número mais elevado do que para o mundo como um todo. Segundo um
cálculo do mesmo relatório publicado em
The Hindu
em 08/Dezembro/2014, a fatia dos 1% do topo para o mundo como um todo em 2014
era de 48,2%, comparados com 49% para a Índia. E, além disso, a
fatia dos 1% do topo na Índia tem estado a ascender muito mais
rápido para o mundo como um todo. Em 2000, enquanto era de 36,8% na
Índia, no mundo como um todo era de 48,7%; mas em 2014, a fatia havia
aumentado para 49% para a Índia, a comparar com 48,2% para o mundo. Por
outras palavras, para o mundo a fatia permaneceu inalterada, ou até
declinou marginalmente; mas para a Índia ela aumentou em cerca de 1
ponto percentual por ano.
Como já foi mencionado, a fatia dos 1% de topo nos EUA é cerca de
34% e os EUA têm um do mais altos níveis de desigualdade de
riqueza do mundo capitalista avançando, qualificando-se à
categoria de "desigualdade muito alta". Mas em
comparação com os 34% dos EUA, os 1% de topo na Índia
possuem até 49% da riqueza familiar total! Isto é uma
desigualdade furiosa e um aumento na desigualdade que é fenomenal por
quaisquer padrões.
Contudo, mesmo os números apresentados pelo Credit Suisse num certo
sentido não apreendem a extensão real da desigualdade. Eles
referem-se à propriedade da riqueza e não ao comando sobre a
riqueza. Se uma pessoa da classe média possui, digamos, 10 rupias de
acções numa companhia que tem um património total de 100
rupias e em que um Ambani
[2]
possui a maioria das acções, digamos 51 rupias, então a
riqueza de Ambani será de 51 rupias e o da pessoa da classe média
de 10 rupias, de acordo com a definição dada no relatório,
com base na qual é medida a desigualdade. Mas de facto o controle sobre
o capital é de 100 rupias para Ambani e nenhum para a pessoa da classe
média. Segue-se que para qualquer dado grau de desigualdade na
propriedade de riqueza, a desigualdade no controle sobre a riqueza é
muito maior. Portanto, se os 1% do topo possuem quase a metade da riqueza
total, então a percentagem de riqueza total que eles controlam deve ser
muito maior.
CONCENTRAÇÃO DE PODER
Há duas tendências necessariamente associadas a tal
concentração de riqueza. Primeiro, tal concentração
de poder económico inevitavelmente leva a uma concentração
de poder político. A elite corporativa-capitalista super rica utiliza
toda espécie de expedientes para assegurar isto, desde comprar
legisladores e pessoal do Estado até controlar e utilizar os media
impressos e electrónicos, desde financiar eleições de
candidatos que favoreçam sua agenda até financiar e apoiar grupos
políticos comunais-fascístas.
Segundo, esta concentração do poder económico com o
político é invariavelmente utilizada para produzir ainda maior
concentração de tal poder. Isto tem sido claramente
visível na Índia. A elite corporativa super rica utilizou todas
as artimanhas do seu arsenal para projectar Narendra Modi como a pessoa certa
para liderar a nação e financiou amplamente a sua vitória
eleitoral. E em contrapartida o governo Modi está a introduzir
"reformas" no mercado de trabalho, a deitar abaixo esquemas do sector
social e até o MGNREGS
[3]
, bem como a desviar fundos para "promover a confiança dos
investidores" e anunciou esquemas ambiciosos de
"desinvestimento". Tudo isso faz parte da agenda dos super-ricos.
A preservação da democracia no país e a defesa da
herança da luta anti-colonial exige que tal concentração
de poder nas mãos dos super ricos seja rompida. Para isto, é
absolutamente necessário que a trajectória "neoliberal"
que produz tal concentração de poder e que em última
análise e inevitavelmente leva à ascendência do
comunal-fascismo como o instrumento através do qual tal poder é
exercido, seja completamente revertida.
14/Dezembro/2014
[1] PPC = Paridade de poder de compra
[2]
Ambani
: magnata indiano
[3] MGNREGS: Mahatma Gandhi National Rural Employment Guarantee Scheme
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2014/1214_pd/phenomenal-increase-wealth-inequality
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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