Globalizar a luta numa era de viragem
por Miguel Urbano Rodrigues
[*]
Camaradas e amigos
No final do século XX um vento de pessimismo varreu o planeta. A
humanidade parecia mergulhar na apatia. Quando a União Soviética
desapareceu e a Rússia galopou para o capitalismo, a teoria do Fim da
Historia correu pelo mundo. Nos EUA os intelectuais do sistema proclamaram a
morte do comunismo e apresentaram o neoliberalismo como a ideologia definitiva.
Mas a euforia das forças obscurantistas durou pouco. A cadeia de
protestos contra o capitalismo globalizado, iniciada em Seattle, ficou a
assinalar o regresso da esperança . De repente, o panorama mudou.
Não estamos a ser testemunhas da morte das ideologias, mas sim de um
renascimento do espírito revolucionário, com destaque para uma
reflexão criadora sobre o marxismo.
Um pouco por todo o planeta, lutas de novo tipo confirmam que as
revoluções do futuro próximo estão a ser forjadas
na resistência às contra revoluções da era
neoliberal.
Milhões de explorados apercebem-se de que o capitalismo se tornou um
factor de regressão absoluta da humanidade. A grande maioria rejeita o
monstruoso projecto de sociedade que pretendem impor-lhe. O Fórum Social
mundial e os fóruns sociais continentais e nacionais confirmaram que o
sistema de poder que aspira á dominação universal e
perpétua enfrenta uma condenação crescente. Mas desses
grandiosos protestos transparece também que não existe consenso
quanto ás formas de luta contra o sistema imperial nem quanto à
temática das alternativas ao neoliberalismo globalizado.
A consciência de que a humanidade enfrenta uma crise global sem
precedentes, que é simultaneamente social, económica, financeira,
militar, cultural e ambiental não é acompanhada ainda de uma
disponibilidade para lutas globais que traduzam essa consciência.
Na procura de uma resposta, as questões teóricas e as
práticas apresentam-se com frequência interligadas numa teia
labiríntica. A luta contra a escalada de terrorismo do estado imperial
é prioritária. Mas para se derrotar a engrenagem que
ameaça a própria continuidade da vida é
indispensável compreender antes de mais a estratégia e os
mecanismos do sistema de dominação opressor. A
rejeição do projecto imperial e da globalização
neoliberal deve conduzir à consciência de que esta como
reconhece Thomas Friedman, ex- assessor de Madeleine Albright- não
poderia funcionar sem um «punho invisível» , a máquina
de guerra dos EUA ,que a sustenta e viabiliza.
Entretanto a tentativa de prever o futuro e esboçar os seus contornos
é uma fonte de problemas.
A aspiração é legitima. O velho brado antinómico
de Rosa Luxemburgo «Socialismo ou Barbárie» não perdeu
actualidade. Mas a reflexão critica sobre os erros que conduziram
à implosão da URSS e ao trágico desfecho do regime
nascido da Revolução de Outubro de 17 desvia-se do objectivo,
assumindo aspectos negativos, quando desemboca em exercícios de
futurologia que deixam transparecer desconhecimento da historia, das
sociedades contemporâneas e da evolução do imperialismo.
A imprescindível reflexão sobre a transição do
capitalismo para o socialismo e os fracassos das revoluções que
se propunham a encontrar resposta para esse desafio não devem ser
confundidos com a elaboração de programas para a fase de
transição. Ao inverterem prioridades e tempos históricos,
na tentativa de explicarem o que não se fez e deverá fazer-se, no
esforço para esboçarem o perfil do socialismo com que sonham,
muitos teóricos da «transição» desenvolvem um
trabalho de escassa ou nula utilidade.
Voltarei ao tema mais adiante, mas quero desde já sublinhar que tudo
separa esses fazedores de «programas para a transição»
de intelectuais como István Mészaros, Samir Amin e Georges
Gastaud que, a partir de um conhecimento profundo do marxismo, escreveram
trabalhos importantíssimos sobre a problemática da
transição para o socialismo em sociedades onde ela fracassou
dramaticamente.
Camaradas e amigos
Este Encontro tem por titulo «Civilização ou
Barbárie». Paradoxalmente, o sistema de poder que ameaça
mergulhar o mundo na barbárie apresenta-se como o campeão da
luta contra o terrorismo e faz dela a primeira prioridade da sua
estratégia.
Na prática, porém, a sua política de guerras ditas preventivas
configura uma forma inédita de terrorismo de estado. As agressões
militares dos EUA a povos com o iraquiano e o afegão contribuíram,
após o 11 de Setembro, para multiplicar e disseminar o terrorismo em
escala mundial. Em ultima análise é a política imperial
neonazi de Washington a responsável pela proliferação de
atentados terroristas praticados por seitas de fanáticos
fundamentalistas, incluindo sequestros monstruosos com desfechos de
tragédia como o da Ossétia do Norte.
Lutar contra o sistema de poder que tem o seu pólo em Washington
tornou-se, portanto, uma necessidade ligada à sobrevivência da
humanidade.
Na crise global que vivemos a frente principal no confronto com o imperialismo
é aquela onde o inimigo, concentrando grandes forças, actua com
mais agressividade e investe mais recursos materiais e humanos- a frente em que
os desafios por ele enfrentados e a resistência encontrada lhe causam
maiores dificuldades, pondo em causa o mito da sua invencibilidade.
Essa frente situa-se actualmente no Oriente Médio e na Ásia
Central, no triângulo Iraque-Afeganistão-Palestina.
É hoje transparente que a estratégia dos EUA na Região
fracassou. Uma esmagadora superioridade militar permitiu às suas
forças armadas ocupar em poucas semanas o Afeganistão e o Iraque.
Mas em ambos os casos a resistência das populações impediu
a execução dos chamados planos de reconstrução, na
realidade de recolonização. Não tanto pelo milhar de
mortos e mais de uma dezena de milhar de feridos somente no Iraque. Para
Washington, o pior é a desmoralização resultante dos
ataques diários e a incapacidade de prever as acções de
uma Resistência cada vez mais organizada.
Foi impossível ocultar ao povo dos EUA uma série de derrotas. A
de Faluja foi a mais chocante. Após a morte ali de quatro
mercenários, o governo Bush afirmou que a cidade seria alvo de uma
punição exemplar. Quase um milhar de civis morreram durante o
bombardeamento selvagem a que Faluja foi submetida. Mas o corpo de Fuzileiros
não conseguiu retomar a cidade. Numa tentativa de esconder o fracasso,
o Pentágono informou que retirara as suas forças após um
acordo que normalizara a situação na área. Na realidade
ocorreu uma capitulação humilhante. O comando norte-americano
teve de pedir à Resistência que autorizasse a saída do
material pesado da cidade e a garantia de que as suas tropas não seriam
atacadas durante a retirada. Hoje Faluja é uma cidade praticamente
libertada no Iraque. Por isso é bombardeada com frequência .
Em Najaf, Samarra, Ramadi, Kerbala e Kufa os
marines
também acumularam derrotas. Nessas cidades as tropas dos EUA não
entram mais.
Durante um ano, Washington apresentou as comunidades xiitas,
majoritárias no pais como predispostas á
colaboração. Outra mentira. O levantamento de Moqtada Al Badr em
Najaf funcionou como rastilho de uma ampla insurreição xiita. Os
EUA, após semanas de luta, tiveram inclusive de recorrer à
mediação do ayatollah Al Sistani para conseguir que Al Badr e o
exército mahdi evacuassem o mausoléu de Ali naquela cidade santa do
xiismo. Para prosseguir alias a luta noutros lugares. E os marines
saíram de Najaf.
O golpe mais duro que atingiu a extrema direita estadunidense foi, entretanto,
a divulgação das torturas infligidas aos prisioneiros iraquianos.
Os
media
passaram a chamar «abusos» à tortura, mas o artificio
não funcionou. Ficou transparente que a soldadesca norte-americana ,com
a cumplicidade do alto comando, recorria a métodos que somente
encontram precedente nos utilizados pelas SS nazis no III Reich alemão.
O próprio secretario da Defesa, Donald Rumsfeld, tinha conhecimento do
que se passava e nos seus arquivos acumulava fotografias das
humilhações sexuais infligidas a prisioneiros.
Os grandes jornais, incluindo
The New York Times,
adoptaram uma atitude ambígua. De modo geral apresentaram a tortura
como excepcional, sublinhando que suscitara a adequada resposta de uma
justiça democrática. O que é falso. Crimes similares
vinham sendo divulgados por intelectuais progressistas em diferentes
países. Sobre o tema escreveram cientistas sociais como o canadiano
Michel Chossudovsky, escritores como o australiano John Pilger e o jornalista
britânico Robert Fisk. Eu próprio faz dois anos responsabilizei
oficiais superiores do exército dos EUA por crimes abjectos cometidos durante a
guerra de agressão ao povo do Afeganistão. Recordo a chacina de
Mazar-i-Charif, o saque de Kandahar, e o corte de línguas a prisioneiros
em Seberghan.
A recente transferencia de poderes em Bagdad para um governo provisório
iraquiano foi uma mera operação cosmética. O
procônsul Paul Bremer regressou a Washington, mas o actual embaixador
John Negroponte um veterano da CIA continua a por e dispor ali. O
primeiro ministro Iyad Allawi é um antigo homem de confiança de
Saddam que trabalhou depois com a CIA e o MI-6, o serviço de
inteligência britânico. Foi acusado pelo diário australiano
Sidney Morning Herald
de assassinar pessoalmente, com tiros na nuca, prisioneiros iraquianos numa
esquadra de polícia de Bagdad.
A cumplicidade dos aliados europeus dos EUA, da Rússia e da China
permitiu, entretanto, que Washington alcançasse uma vitória
táctica. O Conselho de Segurança da ONU, submetido a
pressões muito fortes, num momento em que o alargamento da União
Europeia enfraqueceu o eixo franco-alemão, aprovou em 8 de Junho, por
unanimidade, uma Resolução, a 1546, capituladora.
O documento, violador da Carta da ONU, legitima a ocupação do
Iraque ao reconhecer como representante do seu povo até às
futuras eleições o governo interino fantoche instalado por
Washington. Simultaneamente, o Conselho de Segurança passou a designar
as tropas de ocupação como "força
multinacional". Na prática, a autointitulada coligação,
inventada e comandada pelos EUA, adquiriu assim um estatuto de legitimidade
que vinha, sem êxito, reivindicando há muito.
O caracter capitulador da Resolução 1546 não alterou,
contudo, a situação concreta existente. Koffi Annan, não
obstante ser um secretario geral submisso, foi categórico ao declarar
que a Organização não voltará em tempo
previsível a instalar em Bagdad uma missão permanente. A
memória do ataque contra a sua sede, quando morreu o brasileiro
Sérgio Vieira de Mello, desaconselha o regresso.
A resolução não mudou também o quadro militar.
Washington pretendia que a França, a Alemanha e a Rússia
enviassem tropas. Ora Chirac e Schroeder já esclareceram que isso
não acontecerá. A posição de Putin é mais
ambígua.
A recusa de envolvimento dos três países na guerra iraquiana
configura uma grande derrota dos EUA. Para o Pentágono, a
presença no combate à insurreição dos
exércitos francês, alemão e russo era considerada
fundamental. Rumsfeld e os seus generais estão conscientes de que o
único aliado que conta militarmente é a Grã- Bretanha. As
tropas italianas, polacas, ucranianas, búlgaras, bielorussas, romenas,
checas, eslovacas, bálticas e de países da Ásia Oriental e
da América Latina não saem praticamente dos quartéis. O
devastador ataque à caserna dos italianos valeu como advertência.
Aliás, os governos das Filipinas, das Honduras, da Republica Dominicana
e da Nicarágua já retiraram os seus contingentes, seguindo o
exemplo espanhol. Os ucranianos vão também sair.
A certeza do isolamento (pois o único aliado real, repito, é o
britânico) dissipou as ilusões do Pentágono.
A guerra do Iraque assume cada vez mais os contornos de uma guerra perdida. Tal
como ocorreu no Vietnam embora num contexto muito diferente a
Resistência destruiu o moral do exército invasor. Cada soldado, ao tomar
conhecimento da morte diária de companheiros numa guerra absurda que
não entende, pensa que o próximo pode ser ele. Mais de 1500
soldados e oficiais receberam já tratamento psiquiátrico. O
número de suicídios cresce e trinta militares, ao regressarem
aos EUA, mataram as mulheres e os filhos.
Foi precisamente a consciência da desmoralização das tropas
de ocupação que motivou a decisão de acelerar na medida
do possível a substituição dos militares que se
encontravam no pais desde o inicio da invasão. Mas a
substituição desses homens está criando problemas muito
complexos.
O exército dos EUA é hoje um corpo profissional muito diferente
do que esteve na fornalha vietnamita. Naquela época não se
colocava o problema dos efectivos. Actualmente não é
possível mobilizar milhões de homens. As novas armas exigem
forças altamente especializadas. O ingresso no exército implica
um contrato, nasce de um acto voluntário. Daí uma dimensão
muito menor das forças armadas. No caso do exército, o total das
tropas operacionais disponíveis não atingirá
provavelmente- segundo Ignacio Ramonet- 250 000.
Mais de metade encontra-se no Iraque e algumas dezenas de milhares no
Afeganistão e em bases militares localizadas em diferentes
países. Tendo presente que parte das tropas que participaram da
invasão já foi repatriada (e está desmoralizada) o
Pentágono não sabe como responder ao pedido de reforços
para o Iraque. A recente convocação de 6 500 reservistas e os
protestos que a medida provocou são reveladores das
limitações da gigantesca máquina militar dos EUA. Da
Coreia do Sul e do Haiti vão, aliás ser transferidos para o
Iraque uns 15 000 homens.
A contratação de dezenas de milhares de mercenários para
tarefas militares e civis naquele país é espelho das
dificuldades crescentes do Pentágono.
O PÓLO DA AMÉRICA LATINA
Colin Powell declarou em Fevereiro p.p. que a América Latina não
é no momento uma prioridade para os EUA. Tivemos a
confirmação no corte de 11% das verbas destinadas pelo
orçamento federal a iniciativas na Região.
Seria, porem, um erro minimizar o significado da frente latino-americana na
batalha mundial contra o imperialismo. Washington persiste numa política
muito agressiva na Região. O triângulo
Venezuela-Colômbia-Cuba concentra a atenção da Casa Branca.
A vitória ,por ampla margem, de Chavez no referendo revogatório
de 15 de Agosto foi um acontecimento político de significado
continental. O povo venezuelano, assumindo uma vez mais o papel de sujeito da
história, voltou a derrotar as forças unidas da oligarquia e do
imperialismo. Sem a sua participação maciça não
teria sido possível o triunfo alcançado no confronto com a
engrenagem golpista que pretendia tal como no golpe de 11 de Abril de
2002 e no
lock out.
petrolífero derrubar o presidente Hugo Chavez e destruir a
Revolução Bolivariana.
A Venezuela emerge hoje na América Latina como um laboratório
social efervescente no qual se desenvolve uma luta de classes como o mundo
não conhecia , pela duração e intensidade, desde as
revoluções russas de 1917. Na pátria de Bolívar e
Zamora foi retomado um desafio: transformar radicalmente a sociedade e
libertá-la da dominação imperialista, optando pela via
dita pacífica, isto é utilizando exclusivamente para o efeito as
instituições criadas pela burguesia para servir os seus
objectivos, incompatíveis com os do poder revolucionário.
Os êxitos obtidos por Chavez não devem levar a uma
subestimaçao das dificuldades do futuro imediato. Convém
recordar que o poder económico da burguesia, com excepção
da área do petróleo (e do aço), está praticamente
intacto.
O desfecho da via pacifica no Chile foi o sangrento golpe militar do 11 de
Setembro de 1973, preparado com o apoio do imperialismo norte-americano. Mas a
Revolução Bolivariana não é uma
revolução desarmada, contrariamente à chilena. A derrota
da intentona de Abril de 2002 permitiu o afastamento de 150 generais e
almirantes que representavam o espirito do corpo de oficiais tradicional,
educado nas academias militares da burguesia e dos EUA. Hoje a esmagadora
maioria do Exército está identificada com o projecto
revolucionário, situação sem precedentes na América
do Sul.
São muitas, entretanto, na Venezuela as interrogações sem
resposta. A vitória no referendo, alcançada em
condições muito desfavoráveis, foi uma grande derrota do
imperialismo. Mas a vitória do povo não pôs fim à
ofensiva contra-revolucionária, apoiada por um sistema mediévico
perverso. O futuro da Revolução Bolivariana continua a ser
imprevisível.
No Brasil e na Argentina a eleição de presidentes cujos projectos
previam transformações sociais de fundo que implicavam uma
ruptura com as políticas neoliberais anteriores de submissão ao
imperialismo gerou enormes esperanças.
O andamento da historia não permitiu a sua concretização.
Em ambos os casos as políticas adoptadas não respondem às
aspirações populares.
Não cabe nesta reflexão analisar o rumo do Brasil e da Argentina.
Mas é oportuno recordar que os governos de Lula e Kirchner ,com
linguagens e estilos muito diferentes, longe de utilizarem as
instituições em beneficio dos respectivos povos, desenvolvem
políticas que no fundamental não ferem a lógica do
capitalismo e lhe servem mesmo os interesses estratégicos. A
submissão do Brasil às políticas neoliberais é
ostensiva. O prof. Ricardo Antunes, da Universidade de Campinas, definiu bem
a situação criada ao afirmar cito- que «o governo Lula
tenta ganhar as classes dominantes para o seu projecto e ainda não
percebeu que ele foi ganho pelas classes dominantes para o projecto delas».
Entretanto, o chamado «capitalismo normal» de Kirchner não
envolve também uma ruptura com os objectivos do neoliberalismo.
Não sem habilidade, o ex-governador peronista da Patagónia
esforça-se na Casa Rosada por humanizar o capitalismo, como se isso
fosse possível. Mas o seu populismo engana. A sua popularidade
mantem-se num nível alto, enquanto a de Lula baixa.
Quanto à sobrevivência das guerrilhas na Colômbia, constitui
um pesadelo para o Pentágono. A luta das FARC-EP, sobretudo, confirma
que em determinadas situações históricas,
geográficas e sociais excepcionais, a luta armada continua a ser
possível na América Latina. Há 39 anos que a oligarquia
colombiana anuncia o fim da guerrilha de Manuel Marulanda. Sem êxito.
Nestas quatro décadas o núcleo inicial de 47 homens
transformou-se num exército popular de 18 000 combatentes que luta em 60
frentes, infligindo duras derrotas ao mais poderoso exército da América
Latina.
O Plano Colômbia está em execução e não
obstante a ausência de condições para uma
intervenção directa inviável no momento- os EUA
não renunciaram à ideia de criar uma força interamericana
que actuaria contra as guerrilhas das FARC e do ELN, acusadas de serem
organizações terroristas. A detenção no Equador do
comandante Simon Trinidad confirmou, aliás, a existência de
cumplicidades profundas de vários serviços de inteligência
latino-americanos com a CIA.
Cuba é o terceiro vértice do triângulo que preocupa os
estrategos estadunidenses. O povo da Ilha não se submete, não
abdica do direito de construir e defender o socialismo. Na perspectiva de
Washington a sobrevivência da sua revolução , aguentando
o mais prolongado bloqueio de que ha memória, oferece um perigoso
exemplo para a América Latina. Demonstra que é possível
resistir vitoriosamente seguindo um caminho próprio. Cuba é o
único pais do Hemisfério onde o direito á vida ,à
saúde ,à educação ,à cultura é pilar
de um conceito revolucionário dos direitos humanos que não
é farisaico como o das democracias formais do mundo capitalista.
Não creio , camaradas, que os EUA, atolados no Iraque e no
Afeganistão, estejam no momento em condições de invadir
Cuba. Mas o povo cubano sente-se com fundamento ameaçado. No contexto
de uma autentica guerra não declarada, as ultimas medidas do governo
Bush, reforçando o bloqueio e impondo sanções
incompatíveis com o direito internacional, visam a asfixiar
economicamente a pátria de Martí e Fidel. Configuram uma
política definidora de um estado pirata. Daí a necessidade de
ampliar a solidariedade com o heróico povo cubano.
A nível continental, a luta contra a ALCA permanece como objectivo
fundamental. Os EUA exigem que o «Acordo» por eles concebido seja
implementado no inicio de 2005. Perante as resistências encontradas ,o
projecto anexionista mudou de forma e procedimento, mas a sua essência
mantem-se intacta, como sublinhou em Havana o cubano Osvaldo Martinez.
No panorama global, a traição do equatoriano Lúcio
Gutierrez, hoje totalmente submisso às ordens de Washington, veio
alertar as forças progressistas do Continente para uma realidade. Na
América Latina a conquista da Presidência por políticos
com programas anti-neoliberais ,eleitos com o apoio maciço dos
trabalhadores e dos intelectuais progressistas, não é, por si
só, garantia do cumprimento dos compromissos assumidos.
O oportunismo e a capitulação dos dirigentes populistas que
suscitaram grandes esperanças não justificam ,porem, atitudes
pessimistas. Do Rio Bravo à Terra do Fogo os povos da América
Latina, com raras excepções, demonstram maior disponibilidade
para a luta. Isso ocorre no Peru, na Bolívia, no Uruguai, no Paraguai,
no Chile, como no Brasil e em países da América Central .
Mobilizar para acções concretas, bem coordenadas, esse
formidável potencial de combatividade -- eis a grande tarefa a ser
assumida pelas organizações e partidos revolucionários do
Continente e pelos movimentos sociais progressistas que recusam o discurso dos
reformadores do capitalismo.
LUTAS SOCIAIS NA EUROPA
O pólo europeu na luta global contra o sistema de poder que
ameaça a humanidade tende a assumir também importância
crescente. Os Estados da União Europeia tal como o Japão, a
Rússia, a Austrália ,a Nova Zelândia e alguns da
Ásia Oriental - estão integrados nesse sistema .Os seus governos
e classes dominantes participam activamente da exploração
capitalista . São parte de uma engrenagem. Como beneficiários da
globalização neoliberal, muitos deles participaram em
agressões contra outros povos ( Golfo, Somália, Bósnia,
Jugoslávia, Afeganistão, Iraque, etc.) .Essa cumplicidade
não impede que contradições complexas oponham
permanentemente no âmbito da OCDE e do próprio G-7 estados e
transnacionais da Europa ao sistema de poder estadunidense e às suas
transnacionais. O alargamento da UE ,com a entrada de países cujos
governos são na maioria satélites de Washington, aprofundou
essas contradições que se expressam com frequência em
conflitos comerciais e em posições diferenciadas na ONU. Esses
conflitos são inseparáveis da crise profunda do capitalismo e da
estratégia da dominação planetária liderada pela
extrema-direita dos EUA.
Em Seminários Internacionais realizados no Chile, no México e no
Brasil chamei a atenção para o caracter estrutural que a crise do
capitalismo apresenta hoje nos EUA. São cada vez mais transparentes as
consequências de uma estratégia irracional em que o poder das
finanças passou a ser sustentado por uma política de terrorismo
de estado. Sendo actualmente uma nação parasita que consome
muito mais do que produz- em Abril o défice comercial ultrapassou 48 mil
milhões de dólares e em Junho foi ainda mais elevado- os EUA
,cuja taxa de poupança é muito baixa praticam uma
política de saque dos recursos naturais de outros povos. O
défice do orçamento federal será este ano ,segundo a Casa
Branca, superior a 445 mil milhões de dólares, o maior de sempre.
O prof. Remy Herrera, da Universidade de Paris 1, aqui presente em Serpa,
formulou em Havana ,na VI Conferencia sobre Problemas do Desenvolvimento e da
Globalização ,uma pergunta oportuna : poderão os EUA
redinamizar a acumulação de capital no centro do sistema mundial
através da guerra imperialista quase permanente?
A sua resposta é negativa porque as destruições de
capital são «insuficientes para a acumulação
capitalista».
A desvalorização do dólar relativamente ao euro
apesar de a Europa permanecer na fronteira da estagnação-
não é uma simples manobra monetária para estimular as
exportações. Desta vez reflecte a gravidade da crise
estadunidense. Gigantescos défices sobretudo o do orçamento
e o comercial assustam os aliados europeus e asiáticos. A divida
externa, a maior do mundo e a publica interna, atingem níveis
alarmantes. O endividamento das famílias americanas representa quase
85% do PIB.
O gigante tem pés de barro e os cúmplices estão
conscientes da sua fragilidade.
É natural que as lutas sociais na Europa Ocidental estejam em
ascensão num momento em que o alargamento da União Europeia
para 25 países traz a certeza de um aumento de tensões entre
grandes e pequenos. O ingresso de países como a Polónia, a
Hungria e a Republica Checa, que se comportam como autentica quinta coluna dos
EUA, aprofunda clivagens e será fonte de novas situações
de conflito.
Outro problema: o futuro exército europeu, defendido com empenho pela
França e pela Alemanha e combatido pelo Pentágono,
continuará a ser uma área de atrito. Como prólogo, o
debate sobre a criação da chamada «força de
reacção rápida» e dos
battle groups
antecipa fricções inevitáveis. O tumor iraquiano
contribui para as intensificar.
A hegemonia financeira e militar de Washington é ainda demasiado forte
para que os aliados europeus e o Japão a desafiem abertamente . Mas
que acontecerá como pergunta Georges Gastaud se as
potências capitalistas mais importantes se aproximarem dos EUA, mais
frágeis economicamente do que parece? Enganam-se, responde o professor
francês, "os que imaginam que a era das guerras imperialistas
pertence para sempre ao passado, embora hoje seja impossível prever as
formas que assumiriam esses conflitos, tanto menos previsíveis quanto a
URSS já não existe para defender a paz".
As forças progressistas não somente se opõem à
militarização da Europa , qualquer que seja o modelo, mas
também à Constituição Europeia que, na pratica
institucionalizou o capitalismo, reduzindo as soberanias nacionais a simples
fachada.
A mobilização dos povos contra a Constituição
não atingiu lamentavelmente o nível que seria desejável,
em parte pelo desconhecimento das consequências da sua
aplicação.
Mas o agravamento da crise do sistema levará a uma
intensificação das lutas de significado anti-imperialista. Quanto
mais os EUA se afundarem no Iraque maiores serão as dificuldades dos
governos da UE em camuflarem as suas divergências sobre a
estratégia de Washington para o Oriente Médio e a Ásia
Central.
Os factores negativos não devem, contudo, ser esquecidos. Na Europa
Ocidental tal como na América Latina o nível de
organização e a capacidade de mobilização das
forças que rejeitam a globalização neoliberal e o seu
projecto são muito insuficientes. Não correspondem à
dimensão da crise.
O balanço dos Fóruns Sociais convida á reflexão. A
intervenção dos Movimentos Sociais desde Seattle tem suscitado
polémicas fascinantes. É importantíssima a
contestação ao projecto de sociedade do neoliberalismo. Os
movimentos sociais contribuíram decisivamente para uma mudança de
atitude de milhões de pessoas perante situações que antes
suportavam passivamente. Ao passarem da quase indiferença à
contestação do sistema colocaram este na defensiva. O quadro
mudou.
Mas a convicção de que os movimentos sociais emergem
colectivamente como uma vanguarda de vocação
revolucionária expressa uma atitude romântica. Tenho chamado
repetidamente a atenção, sobretudo no sítio web
resistir.info,
para os limites e perigos do espontaneísmo movimentista quando a
intervenção dos movimentos sociais não tem como
complemento imprescindível a participação intensa na luta
de organizações e partidos revolucionários com projectos
bem definidos. Não é sem apreensão apenas um
exemplo- que acompanho a guinada de um partido como a Rifondazione Comunista,
da Itália, quando afirma, pela palavra de Fausto Bertinotti, que «o
movimento dos movimentos» (o que será isso?) funcionará como
alavanca da revolução de amanhã. Os partidos tenderiam com
o tempo a diluir-se nesse «movimento dos movimentos».
Apreensão similar é a provocada pela adesão da maioria
dos partidos comunistas da Europa Ocidental a um projecto de Partido que
pretende representar o fundamental das esquerdas marxistas de vários
países, mas que parece anunciar- se como mais uma
organização empenhada em reformar o capitalismo. A recusa de
adesão a tal projecto dos Partidos Comunistas Português e Grego
apontou um caminho correcto.
Camaradas e amigos,
Julgo útil recordar também aqui outra situação
negativa. Nos últimos anos, tendências que apresentam matizes
neoanarquistas favoreceram na prática os objectivos de forças e
personalidades que, mesmo quando declaram o contrario, actuam como se fosse
possível uma reforma profunda do capitalismo que o humanize, o que
é uma impossibilidade absoluta.
Penso concretamente nos trabalhos e na intervenção
polémica do irlandês John Holloway, actualmente professor na
Universidade mexicana de Puebla, e do italiano Toni Negri cujas teses sobre a
problemática do poder e o imperialismo se me afiguram perigosamente
desmobilizadoras.
O livro do primeiro, «Mudar o mundo sem tomar o Poder»
[2]
, publicado inicialmente quando era professor em Edimburgo na Escócia, e
depois
editado na Argentina e no Brasil, funcionou na América Latina como
instrumento de confusão, sobretudo em meios universitários . O
facto de Holloway se declarar plenamente identificado com as
posições do subcomandante Marcos, do EZLN, sobre o Estado e a
inutilidade da luta frontal contra o Poder do Estado burguês contribuiu
para confundir amplas camadas da juventude. Cabe recordar que Marcos se define
como um
rebelde,
mas não como
revolucionário.
Holloway, seu grande admirador, diz-se marxista, mas pensa e escreve como um
neoanarquista.
Não menos confusionista é o efeito das mensagens contidas na
obra de Negri .O seu discurso sobre a metamorfose que enxerga no imperialismo ,
que se teria diluído, actuando através de múltiplos
pólos diferenciados, é absolutamente incompatível com a
definição clássica do imperialismo, de Lenine. A historia
desmentiu-lhe nos últimos anos essa tese absurda. Mas Negri insiste.
Desmobilizadora é também a sua apologia da «não
violência» num momento em que a Resistência iraquiana
enfrenta com heroísmo o terrorismo de estado neofascista dos EUA. Negri
semeia a confusão quando é cada vez mais necessária uma
grande frente antimperialista, a única por ora possível.
ALTERNATIVAS E PRIORIDADES
A questão das alternativas aparece-me como intimamente ligada à
da frente de luta principal.
Fidel Castro no III Encontro Anti-Alca interveio no debate para afirmar que
não haverá uma alternativa, mas muitas, segundo a região
,o país, o povo ,as condições objectivas e subjectivas.
Não se referia obviamente a alternativas ao projecto anexionista
imperial. Para ele no hemisfério somente há uma alternativa
à ALCA: a integração das economias latino-americanas.
Fidel referia-se às alternativas às políticas de ajuste
impostas à América latina pelo Consenso de Washington com os
trágicos resultados conhecidos.
As falsas democracias latino-americanas são regimes caricaturais e
opressores. O Brasil necessita de um projecto nacional (o actual Governo
abandonou o esboçado no Programa da Frente que o elegeu) que
terá de ser muito diferente do argentino, como este do uruguaio e do
paraguaio. O das forças progressistas do Chile apresentará um
perfil próprio, tal como os do Peru ,da Bolívia e do Equador. O
da Venezuela bolivariana define-se a cada dia na defesa da
revolução. A longa e heróica luta da insurgência
colombiana pesará nas soluções institucionais
democráticas que o povo de Nariño reivindica. Em cada caso, no
México, na América Central, no Caribe, o projecto nacional, para
obter o apoio das massas, terá que partir da especificidade nacional.
A opinião emitida por Fidel Castro foi oportuna como elemento
clarificador de um debate que, por falta de rigor, inclusive no emprego da
palavra alternativa, é fonte de interpretações
contraditórias.
Tornou-se já evidente que dos Fóruns Sociais Mundial e
Continentais não pode sair qualquer alternativa global ao
neoliberalismo porque no mundo actual é impossível apresentar uma
alternativa de contornos definidos, bem estruturada, de valor universal, ao
sistema que ameaça destruir o planeta.
A dualidade antagónica socialismo ou barbárie ,tal como a
apresentam cientistas sociais revolucionários como
Mészáros, Gastaud e Samir Amin expressa bem a
situação de crise existente. Ou o capitalismo, na sua fase senil,
destrui a civilização ,empurrando a humanidade para a
barbárie (ou a extinção) ou o capitalismo é
erradicado, desaparece. Num pequeno artigo, Mészáros divulgou
recentemente uma carta em que Paul Sweezy, em 1987, deixava transparecer uma
lúcida percepção do rumo dramático da
história resultante do desespero do capitalismo, incapaz de superar a
crise por ele criada.
Seria, contudo, entrar no terreno da especulação esboçar
sequer os contornos do socialismo, ou dos socialismos, que sucederão ao
capitalismo. O estudo em profundidade do terremoto que levou à
implosão da URSS, uma tragédia para a humanidade, apenas
principiou. Sabemos que o socialismo real não correspondeu ao projecto
de Lenine, desfigurando-o .Mas o perfil do socialismo de amanhã
não pode ser esboçado hoje. O mais provável será o
aparecimento e a convivência de sociedades comunistas muito
diferenciadas. Estamos longíssimo do estado universal.
A controvérsia assume uma grande actualidade porque intelectuais de
esquerda sérios ,respeitados, alguns marxistas, afirmam que a
elaboração de uma alternativa teórica ao neoliberalismo se
apresenta como tarefa prioritária, devendo preceder a
organização da luta frontal contra o imperialismo cujas
condições seriam criadas por ela.
Repito o já dito. A reflexão sobre a problemática da
transição para o socialismo e os erros cometidos na URSS
é uma tarefa incontornável. Nesse campo, os trabalhos, muito
diferentes, de Mészáros, Samir Amin, Sweezy e Gastaud e
também, muito antes, de Bethelleim, são importantíssimos,
imprescindíveis à compreensão do mundo unipolar em que
vivemos e à renovação criadora, revolucionaria do
marxismo, tal como a concebiam Marx, Engels e o próprio Lenine.
Mas sair desse terreno para a formulação de projectos que
subalternizam a luta contra o imperialismo, concedendo prioridade ao debate
teórico sobre a construção da sociedade futura seria cair
na utopia ,levar agua ao moinho do inimigo. Não são apenas
diletantes das ciências sociais como o alemão-mexicano Hanz
Dieterich, que desenham os contornos da democracia participativa como meta
próxima e atingível, esquecendo que entre ela e o presente se
ergue a muralha poderosa de um poder imperial de contornos neofascistas. Hoje
gente mais responsável sustenta que a transformação da
sociedade capitalista se apresenta como tarefa imediata que deve preceder a
tomada do poder político A teorização sobre a
construção do poder de baixo para cima», subestimando a luta
contra o estado burguês , como a concebe o mexicano Marcos ,do EZLN,
pode cativar intelectuais de esquerda e segmentos da juventude ,mas não
preocupa muito as classes dominantes. A convicção de que a
transição se pode realizar desde o interior do sistema, na
vigência do capitalismo, sem sequer colocar o problema do Estado , do
Poder, é ingénua. Sem que os seus defensores disso tomem
consciência, eles estão a retomar noutro contexto
histórico com outra linguagem, velhas teses reformistas de Edward
Bernstein. Na prática o que propõem não é uma nova
lógica socialista e revolucionária, mas a
humanização do capitalismo. O que é insisto
uma impossibilidade absoluta, por ser incompatível com a própria
essência do sistema. O movimento, contrariamente ao que afirmava
Bernstein, não é tudo, mas quase nada ,como sustentou Rosa
Luxemburgo ao desmontar-lhe as teses revisionistas e oportunistas. A meta das
grandes lutas do nosso tempo não é o enfraquecimento gradual do
capitalismo, reformando-o de dentro do sistema, mas sim o seu desaparecimento.
As pompas do discurso ,em francês, português, inglês,
espanhol, italiano ou alemão em torno do chamado «socialismo
democrático» não alteram a realidade: a social democracia
europeia, transcorrido um século , não acrescentou ,na sua
teorização reformista, praticamente nada às
formulações de Bernstein.
No seu livro «O poder da ideologia»
[1]
, István
Mészáros, aqui presente, já lembrava que cito-
«Nenhum acontecimento ou desenvolvimento novo pode afectar de modo
significativo a perspectiva estratégica da social democracia ocidental
orientada para a justificativa apologética da sua escolha original -- o
caminho da
reforma estritamente gradual
e a rejeição categórica da possibilidade de mudança
revolucionária -
- e para a confirmação
aprioristica
da perfeição da estratégia adoptada. A ultima coisa que
esta perspectiva necessita, ou poderia trazer á tona sem se destruir
,seriam princípios teóricos realmente novos e objectivos
radicalmente reorientados (...) Na realidade, as «mudanças graduais
» legitimadas da teoria social democrata não são sequer
graduais em qualquer sentido da palavra (isto é, mudanças
adequadas para assegurar ,ainda que lentamente, a prometida
transição para uma sociedade muito diferente socialista
)mas meramente
conciliatórias.
A sua premissa ,admitida mais ou menos abertamente, é a
necessária exclusão,
de toda
a mudança estrutural
radical, por qualquer meio (repressivo ou não) que a«ordem
constitucional» estabelecida tenha à disposição.»
Aliás as mudanças graduais da social democracia reformista,
introduzidas na Europa por via parlamentar desde o inicio do século
podem ser constitucionalmente derrubadas também por via legislativa .E
isso tem sido feito sob a égide dos governos neoliberais. Em Portugal o
processo desenvolveu-se tanto por iniciativa de governos do PS como de
partidos da direita quimicamente pura, empenhados uns e outros em destruir as
nacionalizações e a reforma agraria e em aniquilar conquistas
dos trabalhadores alcançadas durante o período
revolucionário do general Vasco Gonçalves.
Os partidos revolucionários não devem permanecer á margem
dos processos eleitorais. Seria uma atitude romântica, muito negativa.
Mas a sua participação nos parlamentos implica, para serem
coerentes, a recusa de qualquer tipo de concessões ao sistema. Estas
costumam acabar em compromissos e mesmo alianças como aquelas que
conduziram ao desaparecimento do Partido Comunista Italiano e à actual
descaracterização, para não dizer decadência, dos
Partidos Comunistas francês e espanhol.
Volto a citar Mészáros:
«O quadro da orientação estratégica da
socialdemocracia ocidental apresenta um fatídico nó cego
ideológico. As insuperáveis limitações da
política parlamentarista como tal para obter o domínio das
forças controladoras do metabolismo social capitalista jamais
serão sequer consideradas e muito menos contestadas seriamente a
partir das mudanças em curso e das novas possibilidades emergentes, e em
resposta a elas. Ao contrário, em consequência da sua
carcaça institucional paralisadora, a teoria social democrata é
transformada num
exercício manipulador de relações publicas
com o objectivo de ser eleito ou de permanecer no cargo. Deste modo a classe
trabalhadora, como agente social da alternativa socialista, torna-se
supérflua e ,na verdade ,por causa das suas aspirações
radicais ,totalmente embaraçosa para o partido parlamentarista. Por
esta razão deve ser ideologicamente diluída até se tornar
irreconhecível» (...)
Mészáros chama a atenção para uma evidencia
esquecida: durante décadas de permanência no poder ,os partidos
social democratas escandinavos, tal como os da França, da Alemanha, da
Grã Bretanha não conseguiram (nem pretenderam) realizar
mudanças estruturais na ordem económica capitalista.
Comportaram-se como administradores dóceis do sistema.
A SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL
A tarefa principal dos partidos revolucionários que lutam contra o
capitalismo globalizado deveria consistir hoje em trabalhar pelo
fortalecimento e ampliação das forças que combatem o
imperialismo, hegemonizado pelo sistema de poder neonazi dos EUA.
As condições objectivas são favoráveis no momento
em que o povo do Iraque, numa resistência que assume as
proporções de uma insurreição contra os invasores,
surge como herói colectivo, batendo-se pela humanidade inteira.
São entretanto enormes as dificuldades a superar para que os povos
tomem consciência de que a defesa do planeta depende como nunca da sua
mobilização solidária com as vitimas das agressões
imperiais. Aos efeitos de uma manipulação mediática
perversa e alienante, concebida cientificamente, somam-se as
consequências paralisantes da acção do reformismo social
democrata. As campanhas tendentes a integrar a classe trabalhadora no sistema,
persuadindo-a de que somente alianças eleitorais amplas podem
aproximá-la dos seus objectivos são anestesiantes. Na Europa
Ocidental sobretudo o espirito combativo dos trabalhadores caiu acentuadamente
no ultimo meio século. O rumo das coisas no Brasil e na Argentina
confirma que um populismo reformista em determinadas situações
neutraliza as melhores potencialidades combativas das vitimas do sistema.
A solidariedade internacional somente pode funcionar no âmbito de uma
nova concepção estratégica da luta orientada para uma
articulação organizacional de acções ambiciosas da
classe trabalhadora. Tais acções são objectivamente
favorecidas pelo agravamento da crise estrutural do capitalismo.
Na impossibilidade, por ora, de um plano mundial de luta, as forças
progressistas mais lúcidas, em cada continente, em cada pais,
golpearão tanto mais o sistema de poder aí dominante quanto maior
for a sua capacidade para articular e executar acções concretas
,de âmbito nacional e internacional, que contribuam para inviabilizar os
projectos do imperialismo e das burguesias dele dependentes.
A reconstituição da solidariedade internacional ,de acordo com as
transformações ocorridas no mundo, é, portanto, um dos
maiores desafios que se colocam às organizações e
partidos revolucionários.
Neste contexto, a definição da frente de batalha principal e das
frentes complementares adquire grande importância, condicionando o tipo,
a dimensão e os fins das iniciativas a promover.
Se admitirmos que para o imperialismo estadunidense a frente
prioritária se localiza actualmente na Ásia, na área onde
o malogro da sua estratégia mais contribui para aprofundar a crise
interna do sistema, impõe-se uma conclusão: dinamizar a luta
contra a guerra passou a ser a tarefa prioritária das forças
progressistas em todo o mundo.
Trata-se de uma luta em que podem participar dezenas de milhões de
pessoas com mundividências muito diferentes.
A maré da contestação assumiu proporções
gigantescas em Fevereiro e março de 2003, quando mais de 20
milhões de pessoas saíram às ruas em grandes cidades para
condenar a guerra. Entretanto, depois de ocupado o Iraque, o protesto caiu
bruscamente. As massas não perceberam então que a
ocupação de Bagdad ficaria a assinalar o começo de uma
longa guerra de libertação.
É necessário que a maré do protesto volte a subir. O
momento é muito propicio para isso. A insurreição do povo
iraquiano desorientou Washington, que perdeu a iniciativa, passando á
defensiva no plano político, e sofrendo duros golpes no terreno militar.
No primeiro aniversário da agressão ao Iraque milhões de
pessoas voltaram a tomar as ruas em muitas cidades. Em Roma foram quase
três milhões, em Barcelona 150 000, em Madrid 100 000. É
significativo que a Itália e a Espanha ,por iniciativa de governos de
direita, tenham enviado para o Iraque importantes contingentes militares.
Mas a jornada de protesto não apresentou, contudo, a nível
mundial a amplitude das do ano anterior.
Na América Latina a participação popular foi
fraquíssima.
A oportunidade para ampliar a solidariedade com o Iraque - repito mais uma vez
- é óptima. A insurreição popular assumiu ali
proporções que alarmam a Casa Branca e o Pentágono. O
desmascaramento do novo governo títere e a exigência da retirada
das tropas estrangeiras encontram cada vez maior receptividade à
escala mundial. É preciso também insistir na denuncia dos crimes
cometidos pelas forças da Grã Bretanha, dos EUA e dos seus
satélites, e prosseguir com a desmontagem da campanha que apresenta
como rebeldes e terroristas os patriotas que resistem à
ocupação. O simples facto de Bush fazer da luta contra o
terrorismo a alavanca da sua campanha eleitoral envolve um convite á
reflexão. É um dever recordar que as guerras de agressão
contra os povos do Iraque e do Afeganistão resultaram ,segundo ele, da
necessidade de combater o terrorismo. É importante que em todo o mundo
a classe trabalhadora tome consciência de que o terrorismo de Estado
estadunidense repito- assumiu já contornos neofascistas.
Camaradas e amigos
Na Europa estremecem os alicerces de uma União Europeia cujos governos,
não obstante as contradições de interesses existentes,
actuam no fundamental como cúmplices do imperialismo.
Na América Latina emocionantes lutas se perfilam no horizonte. Os
protestos contra a guerra coincidem com a luta contra o Plano Colômbia e
o Puebla-Panamá, tal como a exigência do encerramento das bases
norte-americanas, incluindo a de Guantanamo. Essa exigência tende a
assumir maior amplitude no momento em que o Pentágono pretende
reforçar a sua implantação militar na Amazónia e na
América Central.
A jornada continental contra a ALCA será também um gesto de
solidariedade com aqueles que no Iraque, no Afeganistão e na Palestina
se batem contra o sistema. O mesmo se pode dizer da acção
continental de solidariedade com aqueles que se manifestaram nos EUA durante a
Convenção Republicana, contra a reeleição de Bush.
Não é impossível que o senador Kerry ,se eleito (o que
parece pouco provável), na tentativa de branquear a imagem da democracia
no seu pais, decida tornar públicos documentos secretos altamente
comprometedores para a Administração Bush. Essa é uma
velha prática dos presidentes dos EUA: denunciar crimes daqueles que os
precederam na Casa Branca.
Seria, entretanto, uma ingenuidade acreditar que a simples mudança de
presidente determinaria uma guinada de 180 graus na política externa dos
EUA. Kerry e o seu companheiro Edwards contestam o calendário da guerra,
a estratégia utilizada e a metodologia. A principal
acusação a Bush é a de ter mentido ao povo dos EUA a
partir de informações falsas, afirmando que o Iraque
possuía armas de extinção maciça. Mas Kerry
não condena a agressão; aprova-a. E na sua campanha já
advertiu que defende a permanência no Iraque das tropas dos EUA.
É significativo que tenha criticado asperamente Zapatero quando o novo
governo de Madrid, respeitando um compromisso assumido, decidiu retirar as
forças espanholas daquele país. Um dos seus objectivos é
comprometer a França e a Alemanha naquilo a que chama «a
reconstrução do Iraque».
O problema dos EUA não é fundamentalmente o do ocupante da Casa
Branca. A raiz do mal está sobretudo no sistema de poder, na
estratégia imperial de dominação, inseparável do
funcionamento das engrenagens do capitalismo globalizado, corroído por
uma crise estrutural.
Camaradas, amigos
A alternativa Socialismo ou Barbárie é, por si só,
definidora de uma época simultaneamente trágica e fascinante. Se
conseguirmos travar a marcha para o abismo, o homem poderá, finalmente,
caminhar pelas grandes alamedas de acesso a um mundo que responda a
aspirações eternas da sua condição. Mas o desfecho
é, por ora, uma incógnita. Dependerá das actuais
gerações. É indispensável derrotar um monstruoso
sistema de dominação, um IV Reich em formação.
Nessa batalha ecuménica a participação de
organizações e partidos revolucionários de novo tipo
assumirá enorme significado. Mas onde estão eles?
pergunta-se. Admito que muitos vão definir-se e crescer no
próprio processo de luta.
Entretanto, a tarefa de criar condições para acelerar a crise do
sistema imperial, através da mobilização dos povos, exige
esclarecer a questão fundamental da(s) alternativa(s). Insistir pela
elaboração imediata de uma alternativa teórica ao
neoliberalismo, de âmbito mundial, somente pode conduzir a debates
estéreis, como já afirmei. Na actual fase histórica esse
objectivo é utópico.
O consenso em torno de um projecto de sociedade futura de povos de
forças políticas e sociais distanciadas por ideologias e
vivências culturais muito diferentes, quando não
antagónicas, é não me canso de repetir tal
evidência uma impossibilidade.
Mas a mobilização mundial orientada para acções de
luta de cidadãos com ideologias e culturas diferenciadas
contra a guerra e o terrorismo de estado que a promove, essa é
possível, como já ficou demonstrado no ensaio geral de Fevereiro
de 2003. Levar mais longe essas acções, multiplicá-las,
ampliar-lhes os objectivos no decurso da luta, inclui-las numa plataforma comum
eis o desafio maior que enfrentam hoje os revolucionários de
todas as nacionalidades.
A história da humanidade apresenta-se indissoluvelmente ligada a
desafios que na aparência se apresentavam como insuperáveis. A
Revolução francesa de 1789 nasceu como um desses desafios. O
mesmo se verificou com a Revolução Russa de Outubro de 1917. E
ambas venceram.
Ninguém diria que nos anos 60 que o Vietnam obrigaria os EUA a dobrarem
os joelhos e retirarem-se, derrotados. E isso aconteceu.
Há poucos meses a ideia de uma insurreição popular no
Iraque era recebida com sorrisos. Hoje, ela é uma realidade.
Sou optimista. A vitória está ao nosso alcance. E nela a
juventude, como os intelectuais, tem, a nível mundial, um
insubstituível papel a desempenhar ao lado da classe trabalhadora. A
luta contra o sistema imperial não visa já somente mudar a
vida. Hoje, como diz Georges Gastaud, é para a salvar que se torna
indispensável abolir a exploração.
____
Notas
1. István Mészáros,
The Power of Ideology,
Harvester Wheatshea, Londres, 1989
2. Jonh Holloway ,
Cambiar el mundo sin tomar el poder.
Ed. da revista argentina
Herramienta,
Buenos Aires, e da Universidade Autonoma de Puebla, México, 2001.
[*]
Intervenção no Encontro Internacional
«Civilização ou
Barbárie», Serpa, 24 de Setembro de 2004
Este artigo encontra-se em
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