por Miguel Urbano Rodrigues
Fala-se e escreve-se muito dos guerrilheiros das Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia -- quase sempre para os caluniar -- e
pouco das guerrilheiras. A maioria dos europeus ignora que milhares de mulheres
combatem nas 60 Frentes em que as FARC lutam naquele país.
Conheci muitas em 2001, nas semanas vividas num acampamento amazónico da
organização revolucionaria.
Como transmitir no breve espaço de uma crónica, o que em mim
ficou do contacto com essas guerreiras de novo tipo?
Encontrei ali moças tão diferentes que seria redutor o
esforço para esboçar o choque emocional provocado pelo
descobrimento das combatentes das FARC. De comum entre elas apenas a coragem, a
capacidade de adaptação a condições de vida
duríssimas e uma confiança total na justiça da luta das
FARC e na vitoria final, sem data.
No meu acampamento somente uma não tinha companheiro. Apenas Eliana
ultrapassara os 40. A maioria não atingira os 25 anos. A ética da
guerrilha impunha normas que eram respeitadas. Se dois namorados pretendiam
estabelecer uma relação amorosa informavam o comandante. A
infidelidade não era tolerada pelo código da guerrilha. A
pareja
era autorizada a dormir na mesma
caleta,
o estrado-cama que, sob um toldo de plástico, na grande floresta, fazia
as vezes de casa. O regulamento proibia também que os guerrilheiros,
homens ou mulheres, mantivessem relações sexuais com hospedes das
FARC.
Mas não havia moralismo. Se um casal decidia pôr termo à
relação comunicava essa decisão ao comandante. O gesto
consumava a separação.
As mulheres realizavam os mesmos trabalhos que os homens, desde o treino
militar à abertura das latrinas. Iguais direitos, tarefas
idênticas.
O quotidiano dos acampamentos não permitia a privacidade a que hoje
estamos acostumados na vida quotidiana. Na selva, infestada por transmissores
de doenças perigosas, o banho diário é
imprescindível à defesa da saúde. As mulheres banhavam-se
no rio ao lado dos homens numa atmosfera de camaradagem e respeito que me
impressionou. Elas de calcinhas, eles de cuecas. As normas do pudor, tal como
as conhecemos, não podiam funcionar ali. Mas nunca, nem nos olhares nem
nas palavras testemunhei atitudes da qual transparecesse um comportamento
machista.
Elas, tal como eles, tinham diferentes origens sociais. Algumas tinham vindo
de grandes cidades, outras dos
llanos
ou dos vales quentes, outras ainda das terras frias da Cordilheira. A origem
social transparecia mais no diálogo do que no comportamento, porque
raparigas de famílias camponesas haviam adquirido uma sólida
formação ideológica.
Para surpresa minha quase todas eram bonitas.
Na Aula o lugar onde à noite o colectivo da guerrilha se reunia
para assistir a palestras e debater o tema com o «professor»
convidado tive a oportunidade de falar mais demoradamente com algumas
que mal conhecia, como a Adriana e a Jenny.
O meu trabalho exigiu contactos muito frequentes com quatro: a Gloria, a
Eliana, a Yurleni e a Isabel.
Glória era a secretária sem titulo do comandante Raul Reyes. De
origem pequeno burguesa, adquirira uma formação marxista ampla,
pouco comum. Era a responsável pelos computadores e pelas
transmissões por radio, serviços instalados num
«escritório» que se diferenciava das
caletas
apenas pela sua maior dimensão. Enviava mensagens codificadas e
decifrava as recebidas. A sua intimidade com o mundo da informática
fazia de mim um aprendiz bisonho.
Era muito bonita e nem o uniforme lhe afectava a feminilidade. Foi durante as
lentas viagens para El Caguan, através de uma estrada
imprevisível que rompia as matas da região- ela guiava carros
pesados como uma profissional- que do seu passado soube aquilo que me
contou. O suficiente para eu entrever nela uma personagem de novela que
irradiava uma intensa alegria de viver.
Em Eliana encontrei uma revolucionaria de outro tipo. Responsável pela
intendência, ocupava-se com zelo de tudo o que se relacionava com o
abastecimento do acampamento. A sua beleza não era física. De
meia idade, entroncada, brusca nos movimentos, alcançara o grau de
subcomandante e o seu currículo de combatente dissipava duvidas sobre
os méritos da guerrilheira. Era de poucas falas, mas, ao volante de um
camião, respondia com rapidez e segurança às perguntas que
eu formulava sobre a historia das FARC e a organização do
acampamento.
Yurleni, a
ranchera,
projectava a imagem de uma jovem camponesa desinibida, faladora , com uma
espontaneidade tocante. Passava o dia na cozinha preparando as
refeições dos convidados. Quando apreciávamos um prato de
caça ou uma especialidade colombiana reagia tão efusivamente
que até comunicava o facto ao seu papagaio palrador, empoleirado num
arbusto, ao lado do bidão da água, no terreiro por onde
deambulavam galinhas e o
quati,
mascote da guerrilha. Yurleni tinha um companheiro, John, e dizia ser mais
feliz do que algum dia pudera imaginar. Menina, tinha uma obsessão: ser
soldado. Mas acabou nas FARC quando percebeu que era mentira o que delas
contavam e que a guerrilha era, essa sim, um exército de heróis,
como outro não existia .
Em Isabel, a historiadora, descobri uma romântica. Foi a ideologia,
absorvida na universidade, que a empurrou para as FARC. Encontrava-se no umbral
de uma vida de comodidades, já com um mestrado e trabalhando numa
organização internacional que lhe garantia um salário
mensal de quase 2000 dólares quando....
Ela hesitava ao chegar aí e eu interrompia, tentando descer às
raízes da opção que a fizera mudar de rumo.
- O tempo de reflexão foi breve- respondia -. Eu sentia um nojo
crescente pelo tipo de vida que se abria para mim. Não queria ser
triturada pelo sistema. O apelo foi irresistível. Ajudada por amigos,
vim parar às FARC, que eu admirava sem as conhecer...
Isabel mantinha longas conversas comigo. Os temas ideológicos
fascinavam-na e encontrou em mim um interlocutor. Após um ano, sentia-se
ainda uma iniciada. Cumpria exemplarmente todas as tarefas, verifiquei que
atirava muito bem, mas a insegurança atormentava-a.
A beleza de Isabel chamava a atenção pela suavidade. Tinha uma
pele muito branca, uns olhos enormes, luminosos e um corpo onde tudo parecia
certo pela forma e a proporção. Do conjunto desprendia-se
irrealidade.
Um dia perguntei-lhe porque, sendo tão bela, não tinha
companheiro.
Levou tempo a responder:
- Sabes, isso faz-me sofrer. Mas não pelo
que possas
pensar. Alguns camaradas, já me perguntaram por que os recusei. Pensam
que é uma atitude de classe, mas o motivo é outro. Eu faço
uma ideia muito grande do amor e ainda não encontrei alguém
que me abra ao amor...
Naturalmente Gloria, Eliana, Jenny, Adriana, Yurleni, Isabel eram nomes de
guerra. Desconheço-lhes os nomes reais.
Na sede das FARC, em San Vicente del Caguan, conheci outra guerrilheira, a
Nora, da qual conservo, nítida, na memória a lembrança
de alguém que me apareceu como símbolo das mulheres das FARC.
Ela estava então na legalidade relativa da época e por isso
publiquei-lhe o retracto numa reportagem. O companheiro tinha caído em
combate pouco antes.
Nora atendia na recepção todos os estrangeiros que chegavam
à Zona Desmilitarizada. Apareciam ali muitos jornalistas que
pretendiam entrevistas com os dirigentes mais destacados das FARC, incluindo
Manuel Marulanda, o legendário
Tiro Fijo
cuja morte fora anunciada vinte vezes por sucessivos governos. Era
difícil a tarefa, mas Nora resolvia os problemas mais delicados. A voz
e a doçura da guerrilheira desarmavam o protesto, quando os
visitantes não obtinham o que pretendiam. Fundia uma suavidade tocante
numa firmeza de combatente veterana.
Fechava-se quando as minhas perguntas incidiam sobre o seu mundo interior.
Nunca me falou do companheiro perdido, mas a palavra tristeza subia na minha
memória quando a escutava . No dia em que me despedi dei-lhe um par de
botas e uma lanterna. Indispensáveis na selva , não teriam mais
utilidade para mim.
- Podem ser úteis para algum camarada -- comentei quase envergonhado.
Nora abraçou-me, sem uma palavra, e o seu
gracias compañero
chegou acompanhado do único sorriso que lhe vi esboçar
naqueles dias.
Hoje, quando leio ou escuto calunias sobre as FARC, o meu pensamento viaja para
as selvas e montanhas da Colômbia. No turbilhão de imagens que
então me envolve não é sem comovida
admiração que revejo as guerrilheiras que ali conheci. Aquelas
mulheres aparecem-me como símbolo da confiança na
transformação revolucionaria da vida.
O original encontra-se em
http://www.avante.pt/noticia.asp?id=6514&area=19.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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