Álvaro Cunhal, um grande da História

por Miguel Urbano Rodrigues

Álvaro Cunhal, foto de 1998. Álvaro Cunhal nasceu ha 91 anos, no dia 10 de Novembro.

São os povos, colectivamente, como sujeito da história, que transformam a vida, mas é inegável que alguns homens e mulheres contribuem por vezes decisivamente para lhe inflectir o rumo.

Álvaro Cunhal ficará pelo tempo adiante como um desses seres excepcionais. Poucos portugueses marcaram tão profundamente a história do nosso pais no século XX. Talvez nenhum tenha sido tão caluniado e injuriado pelas forças da reacção e por todo um feixe de adversários de múltiplos quadrantes ideológicos.

Vasco Gonçalves afirmou recentemente que o 25 de Abril será recordado como a revolução mais importante e profunda que abalou a Europa Ocidental desde a Comuna de Paris. Enunciou uma evidência que a burguesia tenta esquecer. Mas é igualmente transparente que sem a sua intervenção pessoal e a de Álvaro Cunhal nos acontecimentos, a Revolução não teria sido aquilo que foi.

Lenine dizia que sem teoria revolucionária e sem organização revolucionária não ha revolução possível. No caso português, embora o derrubamento do fascismo seja devido a uma vanguarda armada, o MFA, a situação criada pelo golpe militar não teria desembocado numa ruptura revolucionária sem a adesão imediata e torrencial do povo. O papel dos comunistas nesse fenómeno social, que pelas suas características surpreendeu a Europa e o Mundo, ainda não foi suficientemente estudado. Mas a grande e generosa vaga inicial, marcada pelo espontaneísmo, teria baixado rapidamente, se o PCP não conseguisse com êxito canalizar, através de uma participação organizada, a combatividade das massas, nas cidades, nas áreas industriais e nos campos do Alentejo e do Ribatejo, para objectivos estratégicos que ultrapassavam largamente as reivindicações conjunturais.

Se é um facto que as grandes conquistas de Abril se concretizaram no breve período compreendido entre o malogro da intentona da "maioria silenciosa" e o 25 de Novembro, cabe recordar que a defesa tenaz dessas mesmas conquistas quando principiou a contra-revolução não teria sido também viável se na época uma percentagem importante dos trabalhadores não houvesse resistido com lucidez e firmeza à ofensiva restauradora das forças da direita tradicional dirigida pelo Partido Socialista.

É sobretudo ao longo da escalada contra-revolucionária que a intervenção de Álvaro Cunhal pesa no caminhar da Historia. Não foi algo inesperado. Em duas obras fundamentais escritas durante a clandestinidade — Rumo à Vitória e A Reforma Agrária em Portugal — os historiadores encontram já claramente definido o pensamento de um revolucionário no qual coexistem harmoniosamente o ideólogo, o estadista, o estratego, o dirigente partidário e o intelectual que consegue contemplar o movimento da história atento ao imediato e simultaneamente com o distanciamento e a serenidade de um artista.

Durante mais de uma década, tive a oportunidade de encontrar Álvaro Cunhal com muita frequência. Esse privilégio resultou de tarefas que eu, como militante comunista, cumpria. Mas abriu portas a um olhar diferente sobre o humanista que a secura aparente do dirigente político ocultava.

O secretário geral do PCP que surgia na televisão e discursava nos grandes comícios do Partido foi durante muitos anos um desconhecido para a esmagadora maioria dos portugueses. Mesmo para os seus camaradas não era fácil lançar as pontes entre a personagem que actuava no grande cenário da História e o autor de romances e novelas (editadas sob o pseudónimo de Manuel Tiago), o pintor, o ensaísta, o artista incompatível com exclusões dogmáticas, fascinado pelos génios do Renascimento e admirador e «explicador» de outros, contemporâneos, dos impressionistas a Picasso, capaz de sentir a beleza eterna de uma catedral gótica e o encanto intemporal de uma criação de Niemeyer.

É minha convicção que a Revolução Portuguesa, por força de uma guinada não prevista da História — a implosão da URSS — não teria podido sobreviver se houvesse seguido em frente no ano 75. O desaparecimento do Socialismo na Europa inviabilizaria a continuidade da experiência desafiadora que se propunha a transformar Portugal numa sociedade não capitalista, vocacionada para erradicar a exploração do homem pelo homem.

Mas o rumo da história não se decide a partir de acontecimentos que ainda não se produziram. No ano 75, quando a Revolução Portuguesa foi traída, era impensável o desaparecimento da URSS e a hegemonia bárbara e planetária dos EUA.

Defender as suas conquistas era uma exigência revolucionaria. Foi então, repito, que Álvaro Cunhal se agigantou e o Partido Comunista Português terá, sob a sua direcção, adquirido num batalhar permanente, dentro do quadro constitucional, a estrutura e o perfil que o projectaram no mundo como exemplo de organização partidária que utilizava na luta como guia para a acção o marxismo-leninismo, não como breviário escolástico, mas como teoria (e praxis) criadora em permanente renovação como a concebeu Lenine. Não foi por um capricho que o seu livro O Partido com paredes de vidro — reflexão sobre o PCP como partido revolucionário da classe operária — não foi publicado em alguns países da Europa Oriental. Os dirigentes dos partidos burocratizados no poder temiam os efeitos da frontalidade com que Álvaro Cunhal abordava a temática de desvios e erros incompatíveis com a concepção leninista do partido revolucionário. Na maioria desses países as organizações comunistas, distanciadas do povo e em ruptura com os princípios do marxismo, actuavam já como caricaturas do que deve ser um partido comunista.

Foi na fidelidade à sua opção revolucionária de comunista e ao seu respeito pela história profunda que Álvaro Cunhal num dos seus últimos livros — A verdade e a mentira sobre a Revolução Portuguesa - A contra-revolução confessa-se — iluminou o quadro nebuloso em que a revolução de Abril foi traída.

Tão fundo desceu na atribuição de responsabilidades que — o tempo enfraquece a memória — até mesmo personalidades progressistas admitiram que exagerou na culpabilização de Mário Soares.

Não estamos perante uma questão secundaria. Vasco Gonçalves — outro grande português — usando linguagem diferente, chega a idêntica conclusão.

Essa autenticidade de Álvaro Cunhal no rigor com que evoca a revolução traída é indissociável da sua grandeza humana.

O Partido foi para ele o instrumento da revolução concebida como um infinito absoluto sem o qual a existência perderia significado.

Encontramos a mesma grandeza na opção que precedeu a passagem do testemunho como secretario geral do PCP.

São muito escassos exemplos como o seu.

Não esqueço palavras que lhe ouvi um dia, já ultrapassados os 70:

— As tarefas de secretário geral de um Partido como o nosso exigem alguém em plena forma mental e física. Saberei deixar o cargo na altura própria...

E ele o fez de maneira exemplar, preparando a transição com o desprendimento próprio de um revolucionário ímpar.

Para terminar este texto, escrito no aniversario de Álvaro Cunhal, recordarei uma das muitas estórias ligadas à prolongada relação de trabalho com ele mantida.

No regresso de uma viagem à Bulgária eu, impressionado pela leitura de um ensaio de James West, da Comissão Política do Partido Comunista dos EUA, e de conversas com ele, publiquei um artigo intitulado, se a memória não falha, "As origens do eurocomunismo no browderismo ". Era uma reflexão que estabelecia a ponte entre a vaga do eurocomunismo e o revisionismo de Earl Browder que produziu efeitos devastadores em muitos partidos comunistas da América Latina.

A secretária de Álvaro Cunhal telefonou-me informando que ele tinha urgência em falar comigo.

Encontrei-o numa péssima disposição. Agitava na mão o jornal onde parágrafos do artigo estavam sublinhados a vermelho e azul.

Escutei uma catilinária devastadora. Durante minutos não tive oportunidade de pronunciar uma palavra em minha defesa.

Qualificou a publicação do artigo de atitude irresponsável, de erro imperdoável. Em tom duríssimo foi acumulando censuras.

Quando o fluxo de criticas abrandou um pouco, tentei expor a minha posição, sublinhando que um simples artigo meu, militante desconhecido em Paris e Roma, não poderia criar tanto problema ao Partido.

Logo me interrompeu:

— A esta hora, o artigo, transmitido para Itália e França, já estará em cima da secretária do Berlinguer e do Marchais. Vai ser interpretado como um ataque indirecto, não teu, mas do PCP ao PCI e ao PCF. Causaste um prejuízo irreparável, sem conserto possível. O mal está feito...»

Mas, subitamente, a expressão do seu rosto suavizou-se, o tom de voz mudou e, olhando-me de frente, falando pausadamente, pôs-me uma mão no ombro e atirou-me para o mundo do absurdo e do inesperado. As suas palavras ficaram para sempre gravadas na minha memória:

— Devo esclarecer que acho o artigo inteligente e bem escrito. Estou de acordo com o conteúdo. Noutras circunstancias poderia assiná-lo. Mas neste momento a sua publicação foi desastrosa.

O episódio ajuda a compreender a dimensão humana do dirigente revolucionário que completa agora 91 anos.

Parabéns, Álvaro!

Publicado em simultâneo com a edição de hoje do semanário Alentejo Popular .

Versão em italiano deste artigo em http://www.resistenze.org/sito/te/cu/st/cust4n01.htm.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

10/Nov/04