Criando uma Sociedade Justa:
Lições da planificação na URSS & nos EUA

Entrevista com Harry Magdoff

por Huck Gutman [*]

Harry Magdoff. Foto de 1985 “No começo de julho de 2002, perguntei a Harry Magdoff, co-editor da Monthly Review durante 34 anos, se aceitaria ser entrevistado para o Statesman , um jornal de Kolkata, Índia, para o qual escrevo comentários políticos. Nossa primeira entrevista foi tão satisfatória que continuamos por várias sessões. O que se segue é uma discussão sobre algumas das considerações de Harry sobre o que podemos aprender da experiência da União Soviética. Minha primeira pergunta foi sobre seu encontro com Che Guevara.”

HARRY MAGDOFF: Quando Che Guevara veio a Nova York para uma reunião nas Nações Unidas, pediu para encontrar-se comigo e com a minha esposa, Beadie. Recordo que lhe ofereci três livros. Um deles era uma história do SNCC, de Howard Zinn, o segundo não me lembro do título e o terceiro, o mais importante, era um livro técnico de Piero Sraffa, “Produção de Mercadorias por meio de Mercadorias” (1960).

Expliquei a Che a razão pela qual eu estava a oferecer-lhe este livro, ou seja, por acreditar ser errôneo envolver-se em todo tipo de discussões teóricas limitadas sobre aspectos da planificação baseada em fórmulas, ou em Marx. Disse a ele que eu pensava que se deveria observar as decisões econômicas concretamente, em termos das condições do país e do período em foco. Eu estava indiretamente criticando a decisão dos líderes de Cuba, na época, de alcançar a produção de dez milhões de toneladas de açúcar, sem considerar as limitações de tal objetivo, como a condição das centrais açucareiras. Havia a questão do processamento e não apenas a do corte da cana. Disse a ele: “O importante é que quando os planos forem elaborados, os planejadores, aqueles que propõem as diretrizes e os números, reflitam sobre alternativas políticas concretas à luz das condições práticas.”

Então ele riu e contou que quando estava em Moscou, seu anfitrião Kruschev, líder do partido e do governo na época, conduziu-o como um turista político. Passeando pela cidade, Che disse a Kruschev que gostaria de encontrar-se com a comissão de planificação. Kruschev perguntou: “Por quê? Eles são só um bando de contabilistas”. Por outras palavras, Che sabia a que eu me referia, isto é, que o planejamento não era simplesmente técnico, mas principalmente político. De um ponto de vista histórico, é importante saber o que essa anedota revela. Há, aqui, um profundo significado, que reside nas próprias origens e no modo pelo qual a planificação foi conduzida na União Soviética.

Muitas pessoas de esquerda bem como de direita concordam que as dificuldades econômicas na União Soviética provam que não se consegue planificar um país. Ainda assim, creio que uma visão histórica da maneira pela qual o planejamento se desenvolveu na URSS se relaciona com a compreensão de suas falhas posteriores. E também com a compreensão da maneira pela qual o sistema político se desenvolveu. Planificar era obviamente essencial no começo, após a revolução. Três planos foram propostos.

Huck Gutman: Falamos aqui sobre o Primeiro Plano Qüinqüenal?

MAGDOFF: Isso foi no início. Começaram a planificação. Sobreviveram à guerra civil, muitas guerras civis, em que a sua economia foi "lançada no inferno”. Não existiam trabalhadores, as fábricas estavam vazias, os melhores trabalhadores ou foram assassinados ou estavam ocupados com os assuntos governamentais, de forma que o problema da retomada da produção era extremamente importante. Seu plano temporário, que denominaram de novo plano econômico, abriu certas portas, mas acabou indo contra as necessidades do povo.

Então os economistas esboçaram três planos. Um era baseado numa visão muito prática de quais eram os limites de suas reservas, e os recursos necessários para impulsionar a economia. Este plano representava a visão mais realística do que poderia ser feito. Havia um segundo plano que postulava que se poderia fazer um uso mais eficiente dos recursos. E um terceiro plano, esboçado sem levar em contas os recursos, com base na força de vontade das pessoas e no seu desejo de agir. Este último prometia maiores conquistas. Foi o menos conservador dos planos, e assumiu uma grande responsabilidade sem levar em conta os limites existentes.

Agora, a decisão de qual plano escolher foi tomada não pelos planificadores ou economistas, mas sim pela comissão política do partido, que escolheu o terceiro. Esse plano, que dependia em grande medida do apelo ao voluntarismo do povo, rapidamente revelou-se satisfatório em algumas áreas. A partir disso, a Comissão Política decidiu que o plano poderia ser cumprido em quatro anos e meio, mesmo que ainda houvesse sérias objeções acerca da possibilidade de cumpri-lo em cinco anos!

Para cumpri-lo em menos de cinco anos, ou em cinco anos, requeria, em um sentido, uma militarização da economia. A militarização pode ser uma grande palavra, mas a mobilização econômica tomou a forma de um economia de guerra. Diretores fortes, pressionando as pessoas ao extremo, perseguindo aqueles que não produzissem por várias razões, culpando-os como indivíduos: o esforço tomou a forma tanto de uma economia de guerra como de um sistema político em que as diretrizes eram impostas do alto. Essas diretivas tinham de ser cumpridas; não eram postas em discussão, não era uma questão de tentativa e de erro. Tudo tinha de ser feito, e ser feito às pressas e sob mão de ferro; pois tratava-se da grande conquista. Da mesma forma, os agricultores foram forçados à coletivização.

Para alcançar a sua meta, era necessário um esforço especial que exigia o máximo de recursos existentes, mais especificamente utilizando toda a mão-de-obra disponível. Isso dependia da produtividade do trabalho e da extração de matérias-primas. Dependia também do incremento da maquinaria, sem levar em consideração os custos de reparos das máquinas existentes e de sua substituição. A pressão para agilizar o desenvolvimento tornou-se maior com a ascensão do fascismo e o perigo de guerra.

Assim, o desenvolvimento da economia antes e depois da Segunda Guerra Mundial, quando havia boas oportunidades para uma expansão, dependia do fornecimento de recursos. Quando esses fornecimentos alcançaram um limite, a economia também chegou a um limite. Os recursos de trabalho minguaram com tantas pessoas mortas durante a guerra. As matérias-primas eram mais difíceis de obter do que se esperava. Para crescer, muitas fábricas foram construídas sem se levar em consideração a reparação das antigas. Em muitos casos, as reservas destinadas a manter a maquinaria existente foram transferidas de uma fábrica e usadas para construir uma outra. Estes elementos não resumem toda a história, mas, na minha opinião, foram elementos-chave que conduziram a economia soviética à estagnação.

Enfatizo aqui o modo pelo qual o plano foi desenvolvido e as políticas que daí surgiram. Acredito que a separação entre planificadores, técnicos e economistas, e a poderosa comissão política do Partido, era um elemento importante nas dificuldades que apareciam. Primeiramente, leigos tomavam as decisões econômicas, baseando-nas em decisões políticas sobre o que seria melhor do ponto de vista imediato, embora naturalmente houvesse o sentimento implícito de que o curso seguido era o melhor para o povo. Mas, ao mesmo tempo, um sistema político semelhante a uma economia de guerra já estava sendo estabelecido.

Diferenças significativas apareceram entre as pessoas, e uma categoria privilegiada desenvolveu-se, embora não similar àquela do mundo capitalista. Na União Soviética, aqueles que eram a intelligentsia ou os que eram diretores de fábricas, ou diretores de grandes secções do partido, eram privilegiados. A eles eram reservados os melhores hospitais, conseguiam comida de melhor qualidade, moravam em melhores apartamentos, freqüentavam locais de veraneio.

Ao mesmo tempo, a União Soviética construía escolas, hospitais, conquistas significativas sob este sistema. Mas à despeito da ênfase na proteção aos trabalhadores e agricultores, a maneira pela qual a planificação estava projetada conduziu não apenas à formação de uma classe privilegiada, mas também neglicenciou áreas fora das grandes cidades, fora das regiões privilegiadas, o que comprometeu a continuação do desenvolvimento nacional. Regiões da União Soviética no sul, na Ásia Central e no oeste próximo à China eram bem menos desenvolvidas. Existiam hospitais no Usbequistão que não tinham água, e cidades que não tinham esgôto.

Na verdade, mesmo em regiões mais avançadas, não existiam boas estradas do campo até a cidade, e não se prestava atenção à agricultura. De forma que os erros, ou as males, se você preferir, surgiram de uma situação histórica: o caráter da sociedade emergiu disso.

Mas deixe-me dizer que não era uma questão de má planificação, ou da impossibilidade de planificação. Se você está adaptando uma sociedade para encontrar as necessidades das pessoas você tem de planejar. Não há outro caminho.

GUTMAN: Harry, você mesmo se envolveu profundamente com a planificação americana no tempo da guerra, e tem um conhecimento de como essa planificação ocorreu. Os anos 40 viram o maior envolvimento estatal na produção da história americana, cujo resultado foi um salto da América no desenvolvimento industrial e econômico. Você poderia comparar a planificação na União Soviética àquela que se deu nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra? Por que, para ser específico, foi o processo de planificação bem sucedido nos Estados Unidos?

MAGDOFF: Em grande parte, pelo fato de a América possuir uma indústria de máquinas capaz de produzir máquinas. Também tinha infraestrutura adaptável e fontes de matérias-primas.

GUTMAN: Então estavam mais bem estruturados.

MAGDOFF: Sim. Mais ainda, para possuir um exército que pudesse combater os inimigos em ambos os continentes, possuir navios, aviões, artilharia e tudo com ela relacionado, era necessário algo além da economia existente.

GUTMAN: Certo.

MAGDOFF: A produção tinha de mudar. Por exemplo, existiam ordens do governo para que não fossem construído carros para civis. As fábricas eram usadas para construir equipamento militar. Eles construíam “jeeps” e carros para fins militares. Nem casas para civis eram construídas.

As decisões eram tomadas pelo Departamento de Produção de Guerra (War Production Board) , o qual, escorado na autoridade governamental, requeria a alocação de recursos, o que significava prover recursos para uma área e não ter suficientes recursos para o que era menos importante.

GUTMAN: Você trabalhou para o Departamento de Produção de Guerra?

MAGDOFF: Sim. Aqui está um exemplo que me parece revelar a essência da planificação. Durante a década de trinta existiu uma oferta de carne e leite, além de outros produtos. Um dos problemas daquela época era “Como se livrar da oferta?” Se você não o fizesse, uma crise poderia atingir os agricultores.

Da noite para o dia, a oferta de carne se transformou em escassez de carne. Com chegada da guerra, as pessoas tinham emprego, e podiam comprar carne. As pessoas no exército eram alimentadas pelo governo. E, repentinamente, para enfrentar a situação, tinha-se de racionar.

E o mesmo ocorreu com outros produtos, como carros e gasolina; havia uma distinção evidente entre aqueles que tinham direito a um carro, ou o quanto de gasolina se poderia consumir. Anteriormente não existia nenhum problema: a única questão era o dinheiro. Com a planificação, em outras palavras, dinheiro não era a questão; a questão agora dizia respeito ao que era importante para a sociedade.

Você não pode desenvolver uma sociedade decente que cuide do menor, do mais pobre, o mais discriminado, sem proporcionar recursos para tanto. E você não pode fazê-lo através da economia monetária usual, você não pode fazê-lo através do mercado. Isto tem de ser uma decisão consciente. Como fazê-lo democraticamente é um desafio. Não há uma resposta fácil ou atalho para isso.

Há algo que deve ser reconhecido, que você nunca terá um plano perfeito. Existirão erros. Mas tem de haver espaço para tentativa e erro.

GUTMAN: E também para corrigi-los.

MAGDOFF: Exatamente, considerando o que a população necessita, o que é melhor para as pessoas.

GUTMAN: Harry, deixe-me ver se entendi corretamente. Primeiro, que no Primeiro Plano Qüinqüenal existiam falhas que poderiam se multiplicar no futuro, e que uma das principais falhas era que não se podia contabilizar os recursos disponíveis. Talvez isto fosse muito utópico. Estas são minhas palavras, não as suas.

MAGDOFF: Não não, você está certo.

GUTMAN: E que lá desenvolveu-se, porque os objetivos eram estabelecidos pela burocracia dos políticos, uma estrutura de decisão imposta do topo. Essa era a segunda maior falha. A terceira que você citou era aquela que levou à formação de uma classe político-administrativa privilegiada, se assim posso dizer, em vez de desenvolver uma sociedade sem classe, criou um novo tipo de classe que então só buscava seu próprio interesse.

MAGDOFF: O efeito imediato da revolução foi uma tremenda mudança social. Mas a economia dirigida, sob condições onde a diretiva era mais importante que tudo, não permitiu uma mudança no envolvimento da classe trabalhadora na tomada de decisões. Não houve espaço para tentativas e erros, nem para condições democráticas, em que você pudesse apontar os erros sem ficar com medo de ser preso.

GUTMAN: Assim, na ausência de condições democráticas e com um tipo de classe político-administrativa ou casta ou burocracia encastelada, quando eles vieram com novos planos após o Primeiro Plano Qüinqüenal, eles preferiram seguir o primeiro plano e não se esforçaram para redirecionar as coisas.

MAGDOFF: Num sentido mais amplo, era planificar sem planificação.

GUTMAN: Como eles poderiam ter atuado de outra forma?

MAGDOFF: Não há como saber. As condições eram horríveis. Você necessitaria sempre de um imenso sacrifício por parte da população para efectuar qualquer tentativa de sanar as condições. Acima de tudo, muitos países estavam devastados pela guerra. A guerra civil prolongou-se por dois, três anos. Fazendeiros falidos, terras destruídas, fábricas abandonadas, grande parte da maquinaria roubada. Sob tais condições, existiam problemas reais, como a fome, e assim por diante.

A questão era decidir o que era mais importante e quem tomaria a decisão. O que eu estava enfatizando não era tanto os três planos, mas sim ilustrar o fato de que a decisão era tomada por um pequeno grupo na liderança do governo, e, no sentido de cumpri-la, eles tinham de ser cada vez mais ditatoriais, cada vez mais burocráticos, no seu modo de agir.

Mas você poderia identificar a conexão lógica entre isso e o desenvolvimento de diferenças entre as pessoas. Porque o líderes tinham de ter certos direitos e certas prioridades. Por exemplo, membros da Academia de Ciência, físicos e químicos, eram privilegiados. Pois, pelas características da sociedade em questão, necessitavam sobretudo de cientistas. Não há nada de errado em poder se alimentar e ter moradia, mas não se podia ter muitos com amplos privilégios sem que afetasse o restante da população.

Enquanto tremendos progressos foram feitos para proporcionar benefícios de saúde a toda a população, os hospitais para o cidadão comum eram muito diferentes dos hospitais para os privilegiados.

Significava que se podia sempre obter remédios suficientes em hospitais melhores e privilegiados, enquanto não se podia obter remédios suficientes em outros. Não era uma distribuição equânime.

Eram decisões políticas. É fácil falar sobre isso do lado de fora mas penso que o princípio — não estou pensando nisto agora como um estudo histórico da União Soviética — é tão essencial que necessita ser reconhecido para ultrapassar a noção de que a planificação não pode ser realizada.

Planificar para uma sociedade pode implicar em muitos fracassos e muitas dificuldades, mas é a única forma de se atingir as necessidades dos mais pobres e combater a enorme disparidade de riqueza, a enorme disparidade nos modos de vida das pessoas.

GUTMAN: Assim, os erros básicos que os soviéticos cometeram no início vão, num certo sentido, ao arrepio do que se necessita para o êxito de qualquer plano: o conhecimento dos seus recursos e o dos que existem no mundo real.

MAGDOFF: Existia um outro fator, as prioridades, o mais importante. O que fazia a diferença nos Estados Unidos durante a guerra era que as prioridades eram claras. Nem todos concordavam com as prioridades. Em relação à indústria, alguém poderia dizer “isso é o mais importante que aquilo”, no campo militar alguém poderia dizer “aviões são mais importantes que navios”. Então acordos ou compromissos tinham de ser estabelecidos.

No entanto, você tinha de ter prioridades. Tinha de saber o que vinha primeiro, e de definir a situação. Quando o exército americano foi cercado, você tinha de possuir aviões com mira de bombardeiro, e as miras necessitavam certos rolamentos. Neste caso, os rolamentos eram a prioridade. E os aviões que os utilizariam também eram prioridade. Porque você tinha de enfrentar aquela situação.

GUTMAN: Assim, se você necessitasse rolamentos para rodas de caminhões, esses seriam de prioridade menor?

MAGDOFF: Exatamente. A vantagem da União Soviética era que havia construído uma infra-estrutura industrial, que poderia mudar de uma área para outra, onde se pudesse estabelecer prioridades. Mas tinha de haver prioridades.

Ao lidar com uma sociedade com carência de recursos e de infra-estrutura, então você deve priorizar de uma forma mais rígida, segundo os princípios do governo. Como eu disse, os princípios do governo devem almejar satisfazer as necessidades básicas dos miseráveis da terra, dos discriminados e dos oprimidos. Não se deve pensar somente em termos do seu fortalecimento mas também em termos de como fixar prioridades para tal propósito. E compromissos são sempre firmados mas tem de ser como uma decisão bem definida. Aí é que está a importância de uma política pública.

Acabei de escrever um pequeno estudo, não sei se vou publicá-lo. Nos primeiros dias da Revolução Comunista Chinesa, uma de suas principais conquistas foi que um largo número de doenças contagiosas foram eliminadas. Isso foi feito com o apoio das massas, até o ponto de se matar quase todos os mosquitos. Mas, principalmente, educando-as e vacinando-as e assim por diante. Atualmente, a prioridade do sistema mudou em direção ao desenvolvimento da indústria, da economia, para se tornarem competitivas no mercado mundial. Existe um surto de epidemia de HIV e SIDA na China. E hoje a população nem mesmo está consciente dos perigos que essa epidemia representa. Aqui se nota a mudança nas prioridades, pois anteriormente essa situação seria tratada de forma diversa. Você não teria McDonald's, nem certos confortos, nem carros, mas teria a atenção centrada na epidemia de SIDA, equipando hospitais para exames de sangue. As pessoas também não seriam obrigadas a vender seu sangue por cinco dólares para obter comida.

GUTMAN: Na planificação durante a Segunda Guerra, você tinha uma prioridade clara, que era...

MAGDOFF: Nem sempre existia uma prioridade clara. Existia uma extrema carência de máquinas operatrizes, essenciais para o trabalho com metal. Não somente existia esta carência de máquinas operatrizes, mas uma péssima distribuição das disponíveis. Fábricas fundamentais não podiam operar por não terem suficiente ou adequado conjunto de ferramentas. Por exemplo, uma fábrica de aeroplanos, que possuísse muitos tornos mecânicos mas um número insuficiente de perfuradoras, não poderiam cumprir suas metas.

Fui chamado para solucionar o problema. Eu era a última pessoa que você poderia esperar para fixar as prioridades para as indústrias de maquinaria. Era muito jovem, não tinha experiência industrial, era um intelectual. O que encontrei foi que as poucas máquinas operatrizes eram alocadas não em conformidade com as necessidades urgentes da guerra, mas sim de acordo com programas ou deliberações burocráticas de diferentes setores do exército, marinha ou aeronáutica. Mas a intenção era que o equipamento básico fosse distribuído de maneira igualitária.

GUTMAN: Programas militares conflitantes são exatamente o que temos hoje. Cada divisão das forças armadas tem seus próprios bombardeiros e seus próprios aviões de caça.

MAGDOFF: Exatamente. E suas prioridades também são conflitantes. Porque há várias outras necessidades: máquinas operatrizes, rolamentos de esferas, esmeris e trituradores. De forma que desenvolvi um novo programa de distribuição em pouco tempo. Mas não quero parecer o único responsável, pois tive a cooperação e o conselho de especialistas. O grande problema de uma alocação mais racional e eficiente dos produtos escassos era coordenar a sua distribuição e ao mesmo tempo cumprir as prioridades estabelecidas pelos chefes de gabinete e não aquelas de departamentos isolados e das seções internas desses departamentos. Para operar as mudanças necessárias, precisávamos da cooperação de diferentes divisões militares, dos chefes das fábricas de máquinas operatrizes, e das equipes de funcionários das fábricas de ferramentas.

Também necessitávamos de dados das companhias, arquivando-os nas máquinas Hollerith IBM, isso antes do surgimento de máquinas eletrônicas, para equiparar a lista de prioridades com a produção das máquinas. O Conselho de Produção de Guerra estabeleceria a prioridade máxima.

GUTMAN: Então se você necessitasse de rolamentos para as miras de bombardeiro, eles teriam prioridade sobre outros tipos de rolamentos.

MAGDOFF: Sim, essa é uma outra história. Originalmente, eu pensava que os rolamentos pudessem entrar no âmbito de um planejamento, tal era sua variedade e sua enorme necessidade na indústria. Tudo o que se movia necessitava de rolamentos de todos os tipos, rolamentos de esferas, e outros. Por isso a idéia de uma planificação nessa área parecia quase impossível.

Entretanto, ficou claro que os problemas surgiam mesmo quando muitos rolamentos de esferas estavam sendo produzidos satisfatoriamente. Por exemplo, houve um problema com os rolamentos de esferas das miras de bombardeiro Norden dos aviões enviados para auxiliar o exército sitiado na Europa.

Um pouco antes, eu havia redigido um relatório para o Conselho mostrando que era provável que ocorresse um problema com os rolamentos. Um membro do Conselho era líder na fabricação desses rolamentos, e asseverou que isso era um disparate, que não haveria problema algum.

Então, houve o problema com os rolamentos para as miras Norden, e fui convocado para resolvê-lo. Achei muito engraçado porque não sou um homem de fábrica. Mas eles disseram “você sabe como resolver isso”. O que fiz foi instalar um sistema de modo que os produtores de rolamentos pudessem estabelecer prioridades.

GUTMAN: Qual foi a dificuldade?

MAGDOFF: Planejar dentro das grandes corporações. Por exemplo, a General Motors tem duas divisões, cada qual produzindo rolamentos em diferentes cidades. Um rolamento cónico e outro em forma de esfera. Quando fui para essas duas divisões, essas duas companhias, eles disseram que o que eu estava requisitando não poderia ser feito. Então fui a Detroit reunir-me com o vice-presidente encarregado do material estatístico necessário para a planificação interna da GM. Expus a ele o problema e o que necessitávamos para resolvê-lo. Tudo o que ele disse foi “eles disseram que você não poderia fazê-lo. Eu lhes disse que aquilo era o que queríamos, o que deveria ser feito". Uma vez que cada uma das companhias se reportava ao centro de planejamento em Detroit, eles apenas ordenaram que se fizessem as coisas de outra maneira. Foi muito simples.

GUTMAN: Mas a União Soviética também tinha um sistema verticalizado.

MAGDOFF: Bem, a União Soviética tinha outro problema. Muito do que mencionei, quero deixar claro, baseia-se em informações que obtive.

Veja por exemplo a fábrica da Ford Motor em River Rouge, que era o sonho de Henry Ford. Eles tinham uma fundição, uma fábrica de vidro, tudo; tudo para produzir automóveis completos. Também tinham uma fábrica de rolamentos.

Agora, você não pode produzir um rolamento de determinado tamanho necessário. O metal é recortado de uma barra e as peças são processadas de modo que se produzam diferentes tamanhos necessários pelas diversas indústrias. A Ford produziu uma porção de tamanhos de rolamentos que eles não necessitavam na fábrica e então eles fundiam os que eles não precisavam e fabricavam de novo. A fábrica de rolamentos não trabalhava eficientemente e ao fim diminuíram drasticamente a produção de rolamentos de esfera bem como a de outros componentes.

Trabalhei com a Comissão Russa de Aquisição, porque uma certa porcentagem de nossos produtos era reservada para a União Soviética, nosso aliado na guerra. Quando perguntei sobre rolamentos de esfera, fiquei surpreso. Na União Soviética cada sindicato (como eles denominavam) fazia sua própria produção de rolamentos. Era o mesmo tipo de ineficiência verificada na fábrica da Ford, com seu modo de planejamento. Aqui me baseio num conhecimento muito superficial, nem poderia chamar isso de conhecimento, mas de inferências que eu fazia de conversas individuais cinqüenta anos atrás.

O que achei significativo foi que tinham construído sindicatos auto-suficientes, similares ao sistema da Ford, por sua vez diferente do sistema da General Motors. Este último baseava-se em fábricas individualizadas, especializadas em seu próprio campo, competindo entre si e com outras. Mas os soviéticos tinham uma estrutura de sindicato, que a meu ver era ligada com a estrutura político-burocrática geral. O poder alojava-se na direção de uma indústria particular e cada direção tinha controle sobre cada aspecto do processo. Mas o sistema mais eficaz, do meu ponto de vista, é quando você está apto a conectá-lo horizontalmente e não apenas verticalmente.

Erros são inevitáveis, mas você deve ser capaz de corrigi-los. Se você tem uma burocracia consolidada com interesses pessoais e linhas políticas, não é fácil fazer mudanças, especialmente sem uma estrutura democrática.

GUTMAN: Então um modelo de organização horizontal é mais produtivo do que o vertical.

MAGDOFF: Depende do tipo de indústria. Não é a ciência, mas a prática que conta. Há que se prestar mais atenção às diferenças regionais, que são muito importantes. Se você observa os Estados Unidos e compara a rendimento média per capita entre Connecticut, Massachusetts e Nova York, ela é maior que em qualquer outro lugar.

GUTMAN: É verdade.

MAGDOFF: Então você considera o Missouri, a Louisiana, e o Mississipi e você encontra uma rendimento bem menor, uma coincidência interessante. Os estados da Nova Inglaterra têm uma concentração de fábricas bem maior, mesmo possuindo uma agricultura bastante desenvolvida.

Na União Soviética, as diferenças regionais precisavam ser consideradas. No entanto, tais diferenças não foram adequadamente levadas em conta. Analisando friamente, se você tem apenas carvão, você deve procurar que esse carvão seja distribuído de forma mais ou menos igualitária entre as diferentes regiões. E não somente naquelas que são mais industriais. Se você tem metal, o metal também tem de ser disponibilizado em todos os lugares, para que todas as regiões possam ser planificadas e se desenvolver.

Agora, isso são modelos. Mas modelos que você deve procurar aperfeiçoar. Se você não levar em conta as prioridades sob uma perspectiva social, mas sim em termos técnicos e do interesse pessoal dos burocratas, você não conseguirá o tipo de distribuição que necessita.

Atualmente isso está acontecendo na China. Xangai é um pólo industrial próspero. E as áreas próximas dali também o são. No entanto, a região oeste apresenta a mais extrema pobreza. E lá, como já mencionei, você encontra uma das maiores áreas de epidemia da Sida, nessa região atrasada da China.

Porém, você não pode mudar tudo da noite para o dia. Mas você pode direcionar a sociedade num caminho, ou planificar sua sociedade, tanto politicamente como em termos de planificação econômica, levando as diferenças regionais em consideração. Em praticamente todos os países que conheço, existem diferenças entre populações das diversas regiões. Você encontra isso até mesmo aqui.

No caso da Inglaterra, cuja revolução industrial tem mais dois séculos, há um “limite céltico”. A Irlanda, a Escócia, o país de Gales e o norte da Inglaterra são relativamente pobres, e o sul da Inglaterra é rico! Se você considera a França, o sul é pobre. Na Itália, há enormes diferenças regionais.

Diferenças que o capitalismo produz. Se você quer ter uma sociedade decente, que sirva o povo, deve haver um outro caminho. Você tem que ter equanimidade. E você pode ter equanimidade. Não somente distribuindo melhor o rendimento, mas também desenvolvendo a indústria junto com a agricultura, tornando as pessoas das várias regiões mais autoconfiantes, de modo que possam adquirir certos benefícios. Isto também significa que, contrariamente aos princípios ou práticas do capitalismo e imperialismo, mais capital deve ser tirado dos ricos em prol dos pobres do que o inverso. E o que você necessita é uma relação social, como a estabelecida no início da Revolução Russa, quando mais capital proveio do centro para a periferia do que o contrário. Então eles tinham teatros de ópera e universidades que normalmente não existiriam.

GUTMAN: Foi o plano econômico e suas prioridades, ou a falta delas, que alterou o movimento original do centro para a periferia?

MAGDOFF: Acho que foi a planificação econômica aliada à política. Eu acho que foi isso, não tenho certeza! Tudo o que estou dizendo é “eu acho!”.

Creio que a causa era principalmente política. Primeiro, há as vantagens imediatas de se desenvolver um centro industrial, pois tudo conflui para isso. E a burocracia, que quer obter as melhores vantagens para si, não vai se preocupar com as áreas periféricas. Numa democracia, pode ocorrer justamente o oposto: o governo estipular que as pessoas a 75 ou 100 milhas de Moscou, possam ter a mesma disponibilidade de alimentos e recursos que em Moscou. Assim, as pessoas privilegiadas de Moscou receberiam um pouco menos.

Sempre existe um elemento de sacrifício envolvido quando você faz esta escolha. A história da indústria automobilística é um bom exemplo. Se você quisesse usar os recursos para um bom propósito, por exemplo, reservando o metal para construir em regiões pobres, economizando combustíveis não-renováveis, não se teria automóveis particulares. Teria de se pensar em uma outra organização para transporte, o que implicaria numa mudança na sociedade, em vários aspectos. Em termos práticos, isso envolveria uma alocação de recursos e uma planificação diferentes, que não poderiam ser realizadas de uma hora para outra. Teria de ser feita com o consentimento da população, contando com a disposição de certas camadas para uma dose de sacrifício. Seria a única maneira.

Desde a revolução industrial tínhamos acreditado que se a economia se fizesse mais rica, todos seriam beneficiados. Numa das reuniões em que participei com o exército durante a guerra, eu queria captar a disposição dos militares no que se referia ao novo plano proposto para distribuição de maquinaria. Alguns dentre eles eram muito inteligentes, outros nem tanto. Quando coloquei a questão, um deles comentou “Não o compreendo. A subida da maré não levanta todos navios?”

GUTMAN: Bem, nós ainda ouvimos este refrão o tempo todo.

MAGDOFF: Não sabia o que dizer! Ele era um major! Toda sua mentalidade e maneira de pensar estavam ligadas ao mercado ou à estrutura burocrática das forças militares, sendo incapaz de analisar sob qualquer outro ângulo.

Na guerra, isso foi claro. Nós tínhamos de ganhá-la. Quando ela começou a mudar as relações sociais, as relações humanas, havia muito mais decisões difíceis a serem tomadas. Poderão ser cometidos erros. O que se necessita é de uma democracia tal, em que os erros sejam encarados, e possam se tomar decisões a fim de corrigi-los. É um processo de aprendizado. Mesmo que você convoque pessoas inteligentes para colocar um plano em prática, não é possível adivinhar de antemão todas as respostas. Nem uma universidade só com gente inteligente o conseguiria isto. Tem de ser feito através do envolvimento das pessoas, com sua experiência pessoal. Como? É um outro problema.

GUTMAN: Sem uma ameaça externa como no tempo de guerra, não seria muito difícil para democracias estabelecer prioridades, especialmente porque, como você assinalou, elas podem causar sofrimento para algumas pessoas? Nos Estados Unidos, sempre que pretendemos estabelecer uma prioridade na assistência médica, e de uma distribuição mais razoável da rendimento, interesses particulares intervêm. Não estou falando de pessoas com muito dinheiro, mas de médicos, cidadãos idosos e pequenos proprietários de classe média. É como se cada segmento tivesse o seu próprio interesse e dissesse “não podemos planejar dessa forma”, como alguns daqueles majores que disseram “não podemos fazê-lo”.

MAGDOFF: Bem, você está formulando questões difíceis de serem respondidas.

GUTMAN: Penso que devo mesmo perguntar as difíceis.

MAGDOFF: Não, isso é excepcionalmente difícil, pelo menos para mim, porque medito sobre isso, e escrevo para lembrar as pessoas dessa questão. Mas não sei a resposta.

Pense na população negra, na população hispânica, no pobre; se você tomar uma decisão que dê a prioridade ao mais pobre, isso pode significar tanto tomar do mais rico como do menos rico, e também não deixar espaço para muito mais pessoas terem melhorias no seu padrão de vida. Eles já não serão capazes de comprar um novo carro ou qualquer carro, ou o que for. Ainda assim, eles serão a maioria. A questão então é: como construir uma democracia que não seja simplesmente “uma pessoa um voto”? Não sabemos a resposta. Utilizamos o termo democracia como se todos concordássemos com o seu significado. Mas não há uma democracia real; não importa quantas pessoas votem, se é o ricos e seus aliados quem determinam o modo de vida do restante da população. Não existe democracia se o rico e o poderoso ditam a norma geral e exploram as nações mais fracas, onde vive a maioria da população mundial.

Penso que nada disso teria acontecido sem os movimentos sociais, grandes movimentos sociais, surgidos da classe trabalhadora. Nunca atingiremos isso se a consciência das pessoas não se transformar. Temos de desenvolver um novo tipo de democracia, que leve isso em conta.

GUTMAN: Certo.

MAGDOFF: Mas a consciência não muda da noite para o dia. Outro problema para se refletir.

GUTMAN: Uma das coisas que admiro em nosso amigo Bernie Sanders (socialista independente, membro do Congresso de Vermont) é que ele compreende que existe uma base para um tipo de consenso social na América. Como ele diz “'vamos olhar sob a perspectiva dos mais pobres”. A maioria só tem a ganhar na redistribuição de recursos, mesmo que essa redistribuição favoreça especialmente os mais prejudicados.

MAGDOFF: Pode ser assim, talvez até aconteça a longo prazo. Mas pode levar muito tempo. A pessoa ou família que possue uma mansão com vinte quartos e piscina, etc... e que for reinstalada em apenas um dos quartos, enquanto o resto da casa for reservado para os sem-teto, não aceitará tão facilmente.

GUTMAN: É verdade, especialmente nos Estados Unidos. O grande número de pessoas que possuem casas espaçosas, obviamente, ficaria descontente. Mas não é apenas uma questão de morar num dos quartos. Se você tomar toda casa com mais de 1000 metros quadrados e dividi-la em apartamentos, e converter cada segunda casa na América numa primeira casa para alguém, o país não seria rico o suficiente para prover moradia para todos?

MAGDOFF: Bem, não é somente isto. Primeiro de tudo penso que não é fácil. Para a pessoa que passar por essa experiência, seria como uma tragédia, pois todo o seu modo de vida e relações familiares seriam afetados. Seria necessária uma mudança na consciência das pessoas a fim de implementar essa medida, e certamente assumi-la dizendo: “abro mão de tudo”.

Mas há também outro problema. Não é apenas saber “se há casas suficientes”. Se você vai para guetos e está pensando em termos de espaço para viver, deve descobrir se não há ratos ou outros animais nocivos, deve pensar em casas decentes, não casas extravagantes, sem grandes relevos, arejadas, com espaço para os jovens praticarem esportes e para os idosos caminharem, com espaço para educação e cultura e assim por diante, você terá de reorganizar toda a região. E para isso, você necessitará de aço, concreto, máquinas de construção, e uma porção de outras coisas. O que significa que você pode não conseguir suprir tudo que as pessoas precisam. Esta é a “rica América!”

GUTMAN: Escolhas difíceis deverão ser feitas.

MAGDOFF: Nenhum desses problemas poderá ser resolvido antecipadamente. É bom pensar sobre isso. Mas o que se necessita é começar. E se começa com uma compreensão de quais problemas existem e como se deve lidar com a vontade de uma parte da população que deseja mudanças. Neste processo se depararão com com os problemas e eles terão de trilhar outros caminhos para resolvê-los.

Estou consciente que mais pessoas estão preocupadas. Penso que eles não querem miséria e doenças ao seu redor. Entretanto, perguntarão: “O que vai acontecer conosco?”. É um fato. Pessoas podem mudar, mas isso pode levar uns cem ou duzentos anos para acontecer. O “espírito competitivo” é tão básico como um “senso de humanidade” ou uma visão, ou o que quiser. E para substituir um espírito competitivo por um espírito coletivo, falando em termos de uma coletividade, deve-se processar uma grande mudança na mentalidade dos seres humanos. A competitividade está arraigada em nós. Não é somente circunstancial, é parte de nossa vida. Você é competitivo na escola, nos esportes, no seu modo de viver, na bela casa em que você mora, ou na marca do seu carro. E aqui estou sendo um tanto espirituoso.

GUTMAN: Compreendo.

MAGDOFF: Isso remete para coisas muito básicas. Democracia, justiça e o futuro. Você deve pensar sobre isso, e envolver pessoas na discussão. Primeiro as questão deveriam ser levantadas e discutidas.

GUTMAN: Na América, hoje, eles não debatem muito.

MAGDOFF: Não mesmo. Mesmo nos círculos mais avançados e progressistas, não há muito debatem. Há somente um desejo geral de algo melhor.

Por isso gosto dessa matéria; é porque necessitamos falar cada vez mais sobre isso, de modo que centenas de pessoas ouçam. Então ouvirão. A menos que se discuta e se propagandeie, não haverá mudança. Precisamos de um exército de missionários que saiam por aí pregando a justiça e a igualdade.

GUTMAN: Como você já disse muitas vezes, as pessoas que tem um mínimo, cujas vidas são as mais miseráveis, deveriam ter o mesmo direito às oportunidades dos outros.

MAGDOFF: Eles não terão necessariamente o mesmo, isso levará um bom tempo. É mais do que propugnar uma mera divisão igualitária da riqueza. O que eles necessitam são oportunidades e poder iguais.

GUTMAN: E poder satisfazer suas necessidades básicas: comida, moradia, assistência médica. Para todos.

MAGDOFF: Exatamente. Em um dos livros de Bertrand Russell, “Liberdade e Organização” (1934), ele diz que o que você necessita é ter uma distribuição igual de alimentos e outros itens básicos; depois você poderá competir e lutar pelas coisas.

GUTMAN: Concordo. Se todos tivessem o suficiente para viver dignamente, com as mesmas oportunidades, o mundo seria um lugar muito melhor. Não me importaria se algumas pessoas tivessem um pouco a mais do que outras. Penso que esse é um dos caminhos para se convencer alguém a abrir mão de uma parte do que possui. Não necessitamos mais do que já temos.

MAGDOFF: Espere aí, não é bem assim. Você não pode tirar uma conclusão de como eles pensarão. Apenas tenha isso na agenda, é a coisa mais importante. Não serão todos que aceitarão isso, existem pessoas que lutarão. Há pessoas com raiva no coração. Há pessoas prontas para matar devido a essa raiva. Nossa sociedade é assim.

Há uma quantidade infernal de problemas que não são resolvidos tão facilmente. Encarar temas, levantar questões, discuti-las é o que mais importa, na fase atual. Nada acontecerá sem isso. Considere o que está acontecendo na China. Eles tiveram uma infinidade de problemas, e coisas espantosas aconteceram durante a Revolução Cultural, tanto boas como más. Porém em anos recentes houve uma mudança. De uma sociedade que trabalhava pela igualdade, como disse Mao Tsé-Tung, “superar as diferenças entre a população, até a igualdade total”, tem-se agora uma sociedade que criou diferenças entre as pessoas.

GUTMAN: Na China de Mao todos tinham uma dieta adequada.

MAGDOFF: Nunca foi uma questão de adequação, as pessoas eram pobres e necessitadas, mas tinham um prato de comida. Agora, piorou!

GUTMAN: O que quero dizer é que na China, e até a dissolução da União Soviética, todos tinham comida. Ainda havia pessoas na União Soviética que tinham de enfrentar filas para obter pão, mas todos comiam. Não é o caso atualmente.

MAGDOFF: Todos tinham um emprego. A despeito dos problemas, progressos tremendos foram realizados na União Soviética. Minha tia e tio e cinco crianças, quando os visitamos em Minsk, nos anos 30, viviam numa casa de dois cômodos em um andar sujo, com um banheiro anexo. Essa era a sua vida! Mas as crianças iam para a escola, tinham comida, não era comida requintada mas havia os alimentos básicos.

O ponto é que, hoje, na China, você tem de pagar por educação e assistência médica. E há pessoas que não podem pagar. Este é o país sobre o qual, Wassily Leontief, um economista americano proeminente, que não era socialista, disse, após viajar por lá, que os 10% de chineses mais pobres viviam melhor que os 10% mais pobres de qualquer outro país no mundo.

GUTMAN: Então retornemos ao ponto original, o que podemos aprender da União Soviética e da China?

MAGDOFF: Penso que o que aconteceu a ambos foi que os interesses dos mais privilegiados, que queriam manter seus privilégios, fundiram-se com a mentalidade que subsistiu do velho sistema. Em outras palavras, foi uma questão de classe. Não no sentido marxista de questão de classe, de capitalismo ou feudalismo, mas foi uma questão de classe. Penso que o que Mao disse estava certo. Que há vícios capitalistas no comitê central.

GUTMAN: Hoje eles reinam livremente, à diferença de antes, quando ainda não se denominavam “capitalistas”.

MAGDOFF: Outra coisa: o que eles têm na China é muito melhor do que eles têm na Rússia. A Rússia para mim é uma confusão. A China manteve o Partido Comunista unido.

A China manteve alguns dos elementos mais liberais e radicais no partido e aí pode estar uma oportunidade para capturarem o partido. Mas basicamente estão a expulsá-los. Não os expulsam nem os matam à maneira de Stalin. Mas fazem certas acomodações de modo a que possam fazer o que querem, de qualquer modo.

O que se verificou na União Soviética foi que depuseram o Partido Comunista da liderança do Estado. O que você obteve realmente foi uma virada — uma virada brusca — para o capitalismo. Ou uma tentativa de capitalismo. O que se tem é o mesmo que aconteceu nos primeiros estágios do capitalismo aqui: barões gatunos.

GUTMAN: Capitalismo “cowboy”.

MAGDOFF: Muito tempo atrás foi publicado um livro sobre os julgamentos de Colônia, com uma introdução de Marx. Ele diz algo como: haverão vitórias e derrotas da revolução proletária. E mais vitórias que derrotas. Até que a classe inteira aprenda a ser uma classe dirigente.

GUTMAN: Compreendo.

MAGDOFF: Tenho visto muitas mudanças acontecendo nesse período. É somente através de um longo percurso histórico. Mas nunca irá melhorar, a menos que se sigam as previsões de Marx. A grande questão é a classe trabalhadora aprender a desempenhar seu papel dirigente. Isso ela só irá aprender analisando seus próprios erros.

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[*] Professor de Inglês na Universidade de Vermont e assessor principal do congressista Bernard Sanders . É colunista político no “Statesman” em Kolkata, India, e também escreve regularmente editoriais para o “Dawn” de Karachi, Paquistão, e “Common Dreams”, um sítio web progressista. É co-autor, com Sanders, de “Outsider in the House” e co-editor de “Technologies of the Self: A Seminar with Michel Foucault”.

O original desta entrevista encontra-se na Monthly Review , Volume 54, nº 5, Outubro de 2002. Tradução de Sérgio Ortiz. Mantida a ortografia brasileira, efectuando-se apenas algumas alterações mínimas.

Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info

02/Nov/02