Fixo, volátil, ou dividido
O trabalho, a identidade e a
divisão espacial do trabalho no séc. XXI
A combinação da mudança tecnológica com a
globalização está a provocar alterações
fundamentais no que se refere a quem faz que tipo de trabalho, onde, quando e
como. Isto tem implicações profundamente contraditórias
para a natureza das funções, para as pessoas que as desempenham
e, portanto, para a natureza das cidades.
Por um lado, o trabalho que anteriormente estava ligado geograficamente a um
determinado local tornou-se volátil numa dimensão sem precedentes
históricos; por outro lado, tem havido grandes migrações
de pessoas que percorrem o planeta à procura de trabalho e de
segurança pessoal. Tem havido pois um duplo desenraizamento uma
deslocação do trabalho em direcção às
pessoas e uma deslocação das pessoas em direcção ao
trabalho. Em conjunto, estas reviravoltas estão a transformar o
carácter das cidades tanto nos países desenvolvidos como nos
países em desenvolvimento.
Da mesma forma, estão também a transformar as identidades e as
estruturas sociais. A maior parte das descrições clássicas
da estratificação social atribuem uma importância central
à identidade ocupacional. O bloco básico de
construção da identidade de classe tem sido tradicionalmente a
ocupação, normalmente uma identidade estável adquirida
lentamente quer por herança quer através dum processo de
formação destinado a dotar o estudante ou o aprendiz com
habilitações para a vida. Depois de entrar nessa
ocupação e de praticar essas habilitações, o seu
detentor tem uma posição reconhecida na divisão social do
trabalho que lhe dá um 'lugar' nessa sociedade por toda a vida, salvo
qualquer calamidade como a doença, o desemprego ou a falência
riscos contra os quais os estados previdência da maior parte dos
países europeus proporcionam uma forma qualquer de seguro social.
Estas identidades contribuíram para dar à maior parte das cidades
uma forma conhecida que é familiar aos seus habitantes: bairros que
abrigam determinadas indústrias; instituições reconhecidas
de mercado de trabalho; estruturas familiares características; e
infra-estruturas físicas e sociais que reflectem e reforçam esses
padrões. As estruturas e relações sociais completam-se na
geografia física da cidade espaços 'masculinos' e
espaços 'femininos'; áreas de 'gueto' onde se concentram os
imigrantes recém-chegados e áreas onde são preponderantes
os habitantes indígenas; áreas barulhentas onde se juntam os
jovens e outras sossegadas onde vivem os mais velhos. Estes padrões
são modelados por padrões sexistas e raciais e estruturados pelas
relações de poder entre os diferentes grupos sociais. Isto
não afecta apenas os que vivem num determinado local, os que trabalham
num determinado local, ou os que preferem viajar para determinados locais, mas
também a forma como cada área é encarada subjectivamente
por exemplo, quais as áreas que são consideradas e por
quem como limpas, seguras ou amistosas.
Os movimentos sem precedentes de pessoas e de empregos por todo o mundo
coincidiram com uma rotura de muitas das identidades ocupacionais tradicionais.
Habilitações específicas ligadas à
utilização de determinadas ferramentas ou maquinaria têm
vindo cada vez mais a dar lugar a habilitações mais
genéricas e em mutação rápida, relacionadas com o
uso das tecnologias de informação e de comunicações
(no que se refere ao trabalho envolvendo o processamento da
informação) ou a novas tecnologias de trabalho com economia de
mão-de-obra, por exemplo, na construção, na
produção, na embalagem, ou na limpeza. Em muitos países,
esta desintegração das identidades ocupacionais coincidiu
também com o colapso das formas institucionais da
representação dos trabalhadores, tais como os sindicatos, que no
passado serviram para dar uma certa forma coerente e visibilidade social a
essas identidades. Estamos a ficar com uma paisagem em rápida
mutação e em grande parte desconhecida na qual se criam (e
desaparecem) profissões com grande rapidez, frequentemente sem sequer
terem uma designação concreta apenas uma
combinação atabalhoada de 'habilitações,
'capacidades' e 'competências'.
Sem identidades ocupacionais coerentes e estáveis como blocos de
construção básica de análise social, como é
que podemos começar a cartografar as mudanças que estão a
ocorrer actualmente nas nossas cidades? Uma hipótese é
começar pelo seu desenraizamento espacial. Aqui, uma tipologia
possível é atribuir-lhes a categoria de 'fixo' ou
'volátil', com uma categoria intermédia para as profissões
que aliam as características estáveis e voláteis e que
poderemos designar por 'divididas'.
Uma das ironias da actual situação é que muitas das
profissões fixas são na maior parte das vezes desempenhadas pelas
pessoas mais voláteis, enquanto que algumas das profissões mais
voláteis podem ser desempenhadas por pessoas com profundas raízes
ancestrais no local onde trabalham.
Comecemos por algumas profissões fixas. Uma das características
mais óbvias da estabilidade é a necessidade da proximidade
física dum determinado local, porque a profissão envolve
directamente o fabrico, a alteração, a limpeza ou a
movimentação de bens físicos ou a entrega de
serviços pessoais reais às pessoas num tempo real e num
espaço real.
Partindo do meu próprio espaço real, passo em revista as
profissões fixas que o sustentam. Vivo em Londres numa rua de casas de
três pisos do século dezanove, onde cerca de um terço das
casas são ocupadas por agregados familiares simples da classe
média e o restante foi transformado em apartamentos ou ocupado por
agregados familiares mais alargados, famílias maiores e mais pobres. A
maior parte das famílias da classe média utilizam uma empregada
de limpeza três ou quatro horas por semana. Das empregadas de limpeza que
conheço nesta rua, uma é boliviana, uma é mauritana, uma
ugandesa, e uma colombiana. Nenhuma delas é branca; nenhuma nasceu na
Europa, muito menos em Londres. No fim da rua há dois restaurantes, um
café, uma loja de peixe e batatas fritas, e um estabelecimento de venda
de frango frito. Um dos restaurantes serve pratos ao estilo europeu de diversas
origens, principalmente franceses. O seu proprietário é de
Montenegro, casado com uma irlandesa. As empregadas são brasileiras,
polacas e russas. O outro restaurante anuncia um menu italiano mas tanto o
proprietário como o pessoal (com excepção duma empregada
albanesa) são turcos, tal como o café. Os empregados da loja de
peixe e batatas fritas são chineses. O estabelecimento de venda de
frango frito, que está aberto durante quase toda a noite e atende uma
clientela bastante grosseira, é, apesar do seu nome americano, servida
por um grupo transitório de trabalhadores de aspecto exausto de origem
africana ou asiática.
Periodicamente as casas da rua que são de propriedade pública
(cerca de 20 por cento do total) são renovadas todas ao mesmo tempo.
Isto aconteceu no ano passado, e durante várias semanas as redondezas
estiveram cheias de trabalhadores da construção. Desta vez, tanto
quanto pude ver, todos os trabalhadores especializados eram polacos; alguns dos
operários menos especializados eram de diversos países
balcânicos. Com excepção duma capataz (uma londrina negra)
não vi nenhuma mulher entre o pessoal.
Como não tenho automóvel, utilizo frequentemente o serviço
dos mini-táxis. Os motoristas estão sempre a mudar mas incluem um
grande número de homens de países do sul da Ásia e de
África. Que eu saiba só há uma motorista mulher, uma
nigeriana mal-humorada que se recusa a sair do carro mas buzina fortemente para
anunciar a sua chegada. Já não me lembro da última vez que
me calhou um motorista branco.
Esta diversidade de origem étnica não é exclusiva do
trabalho manual. A pequena companhia que faz a manutenção da
minha rede de computadores é dirigida por um cipriota grego. O seu
representante é sírio e quando está demasiado ocupado
envia um engenheiro turco para resolver os meus problemas. São todos
altamente especializados e instruídos. Ao balcão de atendimento
do nosso centro de saúde local estão duas mulheres muito
eficientes uma é nigeriana e a outra somali.
Estes exemplos podiam ser multiplicados por mil, não apenas em Londres
mas em muitas cidades por todo o globo, onde a manutenção de
infra-estruturas estáveis e as actividades de serviços de
atendimento a clientes estão cada vez mais nas mãos de pessoas
que nasceram noutros países ou noutros continentes. A sua
presença como migrantes recém-chegados ou temporários tem
múltiplos efeitos na forma e no carácter das cidades hospedeiras
hoje dependentes do seu trabalho, tanto nas áreas onde eles vivem como
nas áreas onde eles trabalham. Enquanto trabalhadores de serviços
e utilizadores de serviços eles estão frequentemente no interface
do consumo e da produção tanto dos serviços
públicos como privados e neste processo ambos se transformam: criam-se
mercados para novos tipos de comida e de serviços pessoais; as
instituições de saúde e educacionais alteram as horas e os
idiomas em que prestam os seus serviços; e aparecem novos códigos
de vestuário ou de comportamentos, tácitos ou explícitos,
que colocam múltiplos desafios tanto aos novos como aos antigos
residentes cuja sobrevivência social depende de saber
descodificá-los. A composição étnica
específica de qualquer cidade é modelada por uma complexa
interacção de factores que incluem o seu passado
histórico, político, religioso, e as tradições
culturais, a estrutura industrial e a localização
geográfica; o facto da diversidade, no entanto, é cada vez mais
universal.
Isto para as profissões fixas; e quanto às voláteis? O
desenvolvimento duma divisão global do trabalho não é
novo. As regiões sempre comercializaram os seus produtos umas com as
outras desde que a história é história, e o assalto de
outras partes do mundo à procura de matérias-primas ou de
trabalho escravo é pelo menos tão velho como o colonialismo. No
final do século XIX o Império Britânico exibia um
padrão notavelmente desenvolvido de especialização
industrial regional entrelaçado numa rede comercial global. O
século XX assistiu ao funcionamento das corporações
multinacionais com uma crescente independência dos interesses dos estados
nações nos quais estavam sediadas, inaugurando um período
depois da Segunda Guerra Mundial que foi caracterizado por Baran e Sweezy como
'capitalismo monopolista'.
[1]
Na década de 70, tornou-se claro que estava a chegar uma 'nova
divisão global do trabalho' na indústria da manufactura com as
companhias a dividir os seus procedimentos de produção em
sub-procedimentos separados e a redistribuir essas actividades por todo o globo
onde quer que as condições fossem mais favoráveis.
[2]
Esta tendência continuou na década de 80 com indústrias
tão diversas como a do vestuário, da electrónica e da
auto-manufactura afastando os seus instrumentos de produção das
economias desenvolvidas com altos custos de mão-de-obra e forte controlo
ambiental e dirigindo-os para países em desenvolvimento, muitas vezes
para 'zonas de mercado livre' em que se oferecem diversos incentivos fiscais
aos países desenvolvidos e se suspendem os regulamentos de
protecção à mão-de-obra e ao ambiente como forma de
atrair o mais possível o investimento directo estrangeiro. Os
trabalhadores nessas zonas eram desproporcionadamente jovens e do sexo
feminino, e recebiam salários abaixo do nível da
subsistência. Apesar disso, não eram de forma alguma passivos e
muitos deles organizaram-se activamente para melhorar a sua sorte.
[3]
Esta é uma das razões por que algumas das regiões outrora
consideradas como de salários baixos, por exemplo o sudeste da
Ásia e a América Central, são agora consideradas de
salários relativamente médios, e as companhias abandonaram-nas
para explorar mão-de-obra ainda mais barata em zonas como a China, a
África sub-saariana e outras partes da América Latina.
Escusado será dizer que esta evolução teve impactos
dramáticos tanto nas cidades que perderam os empregos das manufacturas
como nas que os ganharam. Nas áreas em desenvolvimento, como as
'maquiladoras' mexicanas ou na região Metro Manila das Filipinas,
surgiram enormes desenvolvimentos urbanos novos, muitas vezes altamente
poluídos, cujas economias dependiam das manufacturas para
exportação. Estas áreas atraem a mão-de-obra das
periferias rurais empobrecidas e, ao fazê-lo, criam novos mercados
urbanos para bens e serviços e novas necessidades de infra-estruturas e
alojamento que na maior parte das vezes não são resolvidas de
forma adequada.
Nos países desenvolvidos, as cidades que se formaram como centros
produtivos no século XIX e princípios do século XX,
tiveram que se transformar em centros de serviços ou entraram em
decadência até acabarem em áreas enferrujadas com um alto
desemprego, centros comerciais vazios, aumento de criminalidade, e
serviços públicos em deterioração. Em muitos casos
não foi de um dia para o outro que passaram de empregadoras de
trabalhadores locais especializados e organizados para desertos de
fábricas e armazéns vazios. Pelo contrário, passaram por
um período transitório durante o qual o trabalho foi
automatizado, simplificado e embaratecido. Muitas vezes importava-se
mão-de-obra imigrante para efectuar as tarefas que já não
eram atractivas para as gentes locais durante o período próspero
que decorreu na maior parte dos países desenvolvidos desde a
década de 50 até meados da década de 70. Quando as
fábricas começaram a fechar, a partir dos meados da década
de 70, foram esses trabalhadores imigrantes, quer fossem asiáticos do
sul no norte do Reino Unido, norte-africanos em França, turcos na
Alemanha, hispânicos nos Estados Unidos ou coreanos no Japão, que
apanharam com a pancada desta alteração. Ao fermento da
decadência das áreas enferrujadas somaram-se as tensões
étnicas.
Menos bem estudada pelo menos até há pouco tempo
tem sido a nova divisão global do trabalho na área dos colarinhos
brancos. Apesar disso, também esta tem-se alterado desde a
década de 70 quando trabalho menos especializado, como a
introdução de dados ou a composição de dados,
começou a ser exportado por grosso da América do Norte e da
Europa para economias de custos mais baixos nas Caraíbas, assim como na
Ásia sul e sudeste, enquanto que os serviços de maior
especialização, como programação
informática, começaram a ser exportados para o mundo desenvolvido
a partir de economias em desenvolvimento como a Índia, as Filipinas e o
Brasil.
[4]
No ano 2000, foi desencadeado o primeiro projecto de investigação
com o objectivo de descrever e medir o desenvolvimento da divisão
internacional da mão-de-obra no trabalho do
processamento-telecomunicação-informação, sob a
sigla EMERGENCE, que significa 'Estimation and Mapping of Employment
Relocation in a Global Economy in the New Communications Environment'
(Avaliação e Descrição da Relocação
do Emprego numa Economia Global no Novo Ambiente das
Comunicações). O EMERGENCE foi inicialmente fundado pelo Programa
da Sociedade de Informações da Comissão Europeia para
efectuar a investigação nas quinze nações que eram
na altura membros de pleno direito da União Europeia mais os estados
candidatos (hoje membros de pleno direito) da Hungria, Polónia e da
República Checa. Posteriormente, o projecto conseguiu mais fundos para
efectuar uma investigação semelhante na Austrália, nas
Américas e na Ásia. No final resultou uma imagem multifacetada da
nova divisão global do trabalho, complexa e em mutação
rápida, nos serviços de informações. A primeira
resposta obtida foi quanto à extensão com que os empregadores
estão actualmente a utilizar as novas tecnologias para deslocalizar o
trabalho. Foi efectuada uma análise em 7268 estabelecimentos com
cinquenta empregados ou mais nos dezoito países europeus e uma
análise semelhante em 1031 estabelecimentos de todas as dimensões
na Austrália. Esta análise incidiu sistematicamente nos locais
onde eram prestados sete serviços profissionais genéricos
diferentes. Estes serviços profissionais eram: actividades criativas e
geradoras de conteúdos, incluindo pesquisa e desenvolvimento;
desenvolvimento de software; introdução de dados e dactilografia;
funções de gestão (incluindo gestão de recursos
humanos e de formação assim como gestão de
logística); funções financeiras; actividades de vendas; e
serviço a clientes (incluindo consultoria e serviços de
informações ao público assim como apoio pós-venda).
Para cada função, a análise incidiu na extensão
com que era prestada à distância através duma
ligação de telecomunicações, 'trabalho
electrónico', se era prestada a partir da empresa ou entregue a
terceiros, e quais as razões para a escolha de qualquer
localização especial ou prestador de serviços.
Os resultados proporcionaram uma imagem abrangente da extensão com que
estes serviços profissionais já estavam deslocalizados no ano
2000. Na Europa, perto de metade de todos os estabelecimentos já estavam
a prestar pelo menos uma destas funções à distância
utilizando uma ligação de telecomunicações para
executar o serviço, enquanto que na Austrália cerca de um quarto
delas fazia o mesmo.
Ainda mais impressionante do que a extensão geral do 'trabalho
electrónico' é a forma que ele assume. A maior parte da
literatura sobre trabalho à distância, trabalho por
telecomunicação, trabalho em casa ou quaisquer outros
pseudónimos para 'trabalho electrónico', pressupõe que a
forma dominante é o trabalho com base em casa. No entanto estes
resultados mostram que o empregado de 'trabalho electrónico'
estereotipado com base exclusivamente em casa é de facto uma das formas
menos populares. Mais ainda, o 'trabalho electrónico' em casa é
sobrecarregado fortemente pela 'contratação electrónica de
terceiros' como um mecanismo de organização de trabalho à
distância, com cerca de 43 por cento de empregadores europeus e 26 por
cento de australianos a utilizar esta prática. Grande parte da
'contratação electrónica de terceiros' é efectuada
no interior da região onde está sediado o empregador (34,5 por
cento), mas uma parte substancial (18,3 por cento) contrata noutras
regiões dentro do mesmo país e 5,3 por cento contratam fora das
suas fronteiras nacionais. Estas deslocalizações de trabalho
inter-regionais e internacionais (por vezes inter-continentais) dão-nos
pistas para a geografia da nova divisão internacional do trabalho nos
'serviços electrónicos'.
Quais são os principais factores que impulsionam esta
contratação para além das fronteiras nacionais? No topo da
lista está a procura da especialidade técnica adequada. Só
quando esta está disponível é que entram em cena factores
secundários como a fiabilidade, a reputação e o baixo
custo. É este factor, mais do que qualquer outro, que explica a
importância da Índia no fornecimento de 'serviços
electrónicos'. Com a sua enorme população parece oferecer
uma fonte quase inesgotável de formados em ciências de
computadores de língua inglesa. Uma análise de 200 das maiores
companhias no Reino Unido, encomendada em 2001 por um importante prestador de
serviços internacional, revelou que a Índia era o centro de
desenvolvimento de software ultramarino escolhido preferencialmente por 47 por
cento dos gestores.
[5]
Já há sinais contudo de que o mercado de software indiano
está a ficar esgotado, apesar da queda drástica da procura dos
Estados Unidos. Algumas companhias indianas já avançaram para
posições intermédias na cadeia de preços e elas
próprias estão a contratar noutros destinos, que incluem a
Rússia, a Bulgária, a Hungria e as Filipinas.
Para as actividades de valor acrescentado mais baixo, como a
introdução de dados, países mais baratos como o Sri Lanka,
Madagascar e a República Dominicana constituíram-se como destinos
alternativos aos anteriores (como Barbados e as Filipinas). A China
está a ganhar terreno com uma população ainda maior e
custos mais baixos do que a Índia, assim como a
determinação de assumir um papel de liderança na 'economia
electrónica'.
Diferentes funções profissionais caracterizam-se por diferentes
tipos de trabalhadores. Funções de pouca
especialização, tal como a introdução de dados ou o
trabalho de serviço a clientes, tendem a envolver grandes quantidades de
trabalhadores que são tendencialmente mulheres; as funções
de maior especialização, como o desenho de sistemas, empregam
geralmente quantidades menores que são tendencialmente homens.
Quando as companhias se confrontam com a possibilidade de escolha de
opções globais, tornam-se ainda mais exigentes quanto ao local
para onde se dirigir, escolhendo fornecedores ou locais como 'cavalos para
corridas'. Neste processo há algumas regiões (Bangalore é
um exemplo clássico) que adquirem reputações mundiais pela
sua excelência num determinado campo, enquanto que outras são
completamente ultrapassadas. O projecto EMERGENCE classificou como 'vencidas
electronicamente' grandes secções do mundo, incluindo grande
parte da África sub-saariana e a Ásia Central.
[6]
O que é que aconteceu desde 2000? Uma segunda série de estudos,
executados pelo projecto asiático EMERGENCE
[7]
em 2002 e 2003, revelou que houve alterações significativas nos
primeiros anos do século vinte e um. O que no virar do milénio
era ainda uma experiência de risco tornou-se numa prática normal,
para não dizer uma rotina, três anos depois. As cadeias de
preços tornaram-se mais longas e mais complexas, envolvendo cada vez
mais intermediários. O mundo assistiu ao aparecimento de novas
companhias enormes dedicadas ao fornecimento de serviços profissionais,
muitas vezes muito maiores do que os seus clientes, com uma divisão do
trabalho global interna. Quando uma grande empresa no sector privado ou
público decide entregar a terceiros um grande contrato para fornecimento
de serviços profissionais, cada vez se trata menos de escolher entre a
Índia ou a Rússia, o Canadá ou a China, mas sobretudo uma
questão de decidir qual a companhia específica (por exemplo a
Accenture, a EDS ou a Siemens Business Services). Quando essa companhia
obtém o contrato, pode decidir dividir o trabalho por equipas em
diversas partes do mundo, de acordo com um determinado equilíbrio de
conhecimentos profissionais, idiomas, custos e critérios de qualidade
envolvidos. Este tipo de trabalho podia ser encarado, de certa forma, como um
caso paradigmático de volatilidade, deslizando sem
fricções através do globo entre equipas que estão
ligadas por redes de telecomunicações e por uma cultura
corporativa comum mas que apesar disso podem estar localizadas fisicamente em
ambientes fortemente contrastantes, e ocupar locais sociais muito diferentes na
estrutura de classes local.
A presença desta nova classe internacional de cibertrabalhadores sem
dúvida tem impacto nas cidades em que vivem. Por exemplo, podem assumir
comportamentos que espalham os valores e as culturas das empresas
multinacionais nas suas comunidades locais e reduzem a cadeia de preços
das companhias fornecedoras. Se saírem para passarem a trabalhar para
outras companhias, sediadas localmente, ou decidirem iniciar um negócio
por sua própria conta, também estes sofrerão as marcas da
experiência internacional. Há ainda outros efeitos mais concretos.
Por exemplo, o impacto da indústria de software internacional em
Bangalore foi dramático ao criar pressão sobre a infra-estrutura
e sobre os aumentos dos preços das propriedades que afectam os outros
residentes da cidade, quer trabalhem nessa indústria ou não. Os
moradores doutras cidades também se tornaram vítimas do sucesso
internacional de algumas das suas vizinhas por exemplo, o sucesso de
Dublin enquanto parte do fenómeno Celtic Tiger produziu um
congestionamento de tráfego crónico e uma inflação
no preço das propriedades que levou a que a compra duma casa passasse a
estar fora do alcance de muita gente que anteriormente tinha posses para a
comprar. Da mesma forma, o trânsito fica congestionado sempre que
há uma mudança de turno nos azafamados
call centers
de Noida e Gurgaon perto de Delhi no norte da Índia.
Entretanto, o simples facto de que o seu trabalho possa ser deslocalizado para
outra parte do mundo coloca um travão às perspectivas dos
trabalhadores de colarinho branco nas cidades em que tradicionalmente têm
estado baseados tais trabalhos. A precariedade cada vez maior dos seus
empregos, expressa muitas vezes por contratos de auto-emprego ou contratos a
prazo fixado, não tem apenas como efeito tornar mais difícil a
luta para uma melhoria no salário e nas condições;
também pode ter impacto no mercado habitacional local tornando
impossível obter um financiamento para habitação.
Até aqui, tracei uma imagem fortemente dicotómica de um mundo em
que o fixo se contrapõe ao volátil no que se refere a tarefas e a
pessoas. Para a maior parte de nós, evidentemente, a realidade é
muito mais complexa do que isto, apresentando características
estáveis e voláteis em configurações complexas.
Designei esta situação por dividida. Numa existência
dividida, as características da estabilidade e da volatilidade
estão em constante e tensa interacção umas com as outras.
As actividades enraizadas de tempo real (como meter as crianças na cama
ou comer uma refeição) são constantemente interrompidas
por actividades 'virtuais' (como o toque do telefone), enquanto que as
actividades 'virtuais' (como ver o email de cada um) são prejudicadas
pelas realidades físicas da situação em que cada um se
sente (um torcicolo, por exemplo, ou o impacto dum corte de energia). Os
tradicionais ritmos da vida diurnos são interrompidos pela necessidade
de dar resposta a exigências globais. A interpenetração de
zonas de tempo numa esfera da vida leva inexoravelmente ao desenvolvimento duma
economia de vinte e quatro horas, à medida que as pessoas obrigadas a
trabalhar em horas não tradicionais precisam depois de satisfazer as
suas necessidades enquanto consumidores durante horas fora do normal, o que por
sua vez obriga outro grupo a estar de serviço para fornecer esses
serviços, desencadeando um processo pelo qual as horas de porta aberta
se vão alargando lentamente através da economia e com elas a
expectativa de que é normal estar tudo sempre aberto. Este processo de
normalização é acelerado pela existência em cada
cidade de quantidades crescentes de novos residentes cujo quadro comparativo de
referências é espacial e não temporal. Em vez de
compararem as horas de abertura das lojas duma cidade europeia com o que eram
antigamente, é mais provável que as comparem com as de Nairobi,
Nova Iorque ou Nova Delhi. Dificilmente terão noção da
solidariedade social que esteve na base das razões para muitas das
tradicionais estruturas temporais ou, se o tiverem, consideram-nas pouco mais
do que estranhas anomalias (ou até práticas racistas concebidas
para os boicotar). Por exemplo, no Reino Unido, desde a década de 50
até à década de 80, a maior parte das lojas na maioria das
cidades fechava meio-dia durante a semana, o que era conhecido por 'dia de
fechar mais cedo'. Embora isto trouxesse alguma inconveniência para os
fregueses, era quase universalmente aceite como justo, visto que os empregados
tinham que trabalhar nas manhãs de sábado e portanto mereciam
meio dia livre de compensação noutra altura qualquer da semana.
Estas atitudes são quase inconcebíveis no século XXI.
Esta experiência dividida de espaço e de tempo reflecte-se na
fractura das identidades ocupacionais. Embora muitas descrições
de funções mantenham uma mistura de características
estáveis e voláteis, estas são cada vez mais
voláteis. Tem havido uma erosão das fronteiras nítidas do
local do trabalho e do dia de trabalho, com um excedente de muitas actividades
para fazer em casa ou noutros locais, incluindo a expectativa de que se tem que
continuar a ser produtivo enquanto se viaja, quer se seja um motorista de
camião a receber ordens por telemóvel durante o intervalo para o
almoço, ou um executivo a trabalhar numa folha de cálculo numa
sala de espera do aeroporto. Num mundo em que as responsabilidades pela casa e
pelas crianças estão distribuídas desigualmente entre os
sexos, estes impactos estão longe do género neutro e
contribuíram para um novo desenho invisível das fronteiras entre
as tarefas que podem ser feitas facilmente e de forma segura por mulheres e as
que se anunciam subliminarmente como masculinas.
Acompanhando estas dissoluções das antigas unidades de
espaço e tempo, também assistimos a um novo desenho de muitos dos
procedimentos de trabalho que envolvem algumas mudanças subtis e outras
não tão subtis na responsabilidade por determinadas tarefas na
maior parte dos locais de trabalho. Algumas destas mudanças têm o
efeito cumulativo de inclinar a balança entre a estabilidade e a
volatilidade. Por exemplo, uma função que anteriormente aliava
receber e cumprimentar clientes com outras actividades secundárias pode
ser completamente refeita com base no computador, tornando fácil
deslocalizá-la total ou parcialmente noutro local. Se esse outro local
for a própria casa do trabalhador existente, então isso pode ser
considerado como bastante libertador, mas se os conhecimentos profissionais
não forem exclusivos desse trabalhador, o mais provável é
que o outro local seja a secretária de qualquer outra pessoa no outro
lado do mundo; longe de ser liberalizador, isto constitui portanto uma nova
fonte de falta de segurança. Inversamente, algumas outras
funções que anteriormente estavam mais ligadas à
secretária (e portanto, em princípio, deslocalizáveis)
podem ser desenhadas de novo para incluir mais actividades de interface com
clientes e tornarem-se mais limitadas espacialmente, embora possam não
estar amarradas a um único local mas a vários, se se pretender
que o trabalhador possa encontrar-se com clientes.
Mais preocupante é a lenta erosão das fronteiras ocupacionais e,
com elas, das identidades ocupacionais. É fácil caricaturar como
rígido e hierárquico o velho mundo em que todos sabiam que 'esta
função é o que eu faço; aquela função
é o que você faz; aquela função está
reservada para jovens recém-formados; aquela outra é feita por
trabalhadores mais velhos com muita experiência que sabem o que é
que pode correr mal'. Para além de tudo o mais, podia facilmente levar
ao estabelecimento de regras tácitas que atribuíam algumas
tarefas a mulheres ou a membros de certos grupos étnicos de pessoas com
antecedentes de instrução especiais. Isto punha barreiras
inaceitáveis à mobilidade social e à igualdade de
oportunidades. Mas sem isto, o que é que temos? Um mundo em que somos
sempre apenas tão bons quanto o desempenho da semana passada; em que
para manter o emprego temos que estar sempre preparados para adquirir novas
habilitações e para alterar as formas antigas com que fomos
treinados (e das quais nos orgulhávamos no passado); em que não
conseguimos saber com certeza e antecipadamente quando é que estaremos
livres e quando é que temos que trabalhar, em que nunca podemos dizer
'não, isso não é da minha responsabilidade' sem medo de
represálias. Um mundo sem fronteiras ocupacionais pode tornar-se muito
facilmente num mundo em que a solidariedade social é praticamente
impossível porque já não temos qualquer forma clara de
definir quem são os trabalhadores nossos colegas ou os nossos vizinhos,
e em que muitas das nossas interacções são com estranhos
em que é difícil distinguir entre amigos ou aliados e perigosos
ou inimigos.
O futuro das nossas cidades dependerá em grande parte da forma como
reintegrarmos estas personalidades divididas, os locais de trabalho e as
vizinhanças.
Notas
1- Paul Baran and Paul Sweezy,
Monopoly Capital: An Essay on the American Economic and Social Order
(New York: Monthly Review Press, 1966).
2- F. Froebel, J. Heinrichs, & O. Krey,
The New International Division of Labor
(Cambridge: Cambridge University Press, 1979).
3- Ver por exemplo Women Working Worldwide,
Common Interests: Women Organising in Global Electronics
(London: Women Working Worldwide, 1991).
4- Ursula Huws,
The Making of a Cybertariat: Virtual Work in a Real World
(New York: Monthly Review Press & London: Merlin Books, 2003).
5- Citado em silicon.com, May 31, 2001,
http://www.silicon.com/news/500020/1/1024784.html
.
6- Ursula Huws, ed.,
When Work Takes Flight: Research Results from the EMERGENCE Project,
IES Report 397, Brighton: Institute for Employment Studies, Brighton, 2003.
7- Ursula Huws and J. Flecker, eds.,
Asian EMERGENCE: The World's Back Office?,
IES Report 409, Institute for Employment Studies, Brighton, 2004.
[*]
Professora de estudos do trabalho internacional no
Working Lives Research Institute
na Universidade Metropolitana de Londres e é directora da consultoria
de investigação
Analytica
. Autora de
The Making of a Cybertariat: Virtual Work in a Real World
(Monthly Review Press, 2003) e de
O que faremos nós? A destruição da identidade ocupacional na 'Economia baseada no conhecimento'
.
Este ensaio é adaptado de
Kors och tvärsIntersektionalitet och makt i storstadens arbetsliv
(Cruzamento e transcendência: Interseccionalidade e poder na vida dos
trabalhadores urbanos) de Ewa Gunnarsson, Anders Neergaard, e Arne Nilsson,
eds., a publicar por Normal, Estocolmo.
O original encontra-se em
http://www.monthlyreview.org/0306huws.htm.
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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