Mumbai e o problema das alternativas
por Octavio Rodríguez Araujo
[*]
De acordo com as notas de Hernández e Garrido, enviados de
La Jornada
a Mumbai, Índia, o Fórum Social Mundial (FSM) na sua quarta
edição é diferente daqueles que o antecederam em Porto
Alegre, Brasil.
Na Índia está a cumprir-se (e a esgotar-se) um ciclo dos
movimentos sociais
altermundistas
, como se lhes chama agora: o ciclo do protesto contra a
globalização neoliberal. Os participantes, que não
têm a mesma composição social e ideológica dos de
Porto Alegre, estão interessados num novo ciclo, o das propostas
alternativas ao que se tem criticado há vários anos, inclusive
antes do Encontro Intercontinental, em 1996, organizado pelo Exército
Zapatista de Libertação Nacional.
Os livros de Boyer y Drache, de Husson e de Hirst e Thompson, todos eles
publicados em 1996, foram dos primeiros diagnósticos críticos da
globalização neoliberal, e suas colocações mais
profundas tem sido repetidas, com variantes e também com
críticas, até à data. A discussão que se
propôs nesses livros, inclusive sobre o Estado Nacional perante os
mercados na economia mundial (Boyer e Drache), foi tema de debate no FSM de
Mumbai. Não é de estranhar, os estudos científicos sempre
têm um tempo de assimilação da parte daqueles que
não se dedicam a tarefas de investigação; a seguir como
que se socializam, frequentemente simplificados, e aceitam-se ou não,
convertendo-se num novo debate, o debate da acção.
Esta acção traduziu-se em movimentos, num movimento de
movimentos, dizendo melhor, nos quais em princípio prevaleceu a
oposição ao existente e à definição de
objectivos, por considerar-se que estes podem dividi-los a partir do momento em
que se discutam as estratégias, o como alcançá-los.
Anarquismo e marxismo, por exemplo, tiveram enfrentamentos precisamente pelas
diferenças estratégicas de ambas correntes para a
construção do socialismo. De facto, ambas as correntes defendiam
o socialismo desde a Primeira Internacional, mas a sua concepção
sobre o socialismo era distinta, e sua estratégia oposta. Isto
não mudou em mais de 130 anos. O debate continua nos FSM.
Ainda assim, em Mumbai verificou-se um interesse acentuado, assinalado pelos
enviados deste diário, pela construção teórica de
objectivos alternativos à globalização neoliberal, agora
não só entendida como categorizada pela experiência dos
povos de todo o mundo. Ninguém mais ou menos consciente da sua
realidade tem dúvidas sobre a relação de
instituições como o Fundo Monetário Internacional com as
dívidas impagáveis dos países, da relação da
concentração de capital com a ampliação da pobreza,
da deterioração da coesão social com a crise
económica e com as políticas neoliberais dos governos
subordinados aos grandes capitais que dominam a economia mundial. Tudo isto, e
mais ainda, foi entendido pelos povos da África, Ásia e
América Latina, mas também pelos sectores mais depauperados dos
países do chamado primeiro mundo. Mas o que agora se quer e se exige,
inclusive dos intelectuais tão criticados em Porto Alegre, é a
discussão de alternativas que vão mais além de uma suposta
humanização do capitalismo que nunca ocorrerá (porque
contradiz sua essência).
A perspectiva não é fácil. Para além dos cantos e
dos bailes, do contacto entre diferentes culturas, que é um aspecto
muito positivo do Fórum, pois aproxima os povos e lhes dá mais
conhecimento dos seus pares em outros países, os debates sobre
objectivos e estratégias tendem, por natureza, a dividir. Muitos
participantes nesta edição do FSM poderiam estar de acordo em que
a luta contra a globalização neoliberal e o novo imperialismo
fosse também a luta pelo socialismo, mas de imediato surgiriam, como
já ocorreu, as diferenças. Garrido cita o caso de um comunista
hindu que defendeu voltar à ortodoxia marxista e que,
en passant
, "louvou os antigos regimes da Europa central", e diz que houve
murmúrios e questionamentos na sala de conferências, com toda a
razão, acrescentaria eu. Não seria fácil apagar, como se
não houvesse existido, a longo polemica entre as esquerdas desde a
Primeira Internacional até Mumbai, passando pelos movimentos do 68, a
conversão da URSS num país capitalista e Porto Alegre. Este
é o risco de qualquer tentativa de apresentar alternativas à mera
oposição ao existente. Contudo, penso, deverá tentar-se.
Este é o grande repto.
[*]
Colaborador do diário mexicano
La Jornada
. Autor de "Izquierda e
izquierdismo: De la Primera Internacional a Porto Alegre", Siglo Veintiuno
Editores, México, 2002, 223 pgs., ISBN 968-23-2377-0 (a sua edição em Portugal
deverá sair em 2004).
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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