A grande transição de fase
As transições de
fase são sempre críticas. Nos momentos das
transições as leis a que estamos habituados deixam de funcionar e
os fenómenos adquirem comportamentos inusitados. Durante a passagem da
água do estado líquido para o gasoso as leis que actuam já
não são as da física do estado líquido nem
tão pouco as do estado gasoso. São outras, não tão
bem conhecidas. E, de um ponto de vista antropomórfico, aparece-nos
como caos aquilo que não tem leis que conheçamos e onde a
previsibilidade (mesmo estatística) fica comprometida.
Estas
considerações valem também para as ciências sociais.
A humanidade parece estar prestes a entrar numa gigantesca
transição de fase. Isto significa que o mundo que conhecemos
deixará de ser como é hoje. Não me refiro ao
possível colapso do modo de produção capitalista, para o
qual não se podem marcar datas. Refiro-me a outro fenómeno, de
natureza física e para o qual se podem prever datas de modo
razoavelmente preciso. Trata-se de outro colapso: o da morte, já
anunciada, do petróleo. Isto marca o fim de uma era.
Os dados do problema são
razoavelmente conhecidos, graças sobretudo a importantes trabalhos de
investigação como os de Collin Campbell, Jean Laherrère e outros.
O petróleo recuperável é um recurso finito e a humanidade
já atingiu ou está prestes a atingir o pico da sua
produção. A curva inventada pelo grande geofísico
norte-americano King Hubber, a Curva de Hubbert, é inexorável. A
partir do pico, daí em diante, a produção declinará
assintoticamente até chegar ao final. O fim do petróleo
está, assim, no horizonte. É impossível que por um tempo
indefinido a humanidade continue a gastar loucamente, tal como agora, 82
milhões de barris/dia (=~30 x 10
9
barris/ano).
Não me preocuparei,
aqui, em descrever os dados quantitativos relativos a estes problemas. Hoje
apesar da muralha de silêncio erguida durante muitos anos por
governos, monopólios petroleiros e organizações tais como
a Agência Internacional de Energia, a União Europeia, etc
começa a haver literatura de bom nível a respeito. Quem quiser
estudá-la dispõe dos trabalhos da Association for Study of Peak
Oil
(ASPO)
, do Oil Depletion Analysis Centre
(ODAC)
, de
Jay Hanson
e de outros
investigadores. O foco desta comunicação não é
repetir aquilo que já foi dito e sim uma tentativa de imaginar, em
termos qualitativos, as possíveis consequências para a humanidade
da transição entre a era do petróleo e uma outra era que,
na falta de melhor definição, chamaremos do
pós-petróleo. Tal transição é ainda mais
complicada pela actual fase do capitalismo, que poderíamos chamar de
senil, em que este adquire um carácter predatório e de uma
irracionalidade absoluta quanto a fins (embora possa ser racional para atingir
fins irracionais).
Admitamos que o fim do
petróleo seja para, digamos, daqui a 50 anos (para efeitos desta
análise, não importa se um pouco mais ou um pouco menos pois isso
não iria alterá-la). Imaginemos então o raciocínio
de um desses
yuppies
forjados pela ideologia neoliberal, indivíduos extremamente
individualistas e imbuídos de um forte egoísmo geracional
inclusive. Se este
yuppie
for for mal informado, ele encolherá os ombros e dirá: pouco
importa, isso não afecta a mim nem à minha geração
e será um problema para os vindouros. Trata-se no entanto de um
gravíssimo erro, fruto da ignorância deste
yuppie
curto prazista. Na verdade, os efeitos do fim da era do petróleo
far-se-ão sentir muito antes de o último barril ter sido
extraído da terra. Eles poderão ser experimentados em prazos
tão curtos como meia dúzia de anos (pois muitos analistas
consideram que a Curva de Hubbert está agora num plateau que será
rompido por volta de 2008).
A primeira consequência a
ser sentida manifestar-se-á da forma mais óbvia, com a
actuação da tesoura dos preços. Ali Bakhtiar,
investigador iraniano e criador do modelo World Oil Production Capacity
(WOCAP), estima que dentro de dois anos (até 2006) o preço do
barril poderia atingir os US$125. Ou seja, uma previsão de
triplicação do preço actual do barril mesmo antes do fim
do "planalto" previsto para 2008.
Outra consequência que,
apesar da enxurrada de desinformação despejada pelas
organizações internacionais e pelos media corporativos, quase
toda a gente percebe de imediato é ao nível geopolítico.
O início do fim do petróleo intensifica a luta do imperialismo
para se apossar das últimas reservas remanescentes no planeta. A guerra
de conquista que se trava agora no Afeganistão e no Iraque, a
ameaça de outras (Irão, Colômbia, Ásia Central,
etc), a tomada de controle das reservas de outros países (África,
América Latina), etc, a rivalidade entre o imperialismo americano e o
sub-imperialismo europeu, o peso relativo da produção da OPEP
versus o da não-OPEP, etc, tudo isso está a acontecer diante de
nós neste momento (o défice de compreensão disto entre
milhões de pessoas do mundo deve-se à desinformação
dos media corporativos). No entanto, a dimensão geopolítica do
problema já é razoavelmente conhecida e a opinião
pública qualificada compreende-a bem. Há, no entanto, outras
espécies de consequências, talvez mais fundas, que não
são imediatamente perceptíveis. Refiro-me ao actual
modelo mundial de produção e de distribuição de
mercadorias
.
Comecemos pelo lado da
distribuição. Desde Adam Smith elaborou-se o programa
digo muito bem, "programa" e não "teoria" da
divisão internacional do trabalho. Ele vem sendo aplicado há um
par de secúlos. Durante as décadas do pós-guerra o Banco
Mundial e o FMI impuseram uma divisão internacional que forçava
os países subdesenvolvidos a se especializarem na produção
de determinados produtos a fim de exportarem e assim obterem divisas duras para
pagar: 1) o serviço da dívida; 2) o consumo perdulário
das suas classes dominantes locais e 3) a importação de comida
para os seus povos. Com base nessa política, tais países
abandonaram (ou foram forçados a abandonar) preocupações
com a auto-suficiência alimentar. Argumentava-se que era mais barato
importar os alimentos do que produzi-los internamente. Assim, inúmeros
países da África e América Latina especializaram-se nas
produções de exportação (agrobusiness,
petróleo, café, carne, minérios metálicos, frutas,
etc) e deixaram de estar em condições de alimentar as suas
próprias populações. Nessa altura, será de
perguntar, o que acontecerá quando a alta dos custos dos transportes
internacionais puser em causa o actual modelo globalizado de
distribuição, em que as mercadorias têm de vencer
distâncias de milhares de quilómetros? O que acontecerá
quando o custo da tonelada transportada se tornar astronómico? Tudo
indica que ele será posto em causa, pois não será
sustentável. O que aconteceria então? Uma resposta tentativa:
Seria de prever um retorno à teoria provada ao longo de
milénios da auto-suficiência alimentar dos países.
Trata-se de teoria intuitiva e cheia de bom senso que foi brutalmente
destruída pelo capital (Cuba, com a sua experiência
pós-1989, poderia nessa altura dar lições ao mundo). Mas
terá este sistema a inteligência, a racionalidade e a vontade de
promover uma tal alteração que vai ao arrepio das teorias em
vigor e dos interesses dominantes? Um eventual retorno à filosofia da
auto-suficiência alimentar significaria, só por si, uma
autêntica revolução nas relações de
distribuição oligopolizadas que regem o mundo de hoje. É
de prever que o capital monopolista combata ferozmente tal saída,
fazendo todo o possível e imaginável para impedir a
adopção de tal caminho.
O problema do transporte
será verdadeiro igualmente no plano da distribuição dentro
de cada país. Até mesmo com preços do barril a
nível "normal" actualmente já há países
na África que não dispõem de recursos sequer para importar
refinados de petróleo. Tal situação poderá
estender-se a outros países não-produtores de petróleo,
africanos ou não. Pode-se imaginar que as dificuldades de transporte
tendam a levar a localismos da produção dentro de cada
país, com prováveis retrocessos iniciais a nível da
produtividade (métodos mais primitivos, etc). As relações
cidade-campo ficarão igualmente afectadas, o campo terá
dificuldade em alimentar as cidades "inchadas" do mal chamado
Terceiro Mundo.
Do lado da
produção, as consequências têm um carácter
tão multifacético e complexo que é difícil prever o
que poderia vir a ser a resultante final. Ainda que sumariamente, sem
pretender fazer futurologia, podem-se imaginar algumas das possíveis
consequências:
Na agricultura, verifica-se que
a de tipo intensivo (o chamado agrobusiness) repousa em inputs que tem origem
no petróleo é o caso dos fertilizantes azotados, dos
pesticidas e fungicidas, do combustível para a maquinaria
agrícola, etc. Assim, a escassez do petróleo tenderá a
reduzir a produtividade do trabalho e o rendimento proporcionado pela terra. E
isto ocorreria com mais intensidade em terras "velhas", que há
muitas gerações estão a produzir e cuja fertilidade
só pode ser reposta por meios artificiais. Há quase 200 anos a
humanidade está a retirar fertilizantes da terra e a
lançá-los fora nos esgotos das cidades.
No caso da agricultura de
pequena escala o panorama, naturalmente, seria menos grave do que na primeira.
No entanto, falta saber em que medida poderia esta produzir um excedente
suficiente para repor as perdas da intensiva. As relações de
propriedade certamente terão de mudar para permitir o acesso à
terra a milhões de novos agricultores.
São admissíveis
igualmente consequências demográficas, tanto a nível da
taxa de crescimento populacional como da distribuição espacial
das populações uma des-urbanização, com um
retorno ao campo a fim de cultivar a terra. A proporção actual
dos países desenvolvidos, em que 10% da população alimenta
os 90% restantes, provavelmente não poderá ser mantida. Mais
gente terá de dedicar-se à agricultura.
A indústria será
afectada de modo directo, principiando naturalmente pelas mais
"energívoras". A obsolescência de parte do parque
industrial mundial será uma possibilidade forte, com o sucateamento de
muitas delas (refinarias de petróleo, fábricas de veículos
convencionais, etc). Será de admitir o surgimento de tipos de
indústrias mais pequenas e energeticamente mais auto-suficientes, na
linha preconizada por Schumacher. Não será, portanto, uma volta
ao passado histórico pois agora a humanidade dispõe de um acervo
de conhecimentos adquiridos que pode ser posto ao serviço da
produção em novos moldes (a electrónica é pouco
devoradora de energia e pode ser posta ao serviços da
produção). Parece certo o desenvolvimento das energias
renováveis (solar térmica e fotovoltaica, eólica,
marés, ondas, geotérmica, hidroeléctrica, biogás e
biomassa, etc), do gás natural (cuja Curva de Hubbert é mais
aplainada, mais extensa no tempo e tem um pico menos bem definido) e do
nuclear. Parecem menos certas as perspectivas do tão apregoado
hidrogénio uma vez que este não é uma fonte
primária de energia (os seus defensores, como Rifkin e a União
Europeia, ainda não explicaram de onde poderá ele ser
extraído, a custos comportáveis, quando acabar o gás
natural e o petróleo para obter hidrogenio da água
também se gasta energia!).
Estas pinceladas
rápidas, têm um carácter meramente impressionista a fim de
dar uma ideia da Transição de Era que está por vir.
São apenas exemplos de alterações que podem suceder-se.
Mas sejam quais forem elas, a certeza é de que inelutavelmente
irão verificar-se enorme alterações no modo de
produção e distribuição planetário e nada
será como dantes.
Temos portanto uma crise
anunciada e até datada (muitos analistas prevêem o fim do actual
"planalto" da Curva de Hubbert por volta de 2008) e outra anunciada
mas não datada: o possível desenlace da crise do modo de
produção capitalista num (sempre adiado) colapso
sistémico.
Os temas aflorados acima
constituem modificações que se podem considerar mais gigantescas
do que a Revolução Industrial no século XIX, com a
invenção da máquina a vapor. Esta foi uma
Revolução muito localizada no espaço (Grã-Bretanha)
e que só muito lentamente, ao longo de mais de cem anos, difundiu-se
pelo resto do mundo (mesmo assim nem todo, pois ainda hoje a
industrialização não chegou a imensas áreas do
mundo). Em contra-partida, o fim da Era do Petróleo afectará o
mundo todo e de uma forma síncrona: a escassez de petróleo
atingirá todos e ao mesmo tempo.
Estamos a falar de
alterações decisivas para o futuro da humanidade, que comprometem
a sua existência. Por isso, é espantoso que a maior parte dos
responsáveis a começar pelos ditos "estadistas"
(se ainda existem), pelos media e por entidades como a Agência
Internacional de Energia da OCDE ignore um problema desta escala e
desta magnitude, um problema que põe em causa as bases de funcionamento
da sociedade. Pior: muitas vezes tal problema não só é
ignorado como é também negado, numa autêntica
política do avestruz.
Durante anos a fio os
monopólios petroleiros, organizações estatais (como o US
Geological Survey), organizações internacionais (como o Banco
Mundial, a AIE da OCDE, etc) pura e simplesmente ignoraram ou fingiram ignorar
o problema a fim de não contrariar os interesses estabelecidos. Para
indivíduos imbuídos da ideologia neoliberal, a
actuação predatória sobre os recursos naturais em
benefício do capital é algo "normal". É assim
que se dizimam de modo irreversível as florestas do mundo todo, que se
esgotam os lençóis freáticos de água doce, que se
contaminam terras e águas com explorações mineiras e
outras, que se esgotam bancos pesqueiros com capturas que não permitem a
reposição de stocks, etc, etc e que se dizima o
petróleo de uma forma bárbara ao ritmo de 82 milhões de
barris/dia (4,1 mil milhões de toneladas/ano). A nova moda nos EUA
são os chamados Sport Utility Vehicles (SUVs), potentes monstros
bebedores de gasolina em escala jamais vista antes.
Mas as evidências de
esgotamento que se acumularam foram tantas que aqueles que preferiam ignorar o
problema tiveram de ensaiar respostas. Surgiram assim os
"negacionistas", com as suas falácias. Uma das
espécies de negacionistas é a dos economistas vulgares, de
visão curta mas cheios de certezas dogmáticas. O seu
negacionismo repousa na teoria neoclássica. Dizem eles que o deus
mercado tudo regulará, pois trata-se apenas uma questão de
preços. Assim, se a procura ultrapassar a oferta haverá
"simplesmente" um reajustamento de preços. Isto significa que
aqueles que puderem pagar os novos preços poderão continuar a
queimá-lo de forma perdulária. Mas eles nada dizem o que se
passaria quanto aos outros que não puderem pagar muitas vezes mais o
preço actual os quais constituirão a maior parte da
espécie humana. Os exemplos actuais de pauperização de
continentes inteiros (África, América Latina) não auguram
nada de bom.
Outro tipo de negacionista
é o dos que ostentam uma fé ilimitada no progresso
tecnológico. Tal tipo de negacionista é muito frequente
sobretudo entre aqueles que nada sabem de ciências, mas transferem para
esta a resolução do problema. Este tipo de negacionista é
muito encontrável entre políticos, sobretudo chefes de Estado. A
sua vontade de conhecer os problemas reais já não é muito
grande e, além disso, organizações internacionais como a
União Europeia e a OCDE contribuem para mistificá-los e
por vezes induzem-nos à adopção de soluções
equívocas mas que favorecem interesses de monopólios. Na verdade
não há soluções tecnológicas prontas que
possam no médio prazo e em grande escala vir a substituir o
petróleo. Aqueles que dizem não pretender a gasolina e sim o
"serviço" proporcionado pela gasolina e que o mesmo
serviço poderia ser proporcionado por menor quantidade de gasolina (ou
por outro combustível alternativo) estão a cair na utopia
tecnológica. E aqueles que falam na pseudo-solução dos
biocombustíveis auto-enganam-se com esta falácia pois, mesmo sem
pensar nos custos, a terra agriculturável não é infinita.
Ainda há outros tipos de
negacionistas, como aqueles que acreditam piamente (ou fingem acreditar) nas
estatísticas públicas sobre reservas provadas, prováveis e
possíveis, descobertas, produções, etc. Mas grande parte
dessas estatísticas tem de ser expurgada de dados espúrios,
introduzidos em função dos interesses daqueles que as produzem.
Talvez acordem quando se revelarem verdades escondidas durante muito tempo,
como por exemplo que o maior campo de petróleo do mundo (Ghawar, na
Arábia Saudita) já atingiu o seu pico e, mesmo utilizando
técnicas de recuperação secundária, principia a
declinar. Ou que a fase de declínio já atingiu igualmente o
segundo maior campo do mundo (Cantarell, no México), cuja
produção principiou em 1979.
- x -
Camaradas e amigos:
Não tenho gosto em ser
Cassandra. Não pretendo fazer terrorismo energético. Pretendo
apenas despertar as atenções para um problema que, até
agora e na generalidade, tem sido silenciado. A humanidade tem o direito e o
dever de ser informada do que está para acontecer. O debate precisa ser
lançado. A confluência da crise do capitalismo na sua fase senil
com a crise do petróleo não poderá deixar de ter
repercussões fortíssimas sobre a humanidade. Mas não
está pré-determinado como será o desenlace destas crises.
Há muitas soluções possíveis e factíveis,
há muitos futuros possíveis. Se o actual modo de
produção e distribuição fosse racional e justo,
tentaríamos poupar ao máximo o petróleo ainda existente e
efectuar de modo tão suave quanto possível a
transição para o mundo pós-petróleo. Mas o modo de
produção e distribuição capitalista nada tem de
racional nem de justo. Assim, são de prever grandes embates entre povos
do mundo todo e os monopólios que os dominam. Em alguns lugares do
mundo surgirão situações revolucionárias, mas elas
só poderão ser aproveitadas se os povos e as suas vanguardas
estiverem preparados para a ruptura com o imperialismo e a tomada do poder
caso contrário, será o imperialismo a impor as suas
"soluções", com um carácter retrógrado e
agravador dos problemas. Trata-se de uma corrida contra o tempo. O desenlace
terá um carácter revolucionário ou fascizante. O desafio
é terrível. Para enfrentá-lo é imperioso elevar o
nível de consciência daquilo que está em causa.
Posições recuadas e "possibilismos" só levam
à derrota.
__________
[*]
Comunicação ao Encontro Internacional
"Civilização ou Barbárie", Serpa, 23-25/Set/2004.
Ver também, do mesmo autor,
A mudança para um novo paradigma energético
.
Esta comunicação encontra-se em
http://resistir.info
.
English version at URL:
http://www.globalresearch.ca/articles/FIG503A.html
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