O Iraque já não é seguro e vai ficar ainda pior

por Robert Fisk [*]

Clique para ampliar o mapa do Iraque Nasiria, 30 de Maio.

Ao anoitecer de hoje viajava eu pela cidade muçulmana chiita de Nasiria quando três soldados norte-americanos saltaram para a frente do carro onde eu seguia. "Pare o automóvel!", vociferou um deles, agitando a pistola diante do pára-brisas. Gritei ao motorista para que parasse. Nem ele nem eu tínhamos visto os militares saltar ao caminho.

Outros dois soldados aproximaram-se da traseira do carro, com as armas apontadas. Mostrei os nossos documentos de identificação e o oficial, que usava um capacete de camuflado, mostrou-se cortês, mas incisivo.

"Deviam ter visto a nossa barragem", disse, acrescentando: "Desejo-lhes boa estadia em Nasiria, mas não saiam depois do anoitecer. Não é seguro."

O que ele queria dizer, suponho, é que o Iraque não é seguro para os soldados norte-americanos após o anoitecer, pois horas mais tarde saí para as ruas da cidade para comprar um hambúrguer de frango e os iraquianos que me atenderam num pequeno café mostraram-se extremamente amáveis.

Pediram desculpa pelo pó nas mesas e pela falta de guardanapos, assim como pelo bocado de parede sujo no qual dois meses atrás deve ter estado pendurado um retrato de Saddam Hussein.

Que se passava, então? Os "libertadores" entram já na terra inóspita da ocupação, enquanto os nossos patrões em Londres e Washington se vangloriam da vitória, da coragem e — aqui cito as declarações de Tony Blair sexta-feira passada, dirigindo-se às tropas britânicas a cem quilómetros a sul do local onde me encontro, em Bassorá — da forma como continuam "a tentar fazer algo com o país que vocês libertaram".

Apenas umas horas antes, um dos milicianos de Ahmed Chalabi em Nasiria tinha-me contado que os norte-americanos "humilham" as pessoas e tinha-me descrito a forma como "haviam obrigado um homem a pôr-se a quatro patas diante dos amigos por não ter obedecido às suas ordens". Haverá uma revolta se isto continua, preveniu.

Não sei se o que conta é verdade, além do facto de todos os chiitas com quem falei em Nasiria se terem referido em termos elogiosos aos soldados britânicos que estão mais a sul, mas algo deu já resultados terrivelmente maus.

Até o guarda do museu local, que viajou no mesmo automóvel que eu, assegurou que o petróleo foi o único motivo da guerra. "Cem dias de Saddam eram melhores do que um de americanos", vociferou.

Não creio que isto seja verdade — os norte-americanos não assassinam dezenas de milhares de chiitas como Saddam o fez há 12 anos —, mas esta é a nova "verdade" que por aqui circula. Provavelmente, Washington espera que a quantidade de cadáveres que estão a ser desenterrados no deserto forneça uma nova razão para o recente conflito.

"Agora pode-se contar a verdade" é a frase sacramental que se espera ouvir sempre no início do noticiário televisivo sobre os enterros em massa. No entanto, há algum tempo que conhecíamos essa verdade: depois de George Bush pai ter chamado estes mesmos iraquianos pobres a combater Saddam e de os ter abandonado para serem massacrados em Bagdade pelo antigo cliente dos EUA.

"Saddam foi uma vergonha para o Iraque", disse-me um homem quando estávamos junto a 400 crânios, ossos e farrapos numa escola perto de Hillah. "Mas os Estados Unidos deixaram-nos morrer", acrescentou, referindo-se de imediato aos "interesses norte-americanos" como motivo destas cenas preparadas.

Mentiras a descoberto

Na realidade, as mentiras dos homens que enviaram os exércitos americano e britânico à Mesopotâmia estão a ser descobertas. Efectivamente, Tony Blair apresentou-se esta semana em Bassorá com a sua retórica sub-churchileana sobre a "coragem", as suas alusões ao "sangue derramado e baixas verdadeiras " e as suas expressões de pesar pelos soldados britânicos que "não regressarão à pátria".

Porém, quem enviou os britânicos morrer no Iraque? Se houve "baixas verdadeiras", quem falou de armas de destruição massiva, que eram tão reais quando o primeiro-ministro queria ir para a guerra e parecem tão irreais agora que a guerra terminou?

Blair disse que ainda as encontraremos e que devemos ter paciência. Todavia, o Secretário de Estado da Defesa norte-americano, Donald Rumsfeld, diz agora que talvez não existissem quando a guerra começou.

Em Londres e Washington seguir-se-ão as repercussões de tudo isto a nível interno, mas a reacção no Iraque é muito mais agressiva. Um novo mural que vi na quarta-feira passada no populoso bairro da Cidade Sader (anteriormente Cidade Saddam) conta a sua própria história. "Ameacem os norte-americanos com atentados suicidas", exorta.

Não é difícil ver como cresce a cólera. O caminho que vai de Nasiria a Bagdade já não é seguro de noite. Agora há assaltantes à espreita na estrada, da mesma forma que há vadios e saqueadores nas ruas de Bagdade. E vislumbro nisto uma estranha simetria.

Nos tempos do odiado talibã, podia-se percorrer o Afeganistão de carro de dia ou de noite. Agora não se pode viajar de noite com receio dos assaltos, homicídios e violações. Nos tempos do odiado Saddam podia-se atravessar de carro sem perigo a maior parte do Iraque. Agora não se pode: por algum motivo estranho, a "libertação" norte-americana tornou-se sinónimo de anarquia.

Outro aspecto é a chuva de periódicos que aparecem em Bagdade, e que informam sobre os lucros que as empresas norte-americanas obtêm com a guerra.

Os aeroportos iraquianos estão subcontratados, a administração do porto de Um Quasr foi entregue por 8,4 milhões de dólares a uma empresa norte-americana, de que um dos gestores tinha sido, por mera casualidade, assistente de Bush filho quando este era governador do Texas. Halliburton, a antiga empresa do vice-presidente Dick Cheney, tem contratos importantes para extinguir os incêndios dos poços de petróleo no Iraque, construir bases norte-americanas no Kuwait e transportar tanques britânicos.

A empresa que tem mais probabilidades de ficar com os contratos de reconstrução do Iraque é a gigantesca corporação Bechtel, cujo vice-presidente, o general na reforma Jack Sheehan, é membro do Conselho de Política de Defesa do presidente Bush.

Trata-se da mesma Bechtel que, segundo o relatório sobre armamento que o Iraque apresentou às Nações Unidas antes da guerra — o qual foi rapidamente censurado por Washington —, ajudou em tempos Saddam a construir uma fábrica de produção de etileno, que pode ser utilizado para o fabrico de gás mostarda.

O conselho de administração da Bechtel tem entre os seus membros o ex-secretário de Estado George Schultz, que por outra mera casualidade é o presidente do conselho de assessores do Comité para a Libertação do Iraque, o qual tem certamente laços estreitos com a Casa Branca.

A reconstrução do Iraque, que custará provavelmente cerca de 100 mil milhões de dólares, os quais — e nisto radica a graça da questão — serão pagos pelos iraquianos com as receitas das futuras vendas de petróleo, as quais, por sua vez, beneficiarão as companhias petrolíferas norte-americanas, que preparam já os seus planos para extrair o petróleo do Iraque.

De todo isto os iraquianos estão bem conscientes. Assim, quando vêem, tal como eu, os grandes comboios de veículos norte-americanos que passam zunindo pela estrada Saddam em direcção ao sul e a oeste de Bagdade, que pensam?

Reflectem, por exemplo, no recente ensaio de Tom Friedman no New York Times, no qual o colunista (que culpa Saddam da pobreza dos iraquianos sem nunca se referir aos 13 anos de sanções das Nações Unidas, apoiadas pelos Estados Unidos) anuncia: "O melhor desta pobreza é que os iraquianos se encontram tão desorientados que, na sua grande maioria, parecem dispostos a dar aos norte-americanos a oportunidade de transformar o país num lugar melhor".

Fico perplexo com este e outros comentários de "peritos" da comunidade intelectual da costa Este dos Estados Unidos. Porque me dá a impressão — ao observar o igualmente assombroso controlo exercido pelos EUA nesta parte do mundo, o seu imenso poderio bélico, as suas bases e pessoal na Europa, nos Balcãs, na Turquia, Jordânia, Kuwait, Iraque, Afeganistão, Uzbequistão, Turquemenistão, em Barein, Doha, Oman, no Iemen e em Israel, que não se trata só do petróleo, mas também da mera projecção de poder global por parte de uma nação que, na realidade, possui armas de destruição massiva.

Não é de estranhar que o soldado de pistola e capacete me tenha dito que não saísse depois do anoitecer. Tinha razão. O Iraque já não é seguro. E vai ficar ainda pior.

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[*] Correspondente em Bagdad de The Independent.


A tradução espanhola encontra-se em
h
ttp://
www.rebelion.org/imperio/030601fisk.htm


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/.

11/Jun/03