O grotesco fim do sonho americano
Seria suposto a imprensa americana desafiar as mentiras desta guerra
por Robert Fisk
É uma brilhante manhã de inverno e estou a sorver meu primeiro
café do dia em Los Angeles. Meus olhos movem-se como um feixe de radar
sobre a primeira página do
Los Angeles Times
à procura da palavra que domina a mente de todos os correspondentes no
Médio Oriente: Iraque. Na pós invasão, pós estilo
Judith Miller, a imprensa americana seria suposta estar a desafiar as mentiras
desta guerra. Assim, a estória por baixo da manchete "Numa batalha
de talentos, o génio da insurgência do Iraque ficou um passo
à frente do EUA" merece ser lida. Ou não merece?
Datada de Washington uma estranha cidade para aprender acerca do Iraque,
poder-se-ia pensar o seu parágrafo inicial diz: "Apesar da
recente prisão de um dos seus aspirantes a bombista suicida na
Jordânia e de alguns ajudantes de topo, o génio da
insurgência Abu Musab Zarqawi evitou a captura, dizem as autoridades
americanas, porque a sua rede tem uma capacidade de recolha de
inteligência muito melhor".
Agora, sem considerar o facto de que muitos iraquianos bem como, tenho
de admitir, eu próprio têm sérias dúvidas
acerca da existência de Zarqawi, e de que o Zarqawi da al-Qaeda, se
existe, mereça o título de "génio da
insurgência", as palavras que prenderam a minha
atenção foram "dizem autoridades americanas". E quando
li toda a reportagem, notei como o
Los Angeles Times
obteve este conto extraordinário. Eu pensava que os repórteres
americanos não confiassem mais na administração dos EUA,
nunca mais depois das míticas armas de destruição em
massa e das igualmente míticas conexões entre Saddam e os crimes
internacionais contra a humanidade do 11 de Setembro de 2001. Claro, eu estava
errado.
Aqui estão as fontes para o fio tecido nas páginas um e 10
pelos repórteres Josh Meyer e Mark Mazzetti: "Responsáveis
americanos dizem", "diz um responsável por contra-terrorismo
do Departamento de Justiça dos EUA", "Responsáveis ...
dizem", "aqueles responsáveis dizem", "os
responsáveis confirmaram", "responsáveis americanos
queixaram-se", "os responsáveis US enfatizaram",
"as autoridades americanas acreditam", "diz um
responsável senior da inteligência US",
"responsáveis US disseram", "responsáveis
jordanianos ... disseram" aqui, pelo menos, há um ligeiro
alívio "responsáveis americanos disseram",
"vários responsáveis americanos disseram", "os
responsáveis americanos disseram", "oficiais americanos
disseram", "responsáveis dizem", "dizem
responsáveis dos EUA", "responsáveis dos EUA
disseram", "um responsável americano pelo contra-terrorismo
disse".
Apreciei realmente esta estória. Ela prova meu ponto de vista de que
o
Los Angeles Times
bem como os grandes diários da costa leste deveriam ser
chamados RESPONSÁVEIS AMERICANOS DIZEM
(US OFFICIALS SAY).
Mas não é apenas esta bajulação do poder
político que me desespera. Vamos ver um exemplo mais recente a que
só posso chamar racismo institucionalizado na informação
americana do Iraque. Tenho de agradecer esta
jóia ao leitor Andrew Gorman, uma reportagem de Janeiro da Associated
Press acerca da morte de um prisioneiro iraquiano sob o interrogatório
do Primeiro Sargento Chefe americano Lewis Welshofer Jnr.
O sr. Welshofer, soube-se no tribunal, havia enfiado a cabeça do
general iraquiano Abed Hamed Mowhoush dentro de um saco de dormir e depois
sentou-se sobre a sua caixa toráxica, uma acção que
não surpreendentemente provocou a morte do general. O
júri militar ordenou leitor, suspenda a respiração
uma reprimenda ao sr. Welshofer, a retenção de US$ 6.000
do seu salário e o seu confinamento nas casernas durante 60 dias. Mas o
que chamou a minha atenção foi o pormenor simpático. A
esposa de Welshofer, Barbara, contou-nos a AP, "testemunhou que estava
preocupada com a manutenção dos seus três filhos se o seu
marido fosse sentenciado à prisão. 'Gosto mais dele por combater
isto", disse ela, com lágrimas a brotarem dos seus olhos. 'Ele
sempre disse que precisamos fazer a coisa certa, e por vezes a coisa certa
é a mais difícil de ser feita'".
Sim, imagino que a tortura seja incómoda para o torturador. Mas
experimente isto na mesma reportagem: "Na véspera ... o sr.
Welshofer reprimiu as lágrimas. 'Peço profundas desculpas se as
minhas acções mancharam os soldados que servem no Iraque', disse
ele".
Note como o remorso do assassino americano é dirigido não
às suas vítimas indefesas e mortas e sim à honra dos seus
camaradas de armas, embora numa audição anterior houvesse
revelado que alguns dos seus colegas observavam Welshofer a sufocar o general
dentro do saco de dormir e nada fizessem para impedi-lo. Um relato anterior da
AP declarava que "responsáveis" aqui vêm eles
outra vez "acreditavam que Mowhoush tinha informação
que 'quebraria a espinha da insurgência' ". Uau! O general
conhecia todos os 40 mil insurgentes iraquianos. Assim, era uma boa ideia
sufocá-lo dentro de um saco de dormir e sentar sobre o seu tórax.
Mas o escândalo real acerca destas reportagens é que nada nos
dizem acerca da família do general. Será que ele tinha uma
esposa? Imagino que as lágrimas estivessem a "brotar dos seus
olhos" quando lhe disseram que o seu marido tivesse sido morto.
Será que o general tinha filhos? Ou parentes? Ou quaisquer outros
seres amados que "reprimiam as lágrimas" quando lhes contaram
esta façanha desprezível. Não, no relato da AP não
consta. O general Mowhoush surge como um objecto, uma criatura desumanizada
que impediria os americanos de "quebrarem a espinha" da
insurgência depois de ter a cabeça sufocada num saco de dormir.
Agora vamos louvar a AP. Numa manhã igualmente brilhante de
verão, na Austrália, uns poucos dias atrás abri o
Sydney Morning Herald.
O jornal informou-me, na página seis, que a agência de
notícias, utilizando o Freedom of Information Act, havia forçado
as autoridades americanas a entregarem mais de 5000 páginas de
transcrições de audiências no campo de prisioneiros da
Baía de Guantanamo. Um deles regista o julgamento do recém
libertado prisioneiro britânico Feroz Abbasi, no qual o sr. Abbasi
solicita em vão ao seu juiz, um coronel da US air force, a que revele a
prova contra ele, algo que ele afirma ter o direito de ouvir à luz do
direito internacional.
E aqui está o que o coronel americano respondeu: "Sr. Abbasi, a
sua conduta é inaceitável e isto é a sua advertência
final absoluta. Eu não me importo
(I do not care)
com o direito internacional. Não quero ouvir as palavras direito
internacional. Nós não estamos preocupados acerca do direito
internacional".
Infelizmente, estas palavras que simbolizam o fim completo do sonho
americano foram enterradas no meio do texto. O coronel, claramente uma
desgraça para o uniforme que enverga, não aparece no
título insípido ("Jornais americanos contam estórias
de reclusos de Guantanamo") do jornal de Sydney, mais interessado em
contar-nos que os documentos entregues identificam nominativamente os
"agricultores, lojistas e pastores de cabras" mantidos em Guantanamo.
Estou agora em Wellington, Nova Zelândia, a assistir na CNN a um ataque de
Saddam Hussein no tribunal de Bagdad que está a julgá-lo. E,
subitamente, o apavorante Saddam desaparece do meu écran. A
audição passa a ser em segredo, tornando este tribunal da corda
(drumhead)
uma farsa ainda maior. É uma desgraça. E o que é que
nos conta respeitosamente a CNN? Que o juiz "suspendera a cobertura dos
media"!
Se ao menos, digo para mim mesmo, a CNN juntamente com a imprensa
americana fizesse o mesmo.
19/Março/2006
Publicado originalmente por
the lndependent/UK
, transcrito em
http://www.commondreams.org/views06/0319-22.htm
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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