Cresce o assédio da resistência iraquiana
ao aeroporto de Bagdad

por Robert Fisk [*]

Aeroporto de Bagdad, que durante 13 anos esteve fechado a voos regulares devido às sanções impostas pelo imperialismo com a chancela da ONU. Hoje em dia é preciso levar uma escolta militar para chegar a Bagdad. Sim, recorde-se que a cada hora que passa as coisas vão melhor no Iraque, segundo o presidente George W. Bush. Mas os guerrilheiros andam tão próximos dos caminhos que os estadunidenses eliminaram cada árvore, maciço de palmeira ou tufo de ervas. As granadas lançadas por foguetes mataram tantos soldados neste troço do caminho que o exército estadunidense — tal como havia feito o israelense no sul do Líbano em meados da década de 1980 — erradicou todo e qualquer vestígio de natureza. Para ir ao aeroporto de Bagdad atravessa-se um deserto.

Não é exactamente um aeroporto do primeiro mundo. "Bem, senhoras e senhores, podem deixar aqui as suas malas e ir ali dentro para o check-in", diz sorridente um engenheiro do exército dos EUA aos passageiros que seguem para Aman. Entramos, pois, num salão com pesados móveis estilo baasista e recolhemos pedaços de papel que não indicam qualquer número de voo nem de poltrona, nem tão pouco lugar de destino e nem mesmo uma hora de partida.

Do outro lado há um Burger King, mas está numa "zona de alta segurança" que a maioria dos passageiros não pode visitar. Não existe quem venda água. Os assentos são tão poucos que a maioria dos passageiros fica em pleno sol, fora daquilo que deve ser o maior gabinete postal do mundo, uma enorme estante com 10 metros de altura cheia de pacotes de cartas para cada um dos 146 mil soldados colocados no Iraque.

Mas vamos dar uma olhadela aos passageiros. Há uma dama da organização humanitária Care, que vai de férias à Tailândia — país que, calculo com rapidez, está exactamente do outro lado do mundo em relação ao Iraque —, o bispo de Bassorá, com sua sotaina negra e vermelha e um crucifixo pendurado no pescoço; uns operadores de câmara de TV que regressam ao seu país, e o representante da Cruz Vermelha Internacional, que é aguardado em Kirkurk por um pequeno avião daquela entidade. Também um trabalhador britânico da construção, procedente de Hilla, que passou a noite de quinta-feira passada sob fogo junto com o batalhão polaco local. "Granadas lançadas por foguetes e fogo contínuo de rifle durante duas horas", murmura.

Naturalmente, as autoridades de ocupação nunca revelaram tal acontecimento. Porque as coisas vão melhor no Iraque.

Por trás de nós, uma série de jactos com quatro motores ascendem no caloroso céu matutino, enormes aparelhos sem insígnias que voam em círculos estreitos depois de decolar e antes de aterrar, tão baixos que parecem roçar o solo com a ponta das asas, a fim de evitar os mísseis terra-ar pois os inimigos dos Estados Unidos começaram a disparar contra aviões e helicópteros no "novo Iraque".

É "manobra de rotina", diz-nos com ar confidencial um dos engenheiros estadunidenses. "Todas as noites disparam contra nós".

Dentre os demais passageiros há um trabalhador humanitário que mostra sinais evidentes de colapso nervoso e umas damas iraquianas com ar senhorial que são escoltadas por um oficial da Royal Air Force com cabelo muito compridos por trás da nuca. Mais além, uns soldados das forças especiais estadunidenses desfrutam do sol, sob o peso de mochilas de lona, rifles e pistolas automáticas.

HOMENS DE NEGRO

Por que todos usam óculos escuros?, pergunto. Um deles tira-os e responde: "Que garota nos olharia se nos visse como somos?".

Estou de acordo com ele. Mas são um grupo inteligente, com conversação salpicada de ironias. Sim, têm uma casa de segurança próximo de Fallujah e as baixas em combatem por vezes são "contidas" como acidentes de caminho ou afogamentos. Um jovem chamado Chuck quis fazer-me uma confidência: "Sabes qual é o recurso mais apreciado desta terra?", pergunta-me. "Os iraquianos", diz ele. "Têm um montão de protoplasma".

Tentava eu entender a sua definição de protoplasma quando chegou o primeiro obus, um rugido atroador que fez com que todos os passageiros se agachassem como num coro teatral; uma coluna de fumo elevava-se preguiçosamente do outro lado da avenida. Ouviu-se um silvo e a seguir outro estrondo.

"Estão melhorando", disse o Chuck. "Esse deve ter caído próximo da calçada".

Os outros rapazes das forças especiais fazem sinais de aprovação. Os passageiros juntam-se em torno da porta tal como animais estabulados; em troca, os estadunidenses de óculos escuros preparam-se para o espectáculo. Outra tremenda explosão e todos anuem com a cabeça. Outro grande círculo branco leva-se para o céu, como se um gigante viciado em tabaco se houvesse sentido na calçada a fumar.

"Nada mal", diz o amigo de Chuck. "Antes tínhamos um perímetro de segurança de oito quilómetros em torno do aeroporto", comenta ele. "Agora é de três. O alcance máximo de uma antiaérea é de 8 mil pés. De modo que três quilómetros é o limite".

Tradução: antes as forças estadunidenses controlavam oito quilómetros em torno do aeroporto, distância demasiado grande para que um homem com um lançados manual pudesse atingir um avião. As emboscadas e os ataques reduziram o seu controle só a três quilómetros. No limite desse raio, com alcance de mísseis de 8 mil pés (2400 metros), um atacante poderia atingir um avião.

Os estadunidenses dizem que há dois aviões que voam para Aman, um às 10 e outro às 12 horas. A seguir o Airbus das 12 passa a ser o da uma, o charter das 10 passa a ser o das 13, e finalmente informa-se que o Airbus das 13 partirá às 23. Depois explode outra revoada de obuses em frente aos hangares da extremidade oposta do aeroporto. "Isto", pontifica o bispo de Bassorá dirigindo-se a mim, "é a continuação da nossa guerra de 22 anos".

Telefono a um colega de Bagdad. "Ataque ao aeroporto com fogo de obuses", informo-o. "Não ouvi falar disso", responde-me. "Quantos obuses foram?"

Entretanto, os rapazes das forças especiais continuam a divertir-se. Um helicóptero Apache passa em voo sobre nós a fim de bombardear os guerrilheiros. "O que é que adianta", diz Chuck. "Já se retiraram".

Como técnicos em guerra de guerrilhas reconhecem com frieza o profissionalismo de qualquer um, inclusive do inimigo.

Aparece um engenheiro estadunidense. Se os rapazes da televisão convidarem o seu pessoal para umas Cocas, deixa-os visitarem o Burger King. De um lugar para além do perímetro do aeroporto chega o som do disparo de rifles. Deve haver um filme por aqui, Walt Disney chegar ao Vietnam.

O Airbus pertence, ainda que pareça incrível, à Royal Jordanian, a única linha aérea internacional que se atreve a voar para Bagdad uma vez por dia. Na escada de abordagem um grupo de agentes de segurança jordanianos que usa peúgas brancas — os detectives jordanianos e sírios usam sempre dessas peúgas — insiste em revistar outra vez a nossa bagagem, ali em plena pista. Acendem-se e apagam-se computadores, abrem-se e fecham-se câmaras, abrem-se bolsas de lavanderia, sacam-se cadernos, até um pacote de cartas de leitores tem de submeter-se à revista. O Apache voa de regresso, com os foguetes ainda no seu ninho.

A decolagem é mais rápida que de costume. Mas não há uma subida uniforme até a altitude de cruzeiro. O Airbus faz uma viragem brusca para bombordo, as forças G nos esmagam contra a poltrona, e fora da minha janelinha aparece o campo de tendas onde os estadunidenses retêm mais de 4 mil prisioneiros iraquianos sem julgamento nem acusação.

As tendas começam a girar e o avião retorce-se para estibordo e a seguir outra vez para bombordo até torna a aparecer o campo de prisioneiros na janela, mas agora de cabeça e girando no sentido contrário aos ponteiros do relógio. Lanço uma olhadela pela cabina e vejo dedos a aferrarem-se com força nos braços da poltrona. Os motores rugem, mordendo o ar fino, e nosso olhos procuram esse ténue fio de fumo que ninguém quer ver. O Airbus gira de nova e as tendas da prisão agora são vistas mais pequenas e a girarem ao contrário de há bocado.

A seguir o piloto endireita a nave. Junto às nossas poltronas aparece uma hospedeira com uma brilhante blusa branca. As coisas melhoram no Iraque. "Prefere sumo ou vinho tinto?", pergunta-me. O que acha o leitor que pedi?

17/Out/03

[*] Jornalista neozelandês, especialista em Médio Oriente. © The Independent

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
21/Out/03