Dez lições estratégicas da experiência de Faluja
A mais importante lição a extrair da última batalha de
Faluja é que as possibilidades do levantamento contra o eixo
estadunidense-sionista superior tecnologicamente e detentor da
supremacia aérea estão presentes em todas as cidades e
povoações árabes, como [ocorreu] em Beirute em 1982 ou no
acampamento de Yenín em 2002. Mas transformar o possível em
realidade, o provável em certeza, exige uma vontade indomável por
parte dos que têm de tomar as decisões na batalha, a fim de
enfrentar este desafio e unir-se, formando um sólido bloco que
não divida a rua [árabe] nem as suas organizações
armadas". Isto é o que não sucedeu na maioria das batalhas
árabes, que redundaram em derrotas e fracassos.
Todas as cidades e aldeias iraquianas podem levantar-se contra as tropas de
ocupação como se levantou Faluja
[1]
. E não só como se levantou Faluja na Primavera de 2003
[2]
, mas também como o fez na Primavera de 2004. O potencial e a capacidade
do [presente] levantamento são pelo menos iguais aos de 2003, se
é que não foi maior há um ano. Não é
verdade, como afirmaram dois [ex] altos oficiais da Guarda Republicana
[iraquiana] no canal al-Jazeera, que o levantamento de 2003 não foi
possível devido ao severo desequilíbrio de poder relativamente
às forças de ocupação.
COLAPSO DOS ESTADOS ÁRABES
E LEVANTAMENTO POPULAR
Uma leitura equilibrada da resistência permite ver que o denominador
comum nos casos em que se produziu um levantamento bem sucedido contra o eixo
estadunidense-sionista na nossa história árabe, é o
colapso prévio do aparelho de Estado local dos países
vítimas de uma invasão, desde a Somália no início
dos anos noventa, passando pelo Líbano nos anos oitenta ou [o colapso
da] Autoridade Palestiniana, que a Intifada favoreceu, até ao Iraque
há um ano. Portanto, é viável que o movimento popular
encabece as iniciativas sem que exista autoridade local. E mais: de facto
observamos que a vida política da rua árabe vê debilitada a
sua força quanto mais forte é o aparelho de Estado local,
já que [essa força] representa um perigo para a segurança
nacional. O papel do Estado local no controlo da iniciativa popular e da sua
desactivação tem as suas razões objectivas, que
ultrapassam inclusive a eventual vontade da cúpula do sistema em
resistir, como ocorreu no Iraque.
Em qualquer caso, há capacidade de actuar para resistir; casos houve em
que o levantamento contra o eixo dos EUA e do sionismo teve êxito e deles
cabe destacar o seguinte:
1.
Confiamos na força da rua árabe e não nos
exércitos organizados; nas armas ligeiras e nos explosivos para fazer
frente às forças inimigas organizadas que dispõem de
tecnologia militar avançada. A vitória é possível;
não é verdade que quem dispõe da supremacia aérea
ganha os combates não convencionais. Portanto, devemos evitar os
confrontos tradicionais onde não é possível vencer a
superioridade tecnológica e aérea.
2.
Os nossos combatentes são gente da zona em que se desenvolvem os
combates e ainda que haja diversos voluntários exteriores à
área, não são a maioria. [Aos combatentes] facilita-se a
integração entre os cidadãos e voltam à
acção quando é necessário. Isto não o podem
detectar os satélites, nem são [objectivos] fáceis de
bombardear como se bombardeiam tropas convencionais de terra ou ar. Desta
forma, o árabe converte-se num espectro político-militar que
persegue o inimigo como uma pesadelo.
3.
Quando o inimigo se interna nas zonas urbanas e em ruas e becos estreitos
perde muita da vantagem tecnológica que lhe proporcionam os seus
avançados instrumentos militares. Isto é vantajoso para os que
vivem desde sempre na zona e a conhecem a fundo, pelo que se movem com uma
maior flexibilidade. Para vencer não é necessário infligir
ao inimigo perdas superiores às que temos nós próprios que
suportar. O que há que conseguir é que as suas baixas estejam
acima do limite que podem suportar, tal como reza o princípio das
"perdas inaceitáveis"
4.
O principal ponto que nos debilita é a falta de
organização e a débil planificação
estratégica. Isto não sucede nos confrontos com o inimigo, na
guerra de guerrilhas, nem nas acções suicidas, ou de
infiltração, ou de caça e morte de grupos pequenos. Em
geral são levadas a cabo por iniciativa de um combatente individual de
acordo com o seu valor e determinação pessoais. Isto coloca-nos
acima do inimigo, já que cem mil árabes podem vencer dez mil
soldados inimigos; cinco dos nossos põem fora de combate uma brigada
inimiga na guerra de guerrilhas ou nos confrontos urbanos. É esta a
diferença entre os nossos combatentes e as altas esferas [árabes]
corruptas e faltas de credibilidade.
5.
É preferível uma descentralização das
decisões militares. Os confrontos e vastas operações de
desgaste contra as forças do inimigo foram sustentadas porque se trata
de zonas onde havia uma presença de forças locais implicadas nos
combates, o que lhes oferece a possibilidade de aumentar a sua popularidade
porque contam com a decisão do meio local facilitado pelo apoio popular.
É este o caso de Faluja e do acampamento de Yenín. Isto significa
que é preferível uma descentralização das
decisões militares, dado que não existe um movimento popular
árabe organizado dirigido por uma cúpula política e
militar sólida e experimentada. Assim, nestas circunstâncias, o
colapso do centro não leva ao colapso das extremidades.
6.
O inimigo não dispõe dos meios necessários para a guerra
de guerrilhas ou os confrontos urbanos ou para lutar contra
acções suicidas; apenas pode vingar-se em inocentes habitantes de
uma maneira repugnante, deixando à vista a sua derrota política e
militar. Este facto provoca: a) a radicalização e o
reforço da posição dos habitantes [locais] indecisos e
tíbios; b) posiciona contra si a opinião pública
árabe, muçulmana e internacional; c) aumenta o apoio aos nossos
combatentes; d) gera uma situação de instabilidade dos seus
interesses regionais e internacionais; e) [favorece] a perda da iniciativa
mediática fruto da degradação da sua imagem.
7.
Nem todos os instrumentos de que se serve a ocupação têm
natureza militar. Seria estúpido negar a possibilidade de golpear os
pontos fracos ou os menos fortificados do inimigo como as suas
instalações não militares, económicas ou os que
denominam civis quando na
realidade têm uma natureza política ou securitária hostil.
Nem todos os instrumentos da ocupação têm natureza militar,
nem é inteligente que permitamos ao inimigo que decida as regras do jogo
quando pretende delimitar-nos a natureza dos objectivos que devemos definir,
enquanto eles [o inimigo] golpeiam como querem. Isto aplica-se aos objectivos
civis sionistas na Palestina ocupada, a todos os trabalhadores árabes ou
estrangeiros de empresas ou organizações civis que trabalham para
a ocupação no Iraque. Estes objectivos ferem e desconcertam
grandemente o inimigo e fazem aumentar contra si a pressão da
opinião pública. O caso dos estrangeiros sequestrados no Iraque
fez aumentar as mobilizações exigindo a retirada do Iraque e
obriga os colaboracionistas da ocupação a rever a sua
posição ou pelo menos a demitir-se.
8.
O segredo da vitória está em honrar as pequenas vitórias
nos confrontos com um inimigo tecnológica e logisticamente superior.
Isso significa: a) continuar a considerar que uma luta prolongada requer uma
determinação prolongada; b) explorar os pontos fracos [do
inimigo], o mais importante, o ser humano; c) mobilizar os efectivos humanos e
materiais disponíveis para os interesses da resistência; d) manter
a firmeza de princípios e a unidade de todas as forças na base da
expulsão dos ocupantes; e e) consolidar o conceito do mútuo
confronto na luta contra o eixo dos EUA e do sionismo, que não pode ter
solução senão pela força.
9.
O discurso idóneo para ganhar a opinião pública inimiga
é o discurso do princípio firme e claro que exija o fim da
ocupação sem concessões ou condições. A
forma de ganhar a opinião pública do lado inimigo é
aumentar as suas baixas humanas até ao ponto que seja
insustentável, e não mediante a súplica e a
imploração ou renunciando aos princípios ou estabelecendo
relações normalizadas ou suspeitas [com o inimigo]. A retirada
sionista do sul do Líbano sem condições nem
exigências é a maior prova disso. Do mesmo modo, a
oposição à ocupação nos Estados Unidos,
incluindo nas fileiras dos soldados e das suas famílias, como manifesta
o diário
The New York Times
na sua edição de 11 de Abril de 2004, aumenta à medida
que crescem as baixas estadunidenses no Iraque e não à
medida que se reitera a petição de uma solução
"justa e global do problema do Médio Oriente". Portanto, o
discurso idóneo para ganhar a opinião pública inimiga
é o discurso do princípio firme e claro que exija o fim da
ocupação sem concessões ou condições,
apoiado nas acções militares.
10.
Enquanto a coligação nos divide, as divergências
doutrinais ou regionais [árabes] aumentam as possibilidades da derrota e
debilitam a resistência contra os EUA e contra o sionismo. Os filhos do
povo que estão dispostos a imolar-se são uma arma secreta que
pode vencer muitos génios militares modernos. O nosso povo árabe
está disposto a prestar-se a isso sem hesitar, mas quer ver previamente
uma oportunidade ou uma referência pela qual os seus sacrifícios
se convertam em algo útil para a nação; que o
sacrifício popular possa anular os efeitos da tecnologia militar; que a
bomba humana seja a bomba atómica dos oprimidos; que a resistência
una a nação. Enquanto a coligação nos divide, as
divergências doutrinais ou regionais [árabes] aumentam as
possibilidades da derrota e debilitam a resistência contra os EUA e
contra o sionismo. As cúpulas políticas da oposição
árabe que coincidem nesta visão, não estão ainda ao
nível dos desafios que a nação tem que enfrentar.
Toda a nova frente contra os EUA e contra o sionismo reenvia-nos com
insistência para aquela importante premissa que se vem colocando diante
dos nossos olhos há décadas: a criação de um
movimento popular árabe organizado que seja capaz de assumir a
responsabilidade de proteger a segurança nacional [árabe] desde o
Marrocos até ao Bahrein, que seja capaz de prestar apoio efectivo a
todos os focos de resistência, desde Faluja a Yenín. Uma vez que o
regime local perdeu a sua razão de ser, inclusive para os que o criaram
há um século, a batalha entre nós os filhos e
filhas desta nação e o eixo estadunidense-sionista
transformou-se num confronto directo, excepto para alguns esbirros. Agora, ou
assumimos a nossa responsabilidade, ou desaparecemos como escravos nas trevas
do [projecto do] "Grande Médio Oriente" durante mais um
século.
[*]
Jordaniano de origem palestiniana. Doutor em Ciências Económicas, membro da
Associação Árabe contra o Racismo e o Sionismo (AZAR) e do Movimento
Anti-normalização da Jordânia. Comprometido contra a submissão do seu país aos
EUA e a Israel, contra o projecto do sionismo na Palestina e contra a invasão
do Iraque, sofreu a repressão directa do regime jordaniano em diversas
ocasiões. Foi preso pelo regime jordaniano por ter feito declarações à BBC
contra a presença de tropas dos EUA no seu país pouco antes da invasão do
Iraque. Em Abril de 2003 foi demitido da Universidade de Petra (Jordânia) por
razões políticas, poucas semanas depois de ter sido posto em liberdade.
Actualmente é editor do sítio web
Free Arab Voice
e colabora em diversos media árabes.
Notas
1- Ver em CSCAweb o texto de Carlos Varea:
Sobre os acontecimentos de Faluja: 'Uma derrota múltipla para os EUA'
2- O autor refere-se aos confrontos entre habitantes de Faluja e soldados dos
EUA que provocaram há um ano a primeira retirada de tropas de
ocupação para fora de uma cidade no Iraque.
Publicado pelo
Comité de Solidaridad con la Causa Árabe (CSCA)
. Tradução do árabe para castelhano de Pedro Rojo.
Tradução para português de Carlos Coutinho.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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