Blair reflecte Mussolini
O terrorismo de grupos e de indivíduos, ainda que horrível,
é diminuto em comparação com o de Estados. Mas os media
não têm palavras para descrever o terrorismo de Estado.
por John Pilger
O mundo está a ser dividido em dois campos hostis: o Islão e
"nós". Esta é a mensagem inequívoca dos
governos ocidentais, da imprensa, da rádio e da televisão. Por
Islão, leia-se terroristas. É uma reminiscência da guerra
fria, quando o mundo estava dividido entre os "vermelhos" e
nós, e até mesmo uma estratégia de
aniquilação era permissível para nossa defesa. Sabemos
agora, ou podemos saber, que grande parte daquilo era uma mistificação
pois os arquivos
oficiais abertos posteriormente tornam claro que a ameaça
soviética era só para consumo público.
Agora, tal como durante a guerra fria, é-nos apresentado diariamente um
espelho unidireccional como se fosse o verdadeiro reflexo dos acontecimentos.
O impulso à nova ameaça é dado a cada afronta terrorista,
seja em Beslan ou em Djacarta. Vistos no espelho unidireccional, os nossos
líderes cometem erros miseráveis, mas as suas boas
intenções não são postas em causa. O 'idealismo' e
a
'decência' de Tony Blair são promovidos pelos seus autorizados
detractores nos media principais, enquanto a planeada tragédia grega da
sua morte política desvenda-se no palco dos media. Tendo tomado parte
no assassínio de até 37 mil civis iraquianos, as notícias
são as distracções de Blair e não as suas
vítimas: desde a sua misteriosa 'luta' com o seu Tweedledee
[1]
, Gordon Brown, à sua decorativa conversão aos perigos do
aquecimento global. Sobre a atrocidade de Beslan, Blair permitiu-se dizer, sem
ironia ou desafio, que 'este terrorismo internacional não
vencerá'. Trata-se das mesmas palavras que Mussolini utilizou
logo depois de ter bombardeado civis na Abissínia.
Poucos são os heréticos que olham por trás do espelho
unidireccional e
vêm a absoluta desonestidade de tudo isto, que identificam Blair e os
seus colaboradores como criminosos de guerra no sentido literal e legal e
apresentam provas do seu cinismo e imoralidade. Mas eles
têm um amplo apoio na opinião pública, cuja
consciência nunca foi tão alta, de acordo com a minha
experiência.
É a apaixonada indiferença do público, se não o seu
desprezo, pelos jogos políticos de Blair/Brown e seus tribunais, e o seu
interesse crescente quanto ao modo como realmente o mundo funciona, que enerva
aqueles que têm o poder.
Vamos examinar uns poucos exemplos acerca do modo como o mundo é
apresentado
e do modo como realmente funciona. A ocupação do Iraque é
mostrada como 'uma confusão': uns desatinados e incompetentes
militares americanos contra fanáticos islâmicos. Na verdade, a
ocupação é um assalto sistemático e homicida a uma
população civil por uma classe de oficiais americanos corruptos,
com licença dada pelos seus superiores em Washington. Em Maio, os US
marines utilizaram tanques de batalha e helicópteros de artilharia para
atacar os bairros pobres de Faluja. Eles admitiram ter morto 600 pessoas, um
número muito maior do que o número total de civis assassinados
pelos 'insurgentes' durante o ano passado. Os generais foram francos:
esta
fútil carnificina foi um acto de vingança pelo assassínio
de três mercenários. Sessenta anos antes, a divisão SS Das
Reich assassinara 600 civis franceses em Oradour-sur-Glane como vingança
pelo sequestro de um oficial alemão por parte da resistência. Qual
é a diferença?
Nestes dias, os americanos disparam rotineiramente mísseis sobre Faluja
e outras áreas densamente povoadas; assassinam famílias
inteiras. Se a palavras terrorismo tem alguma aplicação moderna,
é este terrorismo de Estado em escala industrial. Os britânicos
tem um estilo diferente. Há mais de quarenta casos conhecidos de
iraquianos que morreram nas mãos de soldados britânicos; mas
apenas
um soldado foi acusado. No número actual da revista da National Union
of Journalists,
The Journalist,
Lee Gordon, um repórter freelance, escreveu: "Trabalhar como
britânico no Iraque é arriscado, particularmente no sul onde as
nossas tropas tem uma reputação (não relatada em casa) de
brutalidade'.
Nem tão pouco a crescente insatisfação entre as tropas
britânicas é relatada em casa. Isto preocupa tanto o
Ministério da Defesa que ele resolveu acalmar a família do
soldado de 17 anos David McBride retirando-o da lista AWL
(absent without leave)
depois de este se ter
recusado a combater no Iraque. Quase todas as famílias de soldados
mortos no Iraque denunciaram a ocupação de Blair, o que é
inédito.
Só pelo reconhecimento do terrorismo dos Estados é
possível entender, e tratar, dos actos de terrorismo de grupos e
indivíduos os quais, ainda que horríveis, são
minúsculos em comparação. Além disso, a sua fonte
é inevitavelmente o terrorismo oficial para o qual não existem
palavras nos media. Assim, o Estado de Israel foi capaz de convencer muitas
pessoas de fora que ele é apenas uma vítima do terrorismo quando,
de facto, o seu próprio terrorismo implacável e planeado é
a causa da infame retaliação por bombistas suicidas
palestinianos. Devido a todo o ódio perverso de Israel contra a BBC
uma forma de intimidação que tem êxito os
repórteres desta nunca retractam os israelenses como terroristas: esta
palavra aplica-se exclusivamente aos palestinianos aprisionados na sua
própria terra. Não é surpreendente, como concluiu um
estudo da Universidade de Glascow, que muitos espectadores da televisão
na Grã-Bretanha acreditem que os palestinianos são os invasores e
ocupantes.
Em 7 de Setembro, bombistas suicidas palestinianos mataram 16 israelenses na
cidade de Beersheba. Todos os relatos nos telejornais permitiram que o
porta-voz
do governo israelense que utilizasse esta tragédia para justificar a
construção de um muro do apartheid quando o muro é
um ponto central entre as causas da violência palestiniana. Quase todas
os
noticiários disseram que marcou o fim de um período de cinco
meses de 'paz e calma relativas' e de 'uma trégua na violência'.
Durante aqueles cinco meses de paz e calma relativas, quase 400 palestinianos
foram mortos, 71 deles por assassínios. Durante a trégua na
violência, mais de 73 crianças palestinianas foram mortas. Uma de
13 anos foi assassinada com um tiro no coração, outra de 5 anos de
idade recebeu um tiro na cara quando passeava de braço dado com a sua
irmã de dois anos de idade. O corpo de Mazen Majid, com 14 anos, foi
despedaço por 18 balas israelenses quando ele e a sua família
fugiam do seu lar arrazado por um buldozer.
Nada disto é relatado na Grã-Bretanha como terrorismo. A maior
parte simplesmente não é relatado. Apesar de tudo, isto era um
período de paz e de calma, uma trégua na violência. Em 19
de Maio tanques e helicópteros israelenses atiraram sobre manifestantes
pacíficos, assassinando oito deles. Esta atrocidade têm um
significado
inequívoco; a manifestação fazia parte de um movimento
palestiniano
não violento que estava em desenvolvimento, o qual promovera
reuniões
pacíficas de protesto, muitas vezes com orações, ao longo
do muro do apartheid. A ascensão deste movimento gandhiano é
raramente
notada no mundo aqui fora.
A verdade sobre a Chechenia é suprimida de forma semelhante. Em 4 de
Fevereiro de 2000 a força aérea russa atacou a aldeia chechena de
Katyr-Yurt. Eles utilizaram 'bombas de vácuo', as quais lançam
vapor de gasolina e sugam os pulmões das pessoas para fora, e que
são proibidas pela Convenção de Genebra. Os russos
bombardearam um comboio de sobreviventes que hasteava uma bandeira branca.
Assassinaram 363 homens, mulheres e crianças. Foi um dos
incontáveis pouco conhecidos actos de terrorismo na Chechenia
perpetrados pelo Estado russo, cujo líder, Vladimir Putin, tem a
'completa solidariedade' de Blair.
'Poucos de nós', escreveu o dramaturgo Arthur Miller, 'podem entregar-se
facilmente à nossa crença de que a sociedade deve de alguma forma
fazer sentido. O pensamento de que o Estado perdeu o juízo e
está a punir tantas pessoas inocentes é intolerável. E
assim a evidência tem de ser negada internamente'.
Já é tempo de parar de negá-la.
20/Set/2004
Ver também:
"What exactly are we witnessing?"
by Scott Burchill, ZNet Commentary (September 17 2004)
http://www.zmag.org/sustainers/content/2004-09/17burchill.cfm
"The War OF Terrorism
by Edward Herman, ZNet Commentary (September 11 2004)
http://www.zmag.org/sustainers/content/2004-09/11herman.cfm
posted here on September 12th.
O novo livro de John Pilger,
Tell Me No Lies: investigative journalism
and its triumphs
, será publicado no mês que vem pela Jonathan Cape.
[NT]
Tweedledum e Tweedledee são personagens de
"Alice nos país
dos espelhos", de Lewis Carroll (dois gémeos parvos).
O original encontra-se em
http://www.newstatesman.com/
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
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