Capitalismo exterminista ou renascimento comunista?

por Georges Gastaud [*]

Caros amigos e camaradas, de Portugal e de outras paragens.

Permitam-me antes de mais que agradeça calorosamente a Miguel Urbano Rodrigues, que me deu a honra de me convidar a participar neste colóquio, do qual todos nós muito esperamos para esclarecer a pendência universal dos afrontamentos de classes presentes e futuros.

Permitam-me antes de mais, que aqui renda homenagem à Revolução dos Cravos e a Álvaro Cunhal, neste ano do 30º aniversário de Abril de 1974. Sem a covardia dos líderes oportunistas do movimento comunista oeste europeu, a ruptura com o fascismo português, na qual o PCP desempenhou papel central, teria podido marcar na História europeia uma viragem progressista de maior envergadura.

A minha intervenção é feita recorrendo aos instrumentos teóricos e com os limites científicos próprios de um professor de filosofia de província, por muito tempo militante e dirigente local do PCF, e que, dadas as circunstâncias, se tornou um dos fundadores do Polo de Renascimento Comunista em França e do Comité Honecker de Solidariedade Internacionalista. Ainda que me exprima a título individual, como Miguel me pediu, compreendereis que não poderei abstrair-me dos meus compromissos políticos e da reflexão colectiva que estes pressupõem. Este comprometimento público é resultado de pesquisas teóricas e das lutas políticas travadas em França ao longo de dezenas de anos pelos militantes e intelectuais marxistas-leninistas em ruptura com o oportunismo e o revisionismo, esses dois cancros que contribuíram largamente para a liquidação do movimento revolucionário organizado em França e no mundo.

O pendor universal das lutas actuais está expresso de forma sóbria no tema do colóquio: civilização ou barbárie. Para simplificar o mais possível, a minha tese será a seguinte: entrados sem retorno na sua fase senil e exterminista, o capitalismo e o imperialismo constituem a partir de agora uma ameaça directa de regressão e de morte, não apenas para o progresso social, as liberdades, a soberania das nações, o avanço das Luzes, mas para a própria sobrevivência da Humanidade. Apenas um um combate de classe e uma resistência popular determinados, visando os próprios fundamentos do sistema e rompendo a cadeia imperialista num ou vários países, orientando-se abertamente para o socialismo, é capaz de travar a espiral de decadência e de morte, de que o capitalismo, chegado ao estado supremamente irracional do exterminismo, é agora portador. Para conseguir contra-atacar, romper/quebrar a re-mundialização do capitalismo, travar o fascizante imperialismo norte-americano, bloquear a instalação de um Super-Estado federal do imperialismo europeu, no qual a adopção de uma Constituição supranacional constitui uma etapa decisiva, não é necessário menos comunismo, como nos aconselha o oportunismo de direita, mas mais e melhor comunismo, marxismo-leninismo e mobilização proletária.

Se a primeira experiência histórica de socialismo foi derrotada a Leste, — não foi um fracasso, mas uma derrota — tal não se deveu aos "vícios" do pretenso "modelo leninista", mas pelo contrário, a uma série de crescentes afastamentos do leninismo, que tornaram a URSS cada vez mais vulnerável às cruzadas imperialistas contra o "Império do Mal". Mais que nunca, à escala nacional como à escala mundial, e mesmo se as formas da sua intervenção devam evoluir em função do tempo e variar em função de cada país, uma força política de vanguarda deve intervir sem descanso para permitir às massas que fazem a história escapar aos terríveis processos de alienação ideológica e cultural de que são alvo, a fim de se voltarem a assumir e a ser os sujeitos da sua própria história. Para isso, é particularmente importante que por iniciativa da sua vanguarda, nacional ou internacional, o proletariado se reaposse da dialéctica da soberania nacional e do internacionalismo proletário.

Este renascimento do Movimento Comunista Internacional pode apoiar-se num certo número de partidos comunistas que se aguentaram na tormenta, de Lisboa a Havana, passando por Atenas; implica o emergir de um internacionalismo proletário de nova geração, cuja organização passa por estes trabalhos práticos da solidariedade que são a solidariedade sem mácula com Cuba socialista e o apoio sem vacilações às insurreições populares-nacionais do Iraque, da Palestina, da Colômbia e de outros países do mundo.

Começarei por uma análise do "momento actual", prosseguirei com um breve estudo das resistências populares, salientando o seu potencial e os seus limites actuais e terminarei necessariamente pela questão "que fazer", com um certo número de propostas teóricas e práticas.

1°) O "momento actual": ofensiva contra-revolucionária, ameaças exterministas e tendência ao confronto de classe

O "momento actual" é marcado por uma intensa luta de classes, abrangendo o mundo inteiro e a existência social sob todos os seus aspectos. No entanto, é a classe dominante quem tem a iniciativa deste confronto e é esta a razão pela qual os que confundem luta de classes e combate operário, menosprezam do mesmo modo o facto de a luta de classes continuar a ser o motor do devir histórico, mesmo quando é orientada negativamente, como é o caso da actualidade.

Esta ofensiva do capital enraíza-se na crise crónica do capitalismo em contra-revolução permanente, que ilustra a caracterização leninista do imperialismo como "reacção em toda a linha". A grande burguesia, crescentemente subordinada ao capital financeiro, experimenta dificuldades cada vez mais graves para valorizar os enormes capitais sobre-acumulados; incapaz de reconstituir de forma duradoura as suas taxas de lucro, pois não cessa de sacrificar o trabalho vivo ao trabalho morto espoliando de forma crescente o trabalho vivo, ela sacrifica cinicamente produções úteis e até rentáveis, limita o investimento produtivo, espartilha cada vez mais a inovação realmente progressista e a investigação científica, sobre-explora impiedosamente a força de trabalho, transforma a Saúde e a Educação em fontes de lucros, estrangula progressivamente o consumo das massas proletárias, das quais pauperiza vastos sectores; por outro lado, activa desmesuradamente o esbanjamento suicida das camadas privilegiadas e o saque dos recursos naturais; acentua o parasitismo sob todas as formas, quando o nível atingido pelo conhecimento científico tornaria possível a satisfação das necessidades fundamentais de todos os seres humanos e a reconciliação do ambiente natural com a grande produção técnica.

Notemos a este propósito, que os ideólogos burgueses falam de "liberalismo" e de "obsolescência do Estado-Providência" para mascarar o facto que nunca como agora as instituições estatais, locais, nacionais ou supranacionais, se esforçaram tanto para colocar sob administração pública o lucro capitalista, cujas taxas não param de recuar, como o reconhecem os próprios economistas burgueses, quando falam de "baixa de rentabilidade dos investimentos produtivos". Se alguma coisa está hoje em dia desmantelada, é menos o Estado-Providência em geral, que esse compromisso precário que a classe proletária arrancou à burguesia, durante os Trinta Anos Dourados, graças às suas organizações de classe, à existência do campo socialista e à relação de forças mundial entre Capital e Trabalho saída da vitória de Estalinegrado e da derrota do fascismo.

É, portanto, aberrante pretender deitar para o caixote do lixo o conceito leninista de "capitalismo monopolista de Estado", do qual o neoliberalismo, com a sua enorme subvenção estatal do lucro privado, nomeadamente através das despesas de armamento e da política fiscal, constitui mais um novo avatar que um autêntico repor em causa. De facto, por detrás do brilho das "novas tecnologias" e da omnipresença da "pub" e da "com", o capitalismo está cada vez mais estrangulado, se quisermos examinar os números mundiais muito inquietantes do crescimento e do emprego e se não nos deixarmos fascinar pelo incremento malsão da bolha financeira e do cancro especulativo que, longe de testemunhar a saúde do capitalismo, manifestam sim a sua incapacidade para reciclar o capital na produção, sem a qual não existe lucro nem mais-valia nem, ao fim e ao cabo, crescimento real.

Aliás, "crescimento" ou não, o preço a pagar pelos trabalhadores é o mesmo: cada vez mais quebra industrial, recuo do emprego produtivo industrial ou agrícola, desemprego, precariedade, insegurança social, pauperização relativa e absoluta da maioria proletária da população, e isto não apenas nas metrópoles capitalistas sujeitas às deslocalizações, mas de forma crescente no Terceiro Mundo e mesmo na China Popular, onde as deslocalizações "ao contrário" e as destruições de empregos industriais começam também a fazer a sua aparição por detrás de um mirífico crescimento de dois dígitos.

No plano social, é a tempestade que destrói as conquistas dos trabalhadores, e com elas, o prazer de viver e os esforços seculares para civilizar as relações humanas.

Em França e na Alemanha, no "núcleo duro" auto-proclamado da UE, — e para não falarmos da Inglaterra thatchero-blairista —, a baixa das pensões, o recuo para 67 e mesmo 70 anos da idade da reforma, o aumento da duração da jornada de trabalho, a chantagem patronal sobre o emprego, o dumping social, a supressão das pausas e de dias feriados, a redução do subsídio de desemprego a níveis de sobrevivência ou mesmo de sub-vida, a desmontagem dos serviços públicos rentáveis, a caça aos trabalhadores imigrados, o trabalho nocturno das mulheres, o trabalho infantil, a demolição do Direito do Trabalho, a prisão de delegados sindicais, estão na ordem do dia, enquanto o vampirismo bolsista e as “stock-options” dos P.D.G. [1] batem recordes.

Pilotada de maneira perfeitamente consensual pela direita euro-liberal e pela social-eurocracia, a UE orquestra estas regressões conforme aos critérios de convergência da moeda única, ao pacto de estabilidade e aos Acordos de Barcelona, assinados por todos os dirigentes da Europa, inclusive por Schröder e Jospin. Tudo isto é feito sob o olhar complacente da "Confederação Europeia dos Sindicatos", esse cartel maastrichtiano dominado pelo pseudo-sindicalismo de acompanhamento da Europa do Norte, ao qual se ligam crescentemente as direcções recicladas de certos sindicatos ditos de classe. É a perspectiva generalizada da privatização dos serviços e do sector público. É, em suma, um processo des-civilizador como realmente nunca havíamos visto depois da explosão fascista dos anos trinta e dos anos sombrios em que a Europa esteve maioritariamente sob dominação castanha. [2]

Avalio de passagem tudo o que a URSS e o campo socialista indirectamente proporcionavam aos trabalhadores dos países capitalistas, provando concretamente que um outro mundo é possível. Para o avaliarmos, basta ver no que se tornou o pretenso "modelo renano" na RFA, depois que o grande capital alemão deixou de sofrer a concorrência social da extinta RDA, onde desemprego de massas e repressão anticomunista são as duas prateleiras melhor fornecidas do futuro dos novos "Länder"! [3]

Era de bom-tom, nos meios intelectuais franceses dos anos 70, escarnecer da fórmula de Georges Marchais evocando o "balanço globalmente positivo dos países socialistas". Mas qualquer sindicalista lúcido é hoje em dia forçado a constatar o "balanço catastroficamente negativo do desaparecimento dos países socialistas", pois trata-se da constatação de um facto e não de um juízo de valor mais ou menos subjectivo!

No plano político, a ofensiva da reacção é muito preocupante. Por todo o lado as liberdades recuam, seja a pretexto da "luta anti-terrorista" ou seja a pretexto de garantir a "segurança" dos cidadãos, enquanto o capitalismo em crise crónica segrega uma insegurança social maciça, criando uma desorientação sem precedentes na juventude, à qual a sub-cultura consumista de massas apenas oferece como saída a violência, o individualismo ou o asselvajamento num hedonismo do desespero, quando não encoraja sub-repticiamente o neo-fascismo ou o integrismo religioso.

Com a construção de uma Europa supranacional, de invisível conteúdo democrático, é o próprio fundamento da cidadania, da soberania nacional e popular, que é destruído. Cada vez mais a democracia burguesa, dita de "baixa intensidade", não passa de um jogo estéril de alternância bi-partidária em que se pede a cidadãos desiludidos que escolham quem, da fracção abertamente liberal da burguesia ou da sua fracção social-eurocrata, executará as directivas, previamente digeridas em Bruxelas, nas costas dos povos.

Com a Constituição Europeia, que visa pôr de pé um Super Estado federal, dotado de régios poderes, de uma direcção política continental e de um exército profissional integrado na NATO, a Santa Aliança das burguesias europeias contra os seus respectivos povos, transporá uma perigosa fronteira. De forma crescente, como explicou o marxista italiano Domenico Losurdo, é instalado um "bonapartismo soft", que não deseja senão tornar-se "hard", se as circunstâncias políticas o exigirem e se os povos não reagirem a tempo. Se portanto, a Constituição Europeia for avante, será o fim das conquistas democráticas obtidas no quadro de cada país e, no que à França diz respeito, o fim da sua rica herança republicana, laica, anti-fascista e revolucionária. Em caso de greve de massas num dado país, e mais ainda se este ou aquele povo decidir enveredar por transformações democráticas ou socialistas ou, mais simplesmente ainda, se uma nação decidir retirar-se da UE para recuperar a sua liberdade, o exército europeu estará lá para fazer reinar a nova ordem euro-imperial, em nome de um mítico e não menos reconhecível "povo europeu".

Para enriquecer a análise de Losurdo, avançarei a ideia que o novo Império europeu em formação é um misto monstruoso de bonapartismo (onde o sufrágio universal se reduz a validar as decisões da cúpula) e de Tratado de Viena, uma espécie de reedição neoliberal da Europa de Metternich. O mais irritante, é que tudo isto se opera sob a máscara orweliana de uma "novlíngua", que faz sistematicamente aparecer como progressistas os recuos sociais e como "conservadoras" as resistências populares aos ditos recuos.

Como secretário fundador do Comité Honecker de Solidariedade Internacionalista, não posso deixar de terminar este ponto denunciando o alargamento da UE a numerosos regimes pós-comunistas do Leste que têm em comum o clericalismo mais medíocre, a repressão mais obtusa contra dirigentes e partidos comunistas, a idealização negacionista dos pseudo-"resistentes" anti-soviéticos ligados ao Terceiro Reich, como acontece abertamente nos países bálticos, onde reina um apartheid oficial contra a população russófona. É preocupante, quando não surpreendente, que as instituições "democráticas" europeias lavem as mãos destes comportamentos liberticidas e que certos partidos pseudo-"comunistas" tenham entendido por bem multiplicar os discursos de boas vindas aos novos Estados membros, como se o alargamento a Leste constituísse uma "prenda" para esses povos, quando o real objectivo é o de isolar a Rússia e impedir a restauração do socialismo nos antigos países do Pacto de Varsóvia.

No plano cultural, a situação manifesta o carácter propriamente des-civilizador da chamada "modernidade" capitalista. Um "pensamento único" neo-liberal, europeista, anti-comunista, anti-marxista, anti-soviético e cada vez mais abertamente neo-colonialista (sob a máscara do "direito de ingerência"), é difundido sem partilha pelos média e inculcado dissimuladamente às crianças desde a escola primária. A revisão negacionista da História atinge o cúmulo com o denegrimento, particularmente sensível em França, da Revolução de 1789 e a criminalização da Revolução de Outubro, à força de "livros negros". Será de espantar que, em tal clima, as ideologias reaccionárias prosperem, que as vedetas do dia sejam o neo-conservador e vai-à-guerra Bush, o social-democrata clerical Tony Blair, o aventureiro Berlusconi e os seus amigos, os pró-fascistas de Fini e os racistas da Liga Lombarda? Será motivo de espanto que no Terceiro Mundo, privado desse ponto de referência maior que constituía, desde 1917, a bandeira vermelha flutuando sobre Moscovo e sobre a Ásia muçulmana, os piores fanáticos religiosos ligados por mil laços obscuros aos dirigentes imperialistas que dizem combater, usurpem a bandeira da emancipação nacional?

Quando o marxismo-leninismo é criminalizado ou remetido às dimensões dum marxismo universitário bem comportado e castrado, será de espantar que a extrema-direita, esse melhor aluno da classe anti-comunista, prospere e consiga até participar nos governos europeus ou inspirar, como em França, a política securitária, anti-sindical, anti-juventude, e anti-imigrante do poder chiraquiano? Mais inquietante ainda é a escalada do niilismo, do irracionalismo e de comportamentos propriamente suicidários que não deixam de fazer lembrar a Roma imperial da decadência, na época em que a plebe romana, afastada da produção e privada de papel político activo pela extensão da escravatura e da pilhagem dos povos conquistados, estava reduzida a viver a sua decadência no parasitismo, no culto sórdido da crueldade, e na desprezível expectativa de "panem et circenses". [4]

É verdade que a Ciência continua a avançar. Mas por quanto tempo, quando assistimos à diminuição dos créditos para a investigação fundamental, quando o laicismo é assassinado no próprio país que o viu nascer, quando o discurso religioso difundido pelos média se esforça por reconquistar o terreno perdido durante os anos de secularização que marcaram positivamente a Europa das Luzes.

Enfim, é a diversidade sem a qual não existe cultura, que está ameaçada pela americanização globalitária dos modos de vida, o triunfo insidioso de uma língua única, um basic english desprovido de qualquer retaguarda cultural, cujo objectivo é, privando os povos da sua herança linguística e cultural, privá-los de identidade e de memória, para os entregar sem defesa aos tocadores de flauta do capital que os conduzem a afogar-se naquilo que Marx denominava "as águas geladas do cálculo egoísta"…

À escala geo-política, isto traduz-se pela realização das profecias científicas formuladas por Hobson e analisadas por Lénine na sua obra O imperialismo, estado superior do capitalismo. Cada vez mais, anunciava Hobson, as metrópoles imperialistas serão votadas ao desenvolvimento parasitário de uma aristocracia financeira, rodeada de um número crescente de camadas de população improdutivas; o grosso da produção será efectuado nos países do Oriente, donde afluirão a baixos preços matérias-primas e produtos manufacturados; quanto à classe operária, será maciçamente desclassificada, restando em funções uma aristocracia assalariada monopolizando o saber e permitindo controlar indirectamente a produção efectuada no Oriente. Uma parte do proletariado industrial desclassificado será, por outro lado, orientado para trabalhos do domínio da "domesticidade", aquilo que em linguagem moderna, chamaríamos os "serviços" privados, para a oligarquia financeira e a parte superior das camadas médias.

Quem não vê que este monstruoso programa está em curso com o empreendimento da deslocalização e de desindustrialização das metrópoles capitalistas, com a tenaz vontade do capital de externalizar as produções, de multiplicar a sub-contratação e de apenas conservar sob o seu directo controle a finança, o comando estratégico e a "investigação-desenvolvimento"? Formidável perigo de parasitismo ocidental, mas também de neutralização do potencial revolucionário das periferias subjugadas pelo desapossamento intelectual das condições da produção!

Este é um quadro sombrio, mas, como dizia Gramsci, "pessimismo da inteligência, optimismo da vontade". Durante muito tempo, o optimismo de direcção no movimento revolucionário impediu-o de compreender que o progresso nada tem de linear, que a roda da História apenas roda num sentido, que o movimento das forças produtivas que, em última análise, determina a História, apenas conduz à emancipação se os povos, dotando-se de capacidades de análise e de partidos de vanguarda, aprenderem a conhece-los e a dominá-los consciente e colectivamente. Longe de procurar estupidamente "positivar" a trágica situação em que nos encontramos, é na tomada de consciência desta dimensão trágica, é na mobilização das nossas pulsões de vida, no conflito quasi-cósmico entre o Eros proletário e o Thanatos neoliberal, que se encontra a saída para a crise. Porque, contrariamente às situações passadas, em que o capitalismo acabou por encontrar uma saída capitalista para as suas crises conjunturais, actualmente já não existe saída capitalista progressista para a crise do capitalismo.

O avanço tecnológico e científico tende a estagnar e quando "marcha" em pleno, dá menos lugar àquelas destruições inovadoras que Schumpeter elogiava, que a inovações destrutivas, como demonstra o economista belga Tom Thomas. No melhor dos casos, o avanço tecnológico destrói sempre mais trabalho vivo e conduz por ricochete a insensatas destruições de capital morto, inclusive de fábricas novas e operacionais! Quanto às guerras mundiais, "saídas" trágicas para as guerras anteriores, pelas destruições de capital e de mão-de-obra que permitiam, que podemos delas esperar na época das armas de destruição maciça e do choque previsível de imperialismos continentais, aliviados pela contra-revolução do contrapeso objectivamente pacificador do campo socialista?

Também não esperemos que o capitalismo morra de "morte natural". Primeiro, porque, como afirma o filósofo marxista francês Yves Vargas, "quando o capitalismo está doente, faz morrer os outros". Depois, porque a morte do capitalismo poderia muito bem coincidir com o suicídio organizado da Humanidade se a Humanidade não conseguir liquidar a tempo as relações de exploração, que se tornaram um luxo histórico. Como "fim de história", ainda que isso desagrade a Francis Fukuyama, assistimos à luta final entre duas formas de "fins": por um lado, a perpetuação do capitalismo é sinónimo de "mau fim" da História, por extermínio da Humanidade ou por extenuação da Natureza e do trabalhador. Por outro, o "bom fim" da História, na realidade, segundo as palavras de Marx, o fim da pré-história da Humanidade, é o que libertará as forças colossais do trabalho, da cultura e da ciência, emancipando-as das relações de produção capitalista.

Utopia? Não, realismo e instinto de sobrevivência, porque se a Humanidade conduzida pelo proletariado não destruir o capitalismo, o capitalismo matará a humanidade depois de ter destruído o proletariado como classe! É o significado profundo da admirável divisa cubana "socialismo o muerte" [5] , que Fidel retomou, no momento das capitulações gorbatchevianas, para exprimir a ideia que, não só é preciso estar pronto a dar a vida pela revolução, mas que o socialismo e o comunismo constituem a única saída progressista para escapar ao capitalismo objectivamente exterminador.

As relações de exploração capitalistas são, com efeito, relações sociais e a experiência operária, tal como a teoria marxista, confirmam que não poderão ser ultrapassadas sem revolução proletária. Ora, esta está mais madura que nunca: de um lado, as mutações das forças produtivas e as magníficas conquistas da investigação fazem esperar uma Humanidade capaz de satisfazer as suas necessidades fundamentais, de se desembaraçar da antiga propriedade privada dos meios de produção (basta ver, a este propósito, a miríade de artifícios a que o capitalismo recorre, para se apropriar dessa rede neuronal colectiva que é potencialmente a Internet!) e mesmo do arcaico cálculo do valor económico a partir do tempo de trabalho; em suma, as condições económicas e técnicas do comunismo estão maduras. Livremo-nos de deixar escapar esta oportunidade histórica, porque não é impossível que as relações de produção capitalistas não acabem, dentro de algumas décadas, por chegar à recessão absoluta das forças produtivas, tal como atingiram já hoje em dia a baixa absoluta dos salários e das pensões ou ao aumento brutal do tempo de trabalho!

Mais fundamentalmente, a contradição assinalada por Marx entre o carácter crescentemente privado da propriedade capitalista, cada vez mais apropriada, concentrada e monopolizada por uma casta limitada de financeiros, e o carácter crescentemente socializado da produção e da troca, toma proporções explosivas com a mundialização em curso. Quando algumas centenas de indivíduos possuem mais que um continente, quando o resultado de uma eleição na Venezuela ou a explosão de um terminal petrolífero no Eufrates fazem tremer economia mundial, quando a bolha especulativa não se mantém senão pela "confiança" artificialmente garantida pelos marines, podemos avaliar a que ponto a Humanidade, tornada objectivamente solidária de Arkhangelsk à Terra do Fogo, está doravante madura para empreender em comum os trabalhos, os recursos e as pesquisas que o comunismo constitui.

Passa-se o mesmo no que respeita à contradição entre a Natureza e a produção: se durante muito tempo a Natureza dominou o Homem, a Revolução Industrial deu a primazia à produção humana, que em apenas um século refez a face do planeta. Mas sob o comando, ele próprio "natural" e selvagem da anárquica produção capitalista, o homem está em vias de "matar" a Mãe Natureza, suicidando-se ao mesmo tempo, quando hoje em dia, seria forçado a planificar democraticamente, cientificamente, prudentemente e colectivamente as suas relações com a natureza, sob pena de extinção. Ora, como será possível esta revolução ecológica da produção, que não significa apenas limitar as poluições, mas reproduzir racionalmente o ambiente "natural", se os homens não começarem por eliminar a dominação da Natureza no próprio seio da sociedade, esta selva do "todos contra todos" que significa a anarquia capitalista e a sacrossanta "economia de mercado"?

A socialização dos meios de produção no pleno sentido da palavra, ou seja, a colectivização das grandes empresas, o poder político dos trabalhadores, mas também a revolução cultural, permitindo a todos os homens tornarem-se "senhores e possuidores" efectivos das condições materiais do seu devir, já não é apenas uma necessidade social, mas tornou-se uma condição de sobrevivência e de desenvolvimento para a Humanidade dos séculos futuros, uma questão de responsabilidade para com as futuras gerações. É neste sentido que o "bom fim" da História, longe de depender do socialismo utópico ou do idealismo moral, é a alternativa concreta ao mau fim da História pela exterminação do Homem ou pelo esgotamento da Natureza; de contrário, como previa Marx, a Humanidade poderá estar condenada a escolher entre um "fim pleno de pavor" e um "pavor sem fim"… Não existe, portanto, outra opção, senão reconciliar Cassandra e Prometeu.

Isto não significa de modo algum, como acreditavam ou fingiam acreditar os Gorbatchev e os Chevarnadze, que a luta das classes deva ceder o passo à pregação moral dos "valores universais da Humanidade", muito pelo contrário. Se o capitalismo actual é portador de exterminismo, então torna-se o inimigo publico da Humanidade e o inimigo inumano do público, o que longe de atenuar as lutas de classes, proporciona, pelo contrário ao proletariado, o campo mais vasto para desembaraçar a Humanidade do capitalismo exterminador e des-civilizador. Quando os interesses de classes antagónicas se afrontam num plano de tal modo universal, a luta final cantada pela Internacional confronta mais duramente que nunca as forças do Capital às do Trabalho, cuja missão histórica é de pôr um fim à milenar exploração de classe, tornada num veneno mortal para a Humanidade, após ter constituído o cruel estimulante do seu desenvolvimento histórico. Se, portanto, um pouco de lucidez anti-exterminista, se um pouco de "universalismo" e de humanismo, impelem à colaboração de classes, ao desarmamento ideológico do revisionismo, um humanismo e um anti-exterminismo consequentes obrigam, pelo contrário, a combater e a erradicar a exploração de classe da face do globo.

É portanto, capital para os comunistas e para todos os anti-imperialistas consequentes, rejeitar a tentação da "terceira via", do pacifismo sem conteúdo de classe, assim como todas as teorias sobre a "convergência" entre capitalismo e comunismo, teorias que a perestroika gorbatchéviana mostrou que apenas servem ao primeiro, permitindo-lhe de "digerir" o segundo. Enquanto a URSS, entregue ao social-pacifista capitulacionista Gorbatchev, se afundou por completo, Cuba socialista, cujo leader relembrou os princípios de classe no seu famoso discurso de 26 de Julho de 1989, continua de pé, apesar da derrocada do bloco de Leste. Nenhum Muro substitui os princípios. E os princípios, quando são compreendidos e defendidos pelas massas, são mais fortes que todos os Muros e que todos os bloqueios. É manifesto que confrontos de classes muito duros esperam os militantes progressistas; e não é ficando em casa, como dizia o Che, que verão passar diante da sua porta o cadáver do imperialismo, razão pela qual as resistências nacionais dos povos iraquiano, palestiniano, colombiano, etc, assumem hoje em dia uma importância histórica.

Aqui reside o erro daqueles a quem chamam "altermundialistas" e "alter-europeistas". Incapazes de compreender a natureza reaccionária do capitalismo contemporâneo, esse ventre ainda fecundo donde surgem continuamente as Bestas imundas da contra-revolução e da contra-reforma, o alter-mundialismo e o alter-europeismo convencem-se que se pode "reformar", "reorientar", "alterar", a Europa capitalista ou a mundialização, como se estivéssemos a tratar de quadros neutros e manipuláveis à vontade, em função das "aspirações" populares. Mas com ou sem alteração, no fim o capital continua a ser o capital, sedento de mais-valia e pronto a todos os horrores, económicos ou outros, para a obter.

Quanto ao facto supranacional, seja ele europeu ou mundial, tenha por quadro a Europa de Bruxelas ou as instituições políticas e comerciais da mundialização, não existe nenhuma nebulosa proteiforme modelável à vontade. Face ao movimento popular, e se bem que seja atravessado por múltiplos conflitos inter-imperialistas, este quadro institucional supranacional tem a robustez de uma construção estatal erigida para resistir às evoluções da relação das forças, apoiando-se em aparelhos militar-policiais nacionais ou supranacionais solidamente dispostos à defesa da classe dominante, como pudemos constatar aquando da repressão das contra-cimeiras europeias ou mundiais. Que seja necessário combater ao lado dos altermundialistas, não é apenas uma eventualidade, mas um dever para todos os que querem mudar o mundo: mas isso não siginifica a adesão à utopia duma mundialização capitalista "de rosto humano" ou duma Europa capitalista "socialmente regulada". Pelo contrário, o objectivo para os revolucionários é o de ganhar, pela luta ombro a ombro e pela elucidação fraterna das divergências, a massa dos jovens altermundialistas para posições anti-capitalistas e anti-imperialistas consequentes, subtraindo-os à influência da esquerda social-democrata e dos seus satélites trotskistas.

É particularmente importante na Europa onde, sob a égide do Partido da Esquerda Europeia organizado por certos retornados do eurocomunismo e do gorbachevismo, uma armadilha foi montada às forças comunistas. Além de rejeitar todos os fundamentos do comunismo e levar directamente à absorção do comunismo europeu na Internacional Socialista, esta "Esquerda" europeia tem como principal objectivo fazer avalizar o quadro político supranacional pelos eleitores comunistas num momento decisivo da integração capitalista europeia, ou seja, o quadro da substituição dos Estados nacionais por um super-Estado, imperial, clerical, anti-popular e anti-social. Um Estado imperial completamente desligado da vontade popular e dos Estados nacionais onde se organiza a vida política, e que não deixará de ameaçar a paz mundial, tão fortemente como o seu suserano e rival norte-americano, logo que conseguir pôr de pé uma "Europa Fortaleza" com uma direcção centralizada, um exército profissional dotado da força atómica francesa, de uma "justiça", de uma polícia e de uma direcção económica comum. Mentem aqueles que, sob a máscara de social-democracia ou de "novo comunismo", fazem os povos sonhar com uma "Europa social", quando o objectivo proclamado pela nova Comissão europeia e pelo seu muito reaccionário presidente português, é fazer da UE " a economia mais competitiva do mundo daqui até 2010". Há que produzir entretanto, milhões de novos trabalhadores precários, desempregados e trabalhadores pobres! Assim, os demagogos da "Europa social" recusam-se a ver o que entra pelos olhos adentro de milhões de operários "deslocalizados", de agentes públicos privatizados, de doentes colocados perante a incapacidade de se tratarem: os Estados-Unidos da Europa, sob o capitalismo, só podem ser utópicos ou reaccionários (Lénine).

Por isso, é tempo de denunciar categoricamente toda e qualquer Constituição europeia supranacional. Denunciar o conteúdo desta Constituição sem denunciar o próprio princípio dum Estado federal associando as velhas potências imperialistas e coloniais da Europa, sem defender a soberania nacional, sem apelar à Europa das lutas, não para fazer mudar de rumo, mas para varrer a UE do capital e construir relações radicalmente novas na Europa, constitui hoje um embuste tão grave como aquele que conduziu a II Internacional a defender "a pátria" no início do século, ignorando o significado imperialista do nacionalismo de então. É preciso, pelo contrário, recusarmo-nos a caucionar, por pouco que seja, a criação de um novo Estado Polícia para juntar ao xerife americano, porque o "desenvolvimento desigual" do capitalismo e a tendência periódica do imperialismo para a partilha sangrenta do mundo, podem produzir no século XXI tragédias ainda piores que as que enlutaram o século passado!

A social-democracia, que participou na "união sagrada" em 14/18, legitimando o massacre imperialista, faz hoje em dia prova de uma sólida hipocrisia quando acusa, não o capitalismo, mas os Estados-nação, de terem provocado estas carnificinas planetárias, ao mesmo tempo que, com os seus amigos euro-comunistas, os dirigentes social-eurocratas se aplicam a desenvolver uma nova união sagrada, ainda mais perigosa que a de 1914, pois trata-se da edificação de um Estado imperialista continental, fabricando de forma artificial um euro-nacionalismo e um euro-centrismo com ressaibos colonialistas mal dissimulados.

2°) a resposta do campo progressista: realidades, limites, perspectivas

A resposta à ofensiva reaccionária está longe de ser negligenciável. Tudo o confirma, a classe operária, o movimento anti-imperialista, as forças democráticas, dispõem dos meios para conter o assalto e retomar a iniciativa, uma iniciativa que detinham ainda em meados dos anos setenta, no momento da vitória do povo vietnamita, do avanço das forças antifascistas na Europa, do ascenso dos movimentos revolucionários na África e na América central.

Na Europa, greves de massas apoiadas por manifestações gigantescas, tiveram lugar nestes últimos anos. Para me circunscrever à França, onde as referências persistentes ao combate de classe e a aspiração ao "todos juntos" inquietam a classe dominante, o militante sindical e político que sou participou plenamente, da segunda vez com responsabilidades regionais, em dois grandes movimentos populares, o de Dezembro de 1995, dinamizado pela greve dos ferroviários, e o de Maio-Junho de 2003 na defesa das reformas e da Educação nacional. Estes dois movimentos colocaram o poder em dificuldades e mobilizaram centenas de milhares de jovens assalariados. Estes movimentos poderiam ter evoluído para a greve geral, se os estados-maiores das organizações sindicais, incluindo os das que se inserem na tradição revolucionária, tivessem agido resolutamente para a união dos assalariados do sector público e do privado na base do pôr em causa, não só o patronato e o governo de direita, mas a Europa de Maastricht, que constitui o verdadeiro estado-maior continental das contra-reformas.

Mas como poderiam os estados-maiores que, durante cinco anos sustentaram a pretensa "esquerda plural" de Jospin, quer dizer, um governo social-maastrichtiano, que privatizou mais que a direita e que enviou as forças armadas francesas a bombardear Belgrado, opor-se seriamente à integração capitalista europeia, sinónimo de desintegração das conquistas obtidas na época em que o PCF era a espinha dorsal do movimento popular? A esquerda e o comunismo oficiais, que renunciaram associar nas lutas a bandeira tricolor à bandeira vermelha, para fazerem sua a bandeira da UE, como poderão explicar às massas o objectivo de classe mais vasto que constitui a destruição do país que simboliza a Revolução de 1789, depois de ter desaparecido o que simbolizava a de 1917?

Tudo mostra, também, que o tempo dos confrontos de classes na Europa não está atrás, mas diante de nós. Empurrado pela sua crise insolúvel, o grande capital canta hoje vitória por todo o lado: das fábricas Bosch, perto de Lyon, às fábricas alemãs da Mercedes e Volkswagen, símbolos do "modêlo renano", o grande patronato, com a cumplicidade dos dirigentes da Internacional Socialista Blair e Schröder, procedem à demolição das conquistas de um século de luta, brandindo a ameaça das deslocalizações. Tudo passa por aí e o patronato é insaciável. A classe operária não tem sequer a escolha de recuar ou de morrer, porque cada recuo é imediatamente seguido de uma nova agressão e isto, até ao infinito.

Como disse Tom Thomas, a burguesia agredirá cada vez mais duramente o proletariado, até que este se dote dos meios para a afrontar e vencer. É uma verdadeira guerra de classes, declarada por iniciativa dos senhores do capital. E o reformismo, transformado em "contra-reformismo" de facto, dispõe de cada vez menos "grão para moer" para permitir ao capitalismo comprar a paz social. Em contrapartida, o campo capitalista pode dispor de meios ideológicos impressionantes, que lhe permitem, com a ajuda do individualismo, desenvolver como em nenhuma outra época, a alienação ideológica das massas. A questão não é, assim, de modo algum, como reavivar o combate de classe, mas sim como federar as lutas, como lhes abrir uma perspectiva política anti-capitalista? Por isso, nunca terá sido tão ajustada a divisa de Lénine, "sem teoria revolucionária, não existe movimento revolucionário"!

A nível internacional, a agressividade do imperialismo tem os seus limites na resistência dos povos, na Intifada palestiniana contra a ocupação sionista, no levantamento do povo do Iraque contra a recolonização estadunidense da antiga Mesopotâmia.

Poderia muito bem falar aqui de outras lutas, mas contentar-me-ei de salientar o papel incomparável do PC cubano e de Fidel na resistência à remundialização capitalista do planeta. Cuba socialista é hoje um verdadeiro "laboratório de história", simultaneamente testemunha das lutas vitoriosas do passado e guarda avançada das lutas vitoriosas de amanhã. Somos, portanto, todos devedores a Cuba por múltiplas razões. Cuba é antes de mais, a revolução fazendo recuar a contra-revolução. É o espírito de princípio marxista-leninista face ao oportunismo capitulacionista; é o socialismo adaptando-se à dominação planetária do capital sem ceder na propriedade social dos meios de produção, na educação, no emprego e na medicina para todos; é a rebelião do Terceiro Mundo e da América Latina contra o imperialismo neocolonial; é a afirmação de que a economia de mercado deve ser dominada e enquadrada, aguardando ser definitivamente superada por uma orientação no sentido da sociedade sem classes, inspirada pelo imortal Che Guevara. De resto, em Cuba não se fala de "socialismo de mercado" mas, e é bastante diferente, do "socialismo com o mercado". Quando as circunstâncias o obrigam a um recuo parcial, o PCC não mente ao povo, dizendo-lhe que se trata de avanços em direcção a um socialismo novo.

Nesse mesmo tempo, outros interditavam o movimento sindical e entregavam a sua classe operária ao capitalismo internacional mais selvagem, liquidando o seu campesinato pobre e criando milhões de desempregados, apagando do seu discurso a palavra malsonante de "imperialismo", acolhendo milionários no partido de Mao, recusando usar do seu direito de veto na ONU para salvar o povo iraquiano, desnacionalizando a indústria socialista e recusando esclarecer os comunistas sobre os antagonismos de classe explosivos que minam a sua expansão sob comando estrangeiro. Não temos então o direito de nos perguntarmos se o país mais populoso do mundo não estará em vias de mudar de cor, como o temeu Mao sem encontrar outras respostas que não fossem as exacções da Revolução "cultural"? Há já largos avanços nesse sentido no plano económico e qual é o marxista que pode duvidar que mais tarde ou mais cedo, a nova classe economicamente dominante, hoje provisoriamente camuflada nas dobras da bandeira vermelha, não porá em causa o papel do partido e a própria existência da República Popular?

Compreendam-me: não se trata de negar utopicamente o papel do mercado na transição socialista do capitalismo ao comunismo, nem de ignorar a relação das forças mundial, na qual são forçados a agir os sobreviventes do ex-campo socialista. Mas trata-se, isso sim, de não perder o rumo do comunismo, que impõe a superação, não apenas do mercado, mas do salariato e do próprio Estado burguês, que constitui o complemento paradoxal mas obrigatório dos dois primeiros! O "socialismo com o mercado" é certamente necessário em condições historicamente determinadas e tendo em conta que o socialismo não produziu ainda com abundância os bens e serviços necessários à vida de todos e de cada um, nem o nível cultural que permitiria consumir com racionalidade e moderação. Mas o "socialismo de mercado", por favor, não nos ofereçam tal miragem como sendo o futuro do movimento revolucionário no momento em que, da China à Índia do norte, se trata sobretudo de atrair os investimentos capitalistas, interditando as greves e os sindicatos operários!

Mais que inventar miríficas utopias social-mercantis, que não têm outro interesse que não seja o de escamotear a tarefa central que consiste em reconstruir a relação das forças políticas, é necessário apontar o problema principal do nosso tempo: reorganizar, à escala nacional quando já não exista, à escala internacional onde já não existe, a força política de vanguarda que pode federar as lutas, orientando-as para o socialismo, devolver sentido e dinamismo à revolta, misturada de resignação, das massas populares condenadas a uma defensiva sem saída. Se excluirmos Cuba, cujo exemplo brilha como um farol na nossa noite contra-revolucionária, mas cuja problemática objectiva não é actualmente a de reorganizar o movimento comunista mundial, temos de constatar que a implosão do campo socialista, a decomposição do Movimento Comunista Internacional e a fragmentação do Movimento anti-imperialista mundial (nomeadamente do Movimento dos Não Alinhados), desarmaram os povos e os trabalhadores, deixando-os sós, sem vanguarda e divididos, face à iniciativa de remundialização do capitalismo.

A fúria de auto-liquidação dos partidos comunistas que se seguiu à "Bolognina" em Itália e a auto-destruição de numerosos partidos comunistas do Leste, a mutação em curso ou já concluída de numerosos partidos comunistas oeste-europeus, permitiu também à burguesia retomar a iniciativa histórica para infligir derrotas estratégicas aos seus respectivos proletariados, pondo de pé essa vingança continental de 1917 e de Estalinegrado que é a Europa de Maastricht. Basta vermos no que se tornou a famosa "co-gestão" patronato/sindicato na RFA depois do desaparecimento da ex-RDA. Ao "Good bye Lenine" dos "Ossies", responde hoje em dia o "Auf Wiedersehen, Willy Brandt" dos "Wessies". Actualmente, com a Confederação Europeia dos Sindicatos, o objectivo em vias de concretização é o de digerir o sindicalismo de classe de numerosos países latinos, assim como o objectivo do Partido da Esquerda Europeia é o de digerir o que subsiste dos partidos comunistas que, sem terem cedido à vaga suicidária dos anos 90, liquidaram, em maior ou menor grau, as suas referências marxistas-leninistas e os seus princípios revolucionários. O renascimento comunista, a luta contra a criminalização do comunismo e contra a revisão negacionista da história revolucionária estão portanto, na actualidade, no coração das resistências populares, porque a destruição da vanguarda constitui o eixo central da ofensiva contra-revolucionária.

Por isso, constitui uma tarefa teórica essencial o compreender na sua complexidade dialéctica o entrelaçado de factores históricos que permitiram a contra-revolução na Rússia e na Europa de Leste. Produzi sobre esta questão um certo número de estudos, para os quais remeto imodestamente o meu auditório. Permitam-me resumir aqui, sem argumentar, o essencial desses trabalhos. Antes de mais, a implosão do campo socialista não constitui a marca de um "fracasso do socialismo" ou de um esgotamento do "modelo bolchevique" como se diz cá e lá. Trata-se pelo contrário, de uma derrota estratégica, cujas origens nos remetem para a luta de classes interna e externa aos países do campo socialista, uma derrota na qual interferem, alimentando-se um do outro, factores externos e internos.

O pano de fundo desta derrota é constituído pela pressão imperialista internacional crescente de que a URSS e os seus aliados foram alvo, da guerra civil dos anos vinte à agressão hitleriana, da guerra fria à cruzada reaganiana de contornos exterministas dos anos 80: a burguesia euro-atlântica tinha então por divisa oficial "lieber tot, als rot", "antes mortos que vermelhos". A guerra e a pressão externa, incluída a pressão económica e a guerra ideológica, não teriam, no entanto, conseguido destruir o regime soviético se, apoiando-se nas lacunas e desvios ideológicos pré-existentes, esta pressão exterminista e anti-comunista apoiada pela social-democracia e pelo revisionismo, não tivesse reforçado o campo oportunista, verdadeiro cavalo de batalha da burguesia, nos partidos comunistas no poder no Leste. Em 1984 os imperialistas americanos implantavam os seus Pershing em Itália, na Holanda e na RFA. Em 85 Gorbatchev chegava ao poder em Moscovo na base duma plataforma social-pacifista de desarmamento militar e ideológico unilateral. O exterminismo ocidental projectou-se, "ao invés", sobre o pacifismo gorbatcheviano; mas o unilateralismo belicista de Bush tem as suas raízes no unilateralismo capitulacionista dum Chevardnadze. Com o apoio do imperialismo, copiosamente reforçado pelos oportunistas do movimento operário, as forças revisionistas que derrubaram então muitos dirigentes dogmáticos e burocratizados, mas fieis ao socialismo, desenvolveram uma luta de classe contra-revolucionária, beneficiando das enormes vantagens constituídas pelo seu controle do aparelho dos partidos no poder, pelo seguidismo dos militantes, pela despolitização profunda das populações, pela incapacidade de alguns comunistas clarividentes em romper a tempo com os dirigentes liquidacionistas, prisioneiros que estavam da religião da unidade a qualquer preço da organização. Ao invés da implosão de um televisor, que não é mais que a projecção exterior de uma invisível implosão prévia, a aparente implosão do campo socialista e da URSS mais não terá sido, em boa parte, que o efeito invisível de uma luta de classe íntima que transpunha para o interior a luta de classes mundial entre socialismo e capitalismo sob a forma de uma luta final entre o renegado cínico Eltsine e os comunistas honestos mas inconsequentes, culturalmente incapazes de apelar às massas e ao partido para defender o socialismo.

É útil voltar, mesmo de passagem, ao conceito de traição. A este propósito é necessário tomar algumas distâncias com a utilização idealista do conceito de traição, que reduz as dificuldades do socialismo ou a sua queda final aos efeitos da felonia real ou suposta, à escolha, dum Staline, dum Khrouchtchev ou dum Gorby. Mas não devemos, no entanto, sob pretexto de nos distanciarmos da teoria idealista e paranóica do "complot", rejeitar levianamente a ideia que a traição, ou seja, a mudança de campo de certos dirigentes comunistas em momentos cruciais da história, possa igualmente servir de catalisador à contra-revolução; contrariamente ao capitalismo, onde dominam leis cegas, das quais os dirigentes burgueses são os agentes largamente intermutáveis e inconscientes, o socialismo caminha " conscientemente" e o papel das direcções e dos partidos é aí incomparavelmente mais forte que nos modos de produção anteriores. Se o golpe de Estado termidoriano de 1794 e a decapitação de Robespierre não foram suficientes para derrubar a revolução burguesa, cujo modo de produção se desenvolve às cegas, o Termidor gorbacheviano não teria ido muito longe no acender da mecha da contra-revolução "dura" de Eltsine num país onde a economia tinha por motor o papel dirigente do partido, o empenho comunista das massas e a planificação.

Isto não exime de maneira alguma, os regimes socialistas de Leste dos graves desvios burocráticos anteriores ao período gorbacheviano. Acumulando-se durante um longo período, os efeitos destes desvios desembocaram no bloqueio e na estagnação, colocando a URSS pós-brejneviana em situação de "pré-crise", segundo o vocabulário oficial. Sem uma tal situação, geradora de perturbação ideológica, os oportunistas contra-revolucionários jamais teriam podido tomar o poder no PCUS ou no SED. Esta burocratização remonta em boa medida ao desvio estatista e policial que afectou o primeiro país socialista na época de Estaline. Dizer isto não significa aderir à diabolização de Estaline, e ainda menos à escandalosa amálgama que hoje se faz entre o Terceiro Reich e o país de Estalinegrado. Longe de ser a consequência directa do leninismo e da Revolução de Outubro, o desvio estaliniano foi combatido nas suas raízes por Lénine, como o testemunha o tom trágico dos seus últimos textos e o seu famoso "testamento", que aconselhava os bolcheviques a afastar Estaline do poder, a desenvolver a Internacional Comunista, a desenvolver a agricultura colectivista por intermédio da cooperação, a reduzir o aparelho de Estado, a respeitar a identidade nacional dos povos da URSS e a desenvolver os meios de controle do proletariado sobre um aparelho de Estado que Lénine aconselhava a aligeirar massivamente.

O que se chamou o "estalinismo" não foi também o efeito directo do "socialismo num só país", como crêem os trotskistas; foi o próprio Lénine que julgou ser possível a construção do socialismo num só país, assinalando embora que esta situação sem precedentes acarretaria duros constrangimentos deformadores para o socialismo, razão pela qual Lénine havia imaginado os antídotos acima enumerados. O desvio estaliniano é o efeito de uma escolha política, já que as determinações económicas apenas fixam o quadro da luta política, e é esta que define as orientações no quadro das situações objectivas assim criadas. De qualquer forma, esta escolha política foi operada na base de relações de produção socialistas e do poder de Estado soviético. Favorecido, mas não determinado, pelo cerco capitalista, pelo ascenso do fascismo, pela invasão alemã e pela guerra fria, o "estalinismo" mostrou-se, no entanto, durante todo um período, compatível com a manutenção e com o desenvolvimento do socialismo. Mesmo hipertrofiando o Estado, a centralização e os fenómenos culturais de alienação política e ideológica que todo o estatismo comporta (como demonstrou Michel Verret, não existe Estado sem uma religião política de acompanhamento), o poder estaliniano permitiu tirar a Rússia atrasada do subdesenvolvimento, lançar as bases da indústria socialista, pôr de pé a primeira economia conscientemente planificada da história, criar as condições económicas e políticas para esmagar o nazismo, eliminar o desemprego, desenvolver largamente a cultura, o pleno emprego, a ciência e a educação, fazer da Rússia dos czars a segunda potência mundial, iniciar a conquista do Espaço, dar um vasto impulso ao movimento de libertação do Terceiro Mundo, quebrar duradouramente o monopólio do imperialismo, dar a igualdade jurídica às mulheres, etc.

Mas esta centralização extremamente dirigista entrou pouco a pouco em contradição com o desenvolvimento das forças produtivas modernas, que necessitam do desenvolvimento da iniciativa pessoal e colectiva e o mais amplo desenvolvimento da democracia socialista, essa democracia socialista que os oportunistas gorbatchevianos tudo fizeram para identificar com a democracia burguesa e com o seu pluralismo de espectáculo. Era de uma revolução dentro da revolução, ou seja, não menos, mas mais centralismo democrático, mais ditadura do proletariado, mais internacionalismo proletário, mais socialização real da produção, reforço dos sovietes e do papel dirigente do PCUS, que o socialismo dos anos 80 tinha necessidade, para retomar a iniciativa histórica e derrotar a cruzada anti-soviética lançada por Reagan e Bush Senior. Mas, com a ajuda de uma "novlíngua" sem precedentes, bem rodada no Ocidente pela Inglaterra de Thatcher, a perspectiva de uma saída comunista para a crise do socialismo foi metodicamente desviada, sendo os defensores do socialismo qualificados de "conservadores" e Eltsine autoproclamando-se o chefe da "esquerda radical"!

Como vemos, a explicação menchevique ou trotskista do pretenso "fracasso" da URSS pelo atraso da Rússia e pela impossibilidade nativa de aí construir o socialismo, comporta uma parte de verdade. O próprio Marx, numa nota profética de A ideologia alemã, explicava claramente que o socialismo tinha necessidade de uma extensão mundial e que "a extensão das trocas aboliria o socialismo local". Mas esta "explicação" peca duplamente no plano filosófico porque não tem em conta, nem o tempo, nem a liberdade humana, nem a natureza dialéctica das determinações históricas. O "socialismo num só país" predispunha, como o viram Lénine ou Trotsky, ao perigo de degenerescência burocrática. Mas, como vimos acima, este perigo podia ser conjurado por um acréscimo de internacionalismo, de controle operário e camponês sobre o Estado, de revolução cultural no sentido leninista do termo, etc, enquanto que Staline seguiu largamente o declive do reforço estatal, inclusive praticando na URSS um nacionalismo grão-russo que Lénine condenava com a maior virulência.

Por outro lado, um desvio não é nocivo da mesma forma em todas as épocas: herdada do comunismo de guerra, a extrema concentração do poder própria do período estaliniano jogou um papel positivo no arranque da industrialização e na vitória sobre Hitler, inseparável, quer queiramos ou não, do nome de Estaline. Enfim, sejam quais forem as condições da luta, e mesmo quando forçados a recuar diante das circunstâncias, os homens conservam a liberdade de prosseguir ou não os objectivos históricos que são os seus, de manter ou não o rumo do comunismo, ou seja da luta de classes conduzida até à sociedade sem classes, à extinção da mercadoria e ao declínio de toda a coacção estatal. E esta tendência para o comunismo deve iluminar todas as suas actividades presentes, mesmo quando chega a hora do recuo provisório, sob pena de ver o socialismo regredir ao capitalismo e à restauração das classes exploradoras. A questão do declínio do Estado e do mercado é crucial do seguinte ponto de vista: sem tendência contínua e perceptível pelas massas, para a superação do Estado, do salariato e do mercado, o socialismo será ele mesmo condenado a permanecer inconsequente, instável e incompleto, já que a própria socialização dos meios de produção se arrisca a existir como pura formalidade e preservando a separação alienante do produtor e do produto, do criador e do executante, do produtor e do consumidor.

Mas, sem entrar em detalhes nesta análise, é necessário, no futuro, ter em conta as principais lições da contra-revolução: antes de mais, os ensinamentos cardinais de Lénine e do seu livro "O Estado e a Revolução" não foram invalidados e sim confirmados a contrario pela marcha contra-revolucionária para o capitalismo, que, ouso dize-lo, projectou o filme da revolução ao contrário: assim, a classe exploradora em formação em torno da "economia negra" e da ex-nomenklatura, começou por se reagrupar em volta de contra-reformas reaccionárias, sem nunca deixar de visar os seus objectivos históricos, a conquista do poder de Estado, a destruição total do aparelho soviético e sobretudo, a privatização dos meios de produção, claramente anunciada como o termo do processo no livro escrito, ou pelo menos assinado por Eltsine, "Até ao fim".

De seguida, é necessário combater sem descanso a campanha de criminalização do socialismo, à qual se prestam tantos pseudo-comunistas. Não é por nostalgia que fazemos a amarga constatação, como todos os povos de Leste, do formidável recuo que constitui para toda a Humanidade o desaparecimento do campo socialista, defeitos e desvios incluídos. O socialismo do futuro não se edificará sobre a negação do socialismo passado, mas sobre a sua superação crítica. A autofobia comunista, a obsessão anti-léninista, apenas conduzem à liquidação dos partidos comunistas e, pouco a pouco, a um deslizar à direita de todo o espectro político, a social-democracia derivando para o social-liberalismo e a direita para o neo-conservatismo de Bush ou simplesmente para o neo-fascismo. É natural: quando os comunistas deixam de ser comunistas, toda a sociedade perde a sua ancoragem à esquerda e deriva. É aos comunistas do presente que parece dirigir-se a frase do Evangelho que diz, em intenção dos apóstolos: "Vós sois o sal da terra; mas se o sal perde o seu sabor, quem lho trará?"

Em vez de "perder o seu sabor", em lugar de se "dessalinizar" (de se "edulcorar") sob pretexto de se "desestalinizar", é urgente, para os verdadeiros comunistas, reconstruir a sua ligação à herança comunista a partir do conceito leninista de "assimilação crítica" dessa herança, rejeitando tanto a negação como a idealização retrospectiva. Em suma, é preciso herdar do comunismo como comunistas, para tirar do passado perspectivas de luta. Não só não se deverá recolocar em questão o objectivo estratégico da revolução socialista e de uma autêntica ditadura do proletariado, desembaraçada das suas caricaturas burocráticas, mas trata-se de tornar mais perceptível desde já a interpenetração dialéctica da luta pelo socialismo e da perspectiva comunista, com tudo o que isso comporta de internacionalismo ardente e de ultrapassagem radical da mentalidade burguesa. É o que fazem os nossos camaradas cubanos que, apesar de mil dificuldades, continuam e semear para o comunismo, mesmo quando a própria existência de Cuba socialista é tragicamente ameaçada pelo cerco capitalista. Não é por acaso que a juventude mais progressista continua a reconhecer-se na figura do "Che", esse combatente de quem podemos discutir certas opções, mas de quem ninguém contesta as opções de vida e de pensamento prefiguradoras de uma sociedade radicalmente humana.

Mas, compreender o passado não é evidentemente a única tarefa dos construtores do comunismo futuro. Um certo número de tarefas concretas se abrem diante de nós.

Antes de mais, no plano teórico: se realmente pensamos que o marxismo-leninismo, liberto da sua ganga dogmática e reposto ao serviço para aproveitar as contradições actuais e trabalhar todos os campos do saber, é o utensílio insubstituível que permite compreender e transformar o mundo, dotemo-nos então dos meios para por em rede as revistas marxistas existentes, traduzir os textos, ter como objectivo a edição de uma revista marxista-leninista internacional. O site internacionalista português "resistir.info" não poderia, neste aspecto, desempenhar o papel de facilitar e de coordenar? Numa época em que se desenvolvem os "serviços", como distinguir o que é deslocação do trabalho produtivo do que tem natureza puramente parasitária? Como conceber a superação revolucionária do capitalismo e a socialização dos meios de produção, na época das novas tecnologias da comunicação? Como poderá uma dialéctica da natureza emancipada do dogmatismo, responder à impetuosa procura de unidade teórica que atravessa as ciências contemporâneas? Estas questões e muitas outras podem alimentar uma intensa discussão internacional que relançará a investigação marxista e os intercâmbios comunistas internacionais.

A este propósito, um ponto particularmente importante é o de bem manejar a dialéctica do nacional e do internacional face à mundialização capitalista e à construção de Impérios supranacionais. Para federar as lutas, devolver à classe trabalhadora o seu papel político dirigente no movimento social, é imperioso criticar a oposição abstracta que se faz frequentemente entre patriotismo e internacionalismo. Esta oposição constrange os progressistas a escolher entre uma posição "nacional-republicana" que ignora frequentemente o combate de classe e o empenhamento anti-racista, e uma posição euro-mundialista que ajuda o capitalismo a destruir as soberanias constituídas, em nome de uma inalcançável "democracia" mundial ou europeia. Na verdade, é necessário recuperar o ponto de vista de classe que era o de Dimitrov ou de Politzer: se tomarmos consciência do facto que o euro-mundialismo abstracto e o nacionalismo burguês são duas faces complementares da ideologia capitalista, compreenderemos que a classe laboriosa deve ela própria situar-se nos dois campos, defendendo a soberania nacional do ponto de vista da luta pelo socialismo, desenvolvendo de toda a maneira um internacionalismo de segunda geração dirigido contra o capitalismo mundializado, a Europa supra-nacional e as guerras imperialistas. Os comunistas devem ser ou voltar a ser os campeões do patriotismo popular e republicano, da Europa das lutas e do renascimento de um movimento comunista internacional ofensivo, rejuvenescido e democratizado.

Esta é, efectivamente, uma grande questão prática, sem a resolução da qual os partidos e grupos comunistas isolados terão a maior dificuldade em se manter e se desenvolver. O apagamento do Movimento Comunista Internacional, o ascenso de tendências europeistas e nacionalistas no seio do MCI, não desempenharam um papel menor na vitória histórica da contra-revolução, enquanto que, durante o mesmo período, todas as forças da reacção e do reformismo se reagruparam, da Internacional "socialista" ao G7, passando pelo FMI e pela OMC, esses catalisadores neo-estatais do capitalismo mundialisado. Não se trata aqui de decalcar a Internacional Comunista, já que "nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio". Mas é absolutamente necessário que os verdadeiros comunistas de todo o mundo inter-relacionem-se sistematicamente, façam frente em conjunto contra as guerras imperialistas, intervenham de forma convergente face às "cimeiras" capitalistas e, no interior das contra-cimeiras alter-ou anti-mundialistas, façam frente em comum aos reagrupamentos liquidacionistas tais como o Partido da Esquerda Europeia. Este cartel social-democrata e europeista é uma má resposta a um verdadeiro problema e se os comunistas autênticos tardarem eternamente a reagrupar-se por excesso de prudência diplomática, por espírito de conciliação centrista, não apenas deixarão sós os marxistas-leninistas que enfrentam no seu país partidos totalmente enfeudados à social-democracia, como permitirão ao euro-comunismo reciclado ou ao euro-trotskismo bem-comportado, monopolizar a aspiração legítima dos comunistas à solidariedade de classe internacionalista. Os oportunistas do mundo inteiro reagrupam-se, as forças anti-oportunistas e marxistas devem, portanto, reagrupar-se sem mais demoras, sejam quais forem as formas, em aberto e ainda largamente imprevisíveis, desse reagrupamento.

Para além do terreno teórico que assinalei acima, tenho sobretudo em vista o que também designei por "trabalhos práticos do novo internacionalismo proletário ". Na verdade, podemos e devemos fazer mais em conjunto, à escala mundial e continental, não para defender Cuba e a sua revolução, mas para NOS defendermos COM Cuba socialista. Poderíamos na realidade, a partir de agora, agir de maneira ainda muito mais concertada pela solidariedade com os povos do Iraque, da Palestina e da Colômbia.

Enfim e sobretudo, dispomos de um imenso campo de acção, se agirmos todos unidos por um NÃO operário, popular, republicano e anti-imperialista, não somente a esta constituição europeia , mas a qualquer Constituição da Europa capitalista. Quem não é capaz de ver a dinâmica extraordinária que traria aos comunistas e aos trabalhadores de cada país um apelo internacionalista contra a Constituição europeia e pelo NÃO a esta constituição nos países que, como a França, se vão pronunciar em referendo sobre este texto anti-nacional e anti-popular? Um texto sobre o qual os dirigentes "euro-construtivos" da esquerda Europeia e da Confederação Europeia de Sindicatos se sentem já embaraçados! A adopção de um tal texto faria soar por longo tempo o fim das independências nacionais e das perspectivas socialistas que lhe estão ainda e por muito tempo associadas. A Constituição Europeia daria luz verde à construção de um Estado federal Super-Maastricht, fazendo tábua rasa das conquistas sociais e democráticas e abrindo caminho à Europa-Fortaleza imperialista, com imensos perigos para a paz.

Pelo contrário, a derrota desta Constituição, num ou em vários países europeus, seria uma bofetada para a grande burguesia; essa derrota faria entrar em crise duradoura a estratégia capitalista de integração europeia e recolocaria os trabalhadores e os comunistas na ofensiva, com os elementos de crise aberta na hegemonia política e cultural do capital. Não podemos falhar esta "janela de lançamento", como dizem os astronautas, e este colóquio pode ser a ocasião para reflectir sobre as iniciativas mais adequadas.

Mais fundamentalmente, chamo a atenção para a muito pertinente proposta do PC da Grécia, que para lá da conjuntura, apela à constituição de um Pólo continental para a saída da UE do capital, chegando a fixar o objectivo para cada povo de sair da UE, essa canga imposta aos trabalhadores e aos povos soberanos. É evidente que os marxistas-léninistas devem reflectir profundamente, a partir de uma crítica inter nacionalista da supra nacionalidade, sobre a dialéctica subtil que combina o objectivo de ruptura com a UE com o de reconstruir um espaço político e social muito diferente, não limitado à Europa actual, a partir da Europa das lutas e da reconquista das soberanias. Que lugar terão os trabalhadores imigrados "não europeus" nesta acção de reconquista? Que lugar para o sector público, para as políticas de re-industrialização, para a luta contra o cancro financeiro, para a cooperação com a Rússia, o Magrebe, a África e o Mediterrâneo? Que articulação com uma política de desenvolvimento autocentrado do Terceiro Mundo e dos países de Leste, com a luta para anular a dívida usurária que pesa sobre a periferia capitalista?

A questão da ruptura num qualquer ponto da cadeia imperialista (e esta ruptura poderia ter por detonador o não à Euro-Constituição, prolongando-se por poderosas lutas sociais e por recomposições em cadeia) colocaria igualmente um grande problema político: como conjugar as famosas teses leninistas sobre o "elo fraco da cadeia imperialista" e "o desenvolvimento desigual" com a tese, falsamente atribuída a Trotsky, mas inicialmente formulada por Marx, da "Revolução permanente" ou "ininterrupta". O erro de Trotsky a este propósito não foi o de ter retomado a expressão de Marx, mas de a ter oposto à tese leninista sobre a possibilidade de iniciar a construção do socialismo num só país, fazendo da pretensa "revolução mundial" a condição prévia para qualquer alternativa local ao capitalismo.

Nas condições da mundialização capitalista, é claro que a ruptura da cadeia imperialista num ponto, com a dupla reconquista da soberania nacional/ transformações socialistas, teria de fazer face à coligação de todas as burguesias; o que foi mobilizado para travar a revolução bolivariana na Venezuela, um país da periferia, seria multiplicado por cem, se se tratasse de um país do "centro". Mas simetricamente, não seriam mais fortes e mais rápidos os golpes desferidos num só ponto da cadeia imperialista, na nossa época de internacionalização das trocas e das comunicações? Esta questão é central. Ela coloca-se de maneira nova e é dever dos marxistas nela trabalharem se querem ajudar o seu povo respectivo a envolver-se a nível nacional em transformações socialistas, sem se isolar radicalmente na cena internacional. Em todo o caso, não nos deixemos paralisar pelas dificuldades do nosso campo e tenhamos uma clara consciência da fragilidade extrema do campo opositor: essa gente defende um sistema caduco, e evidentemente eles apenas são mais perigosos!

Para acabar com uma nota mais "nacional", como se coloca em França a questão da transformação social?

Depois de ter sido, com a RFA, o motor da integração europeia, a França está a perder velocidade na Europa. Isto não é devido ao enfraquecimento do grande capital "francês", mas ao ódio de classe que os burgueses franceses, bem respaldados pela social-democracia, votam ao seu próprio país. Já não têm conta as declarações anti-francesas do Barão Seillères, o chefe do patronato francês. Este herdeiro da alta aristocracia industrial, anteontem amiga de Thiers e de Bismarck, ontem ao serviço de Pétain, considera abertamente o seu próprio país como um amontoado de arcaísmos. Na "esquerda-caviar" como no "jet set", já não se esconde que é preciso acabar com a França e o ex-presidente francês Giscard d'Estaing, redactor da constituição europeia, visita as escolas primárias para explicar às crianças que elas, antes de serem francesas, são europeias. O caso é que a França, incluindo a França burguesa, foi em larga medida construída pelos combates progressistas da Filosofia das Luzes, pela Revolução "sans-culotte" de 1789, pelos pioneiros do comunismo que foram Babeuf e Buonarotti, pelo movimento operário e laico do século XIX, pela marca profunda deixada na história do meu país pelo PCF, pela Frente Popular e pela Resistência anti-fascista. Como diz o ex-esquerdista agora ultra-liberal Cohn-Bendit, "para fazer a Europa, é necessário desfazer a França". É defendendo a um mesmo tempo as tradições patrióticas e as reivindicações sociais, que o PCF conseguiu colocar em dificuldades a burguesia em 1992, obtendo a realização de um referendo sobre o Tratado de Maastricht, em que os trotskistas da "Luta Operária" salvaram Mitterrand da derrota, com a sua abstenção, já que o NÃO obteve 49,3% dos votos.

Mas depois, no seguimento dos seus abandonos de princípio "euro-comunistas" dos anos 70, da campanha anti-comunista lancinante conduzida em França nos anos 90 e do trabalho de sapa de uma fracção abertamente reformista instalada na direcção do partido, o PCF sofreu uma "mutação" que lhe fez rejeitar todos os seus fundamentos e o conduziu a participar durante cinco anos no Governo maastrichtiano e social-imperialista de Jospin. Centenas de milhares de militantes abandonaram este partido, que era o maior partido francês até 1979 e que acaba de recuar fortemente nas eleições europeias. Certamente, depois de o PCF já não fazer parte do Governo, não lhe custa nada atacar a direita no poder. Mas os governos passam e a mutação fica: actualmente, os dirigentes do Partido condenam, em nome dos "Direitos do Homem", as justas medidas de auto-defesa tomadas por Cuba socialista contra as manobras contra-revolucionárias. Esta direcção oficialmente subordinada ao próprio princípio da integração europeia, longe de condenar a Constituição supra-nacional nos seus princípios, contenta-se em rejeitar as suas orientações "ultra-liberais" sem apontar o carácter intrinsecamente imperialista do Estado europeu em construção. E é compreensível: o verdadeiro programa comum da direita e da social-eurocracia francesa, quer se trate dos "presidenciáveis" de direita como Sarkozy, ou dos presidenciáveis de "esquerda" como Hollande, Strauss-Kahn, Aubry, Lang ou Fabius, é a integração europeia e a desintegração da nação. Eleitoralmente apoiado pelo PS, de que dependem os seus eleitos na segunda volta, o PCF mutante já não tem estruturalmente a liberdade de denunciar o princípio da integração europeia, como o faziam ainda W. Rochet ou Georges Marchais.

É precisamente para quebrar esta euro e esta "social-dependência" que os verdadeiros comunistas de França se vêm reagrupando desde há anos. No início, nos anos 70/ 80, opuseram uma resistência ideológica aos abandonos revisionistas. Desde o início dos anos 90, para combater a campanha liquidacionista denominada "mutação", os militantes francamente comunistas organizaram-se, primeiro na Coordenação Comunista, depois no Colectivo Unitário dos Comunistas, em torno do deputado comunista Georges Hage. Na sequência das grandes lutas de Maio de 2003, nas quais o PCF foi incapaz de denunciar a Europa supranacional, constatando que o combate interno pela renovação revolucionária do PCF, conduzido ao longo de quatro congressos, não havia permitido endireitar a barra e que pelo contrário, os militantes marxistas-leninistas eram crescentemente reprimidos ou marginalizados no partido, constatando do mesmo modo que as tentativas centristas de conciliação com a mutação são extemporâneas, no momento em que se joga a própria existência da República Francesa e o futuro do movimento operário, constatando que o PCF mutante está firmemente decidido, pensem o que pensarem os seus militantes, a filiar-se no Partido da Esquerda Europeia, estes militantes decidiram organizar-se a nível nacional e independentemente da direcção reformista, criando o Polo do Renascimento Comunista em França (PRCF) que conduzirá a luta na base do marxismo-leninismo, do internacionalismo proletário e da defesa da soberania nacional. Este Polo foi fundado na presença de 400 delegados e de uma delegação oficial do PC de Cuba. O PRCF não é um partido, mas um instrumento transitório para o renascimento de um partido revolucionário continuador do verdadeiro PCF sob formas apropriadas à nossa época. Aberto aos militantes do PCF, aos antigos aderentes e aos jovens camaradas que não se reconhecem no partido da mutação, o Polo do Renascimento comunista está já implantado em metade dos departamentos franceses e age igualmente no quadro do Comité de Convergência Comunista, que agrupa numerosos movimentos, internos ou externos ao PCF, opositores à mutação.

O desafio é claro: já que a destruição do meu país foi tornada possível pela destruição, ou melhor, pela auto-destruição da vanguarda comunista, é preciso ligar estreitamente a resistência popular e a luta para que renasça o verdadeiro partido comunista, o verdadeiro PCF; este renascerá sob este nome quando os comunistas e o movimento operário o decidirem livremente, mas é ainda necessário que disponham então de uma oferta política suficientemente legível para poderem concretizar a sua decisão, porque neste caso, a simples espontaneidade não será suficiente. Quero deixar bem claro, não peço de modo algum que os participantes neste colóquio "reconheçam" o PRCF, porque não é esse o objecto do colóquio, mas estareis de acordo que teria sido covardia da minha parte não vos esclarecer sobre os meus compromissos políticos, entrincheirando-me por detrás de um discurso ultra-teórico. O marxismo-leninismo ou é a unidade da teoria e da prática revolucionária ou não passa de palavreado vão. E sobretudo, é minha convicção que as forças revolucionárias não progredirão se se mantiverem no seu torrão nacional, preferindo manter as relações diplomáticas herdadas do passado à fraternidade internacional daqueles que continuam realmente o combate.

Conclusão: amigos e camaradas, para concluir esta exposição, agradeço uma vez mais ao município comunista de Serpa, porque é com encontros como este que se voltarão a ligar os fios -- rompidos pelo oportunismo -- entre os revolucionários do mundo inteiro. No momento, unamo-nos para além das fronteiras que nos separam, para combater a criminalização do socialismo, reconstruir em conjunto a análise marxista-leninista do mundo contemporâneo, defender Cuba socialista, combater a Constituição Europeia, apoiar as resistências populares e anti-imperialistas, activar tudo o que possa contribuir para o renascimento de um Movimento Comunista democratizado e rejuvenescido, mas firme nos seus princípios e objectivos revolucionários.

Notas do tradutor:
1- P.D.G. ( Président-directeur Général ) – Presidente do Conselho de Administração das empresas públicas e privadas em França, que têm direito, como noutros países, a obter em condições privilegiadas pacotes de acções das respectivas empresas.
2- Da cor das camisas do uniforme dos membros do partido nazi alemão.
3- Estados federados da Alemanha
4- "pão e circo"
5- Em castelhano no original.


[*] Intervenção do autor no Encontro Internacional 'Civilização ou Barbárie', Serpa, Setembro de 2004. Tradução de Carlos Coutinho.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

03/Nov/04