Classes, luta de classes e sociedade sem classes
[1]
por Georges Gastaud
Introdução
Servindo-se dos numerosos apoios à sua disposição, a
ideologia dominante inculca nas pessoas a ideia de que não há
senão o «indivíduo» que existe por si mesmo e é
totalmente independente dos outros
(self made man).
Tudo se faz para negar a existência das classes sociais e o
antagonismo entre elas, apresentando a bárbara sociedade capitalista
como o paraíso da «cidadania». As péssimas
condições de vida e a exclusão, geradas em maré
crescente por este sistema, são disfarçadas em
«pecados» ou em «dificuldades de adaptação»,
imputáveis unicamente à responsabilidade dos indivíduos.
Consequência inesperada: a sociedade «liberal» deve, para se
manter firme, multiplicar os polícias e os guardas prisionais, enquanto
o carrasco não vem...
Esta concepção individualista do homem é tão pobre
que, como compensação, a ideologia dominante convida cada um de
nós a «completar» a sua própria
identificação, integrando-se a si mesmo, de modo mais ou menos
arbitrário e afectivo, numa «comunidade» religiosa,
geracional, «étnica», sexual, etc.
À escala planetária, a «guerra de
civilizações» entre o «cruzado» Bush e o
integrista Ben Laden passaria a substituir o combate progressista dos povos
contra o imperialismo.
Em certos bairros assolados pelo desespero social, é assim que se
vê a oposição perigosa entre a FN, que substitui a ideia
republicana de nação pela da raça, e o
«comunitarismo» integrista, com o único resultado de quebrar
toda a acção conjunta contra o capital.
Nas empresas, é o
corporativismo
que permite ao capital impedir a «unidade de todos»: virar
assalariados do sector privado contra os do sector público, confinar as
lutas a uma empresa ou ramo profissional, isolar os trabalhadores activos dos
reformados e dos desempregados, opor o pessoal com estatuto aos
«precários», etc.
Estes dispositivos de diversão levam os trabalhadores a lutar cada qual
por seu lado, para grande felicidade do patronato. O objectivo é impedir
que a classe dominada, os
proletários
, intervenha livremente e de maneira colectiva na cena política. Assim,
os explorados ficam confinados ao seu papel de mão-de-obra passiva, de
eleitores sem referência, ou pior, de carne para canhão.
É precisamente para
emancipar os indivíduos, não em palavras mas na prática,
é para os ajudar a tornarem-se finalmente sujeitos activos, ou melhor,
cidadãos da História
, que os comunistas, representantes consequentes da classe explorada, devem
reapropriar-se da teoria marxista e do conceito de classe social.
1º Que é uma classe social?
A apropriação colectiva dos instrumentos de
produção, objectivo central da luta de classes
Texto basilar do materialismo histórico, a
Ideologia Alemã
demonstra que o trabalho, a produção, são a base da
história humana: «
Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência,
religião, tudo o que se quiser.
escrevem Engels e Marx. -
Eles começam a distinguir-se dos animais assim que começam a
produzir os seus meios de existência, passo em frente que tem como
resultado a sua organização como um conjunto diferenciado
». Contrariamente aos animais, que produzem
directamente
a sua vida a partir do corpo e do meio natural, os homens produzem
indirectamente
os seus meios de existência, fabricando utensílios, desenvolvendo
técnicas que transmitem por herança, de geração em
geração e não por hereditariedade biológica.
Esses utensílios, da pedra lascada ao computador, inscrevem os
indivíduos em relações de produção que
são a base objectiva da sua existência em sociedade. A
questão decisiva é, então, a da
divisão do trabalho
. Em função do grau de complexidade atingido pelas forças
produtivas (utensílios e técnicas) põe-se em
prática a
divisão técnica do trabalho (ofícios e ramos
profissionais).
Esta formará a seguir uma das bases da troca mercantil: cada qual
põe «no mercado» o que produz além do seu
próprio consumo; o mercado regula de maneira cega (concorrência,
oferta e procura...) a troca e a repartição das riquezas...
Quando a sociedade atinge um estádio superior de complexidade, as
tarefas de organização («trabalho intelectual»)
separam-se do trabalho de execução («manual»). A
maioria dos indivíduos vai «fazer», enquanto uma minoria vai
«mandar fazer». A etapa decisiva na
divisão social do trabalho
é o momento em que uma parte da sociedade se apropria dos meios de
produção (terra, rebanhos, utensílios de interesse para a
colectividade), o que vai permitir explorar a maioria dos indivíduos que
o processo histórico despojou dos meios de produção.
Assim se estrutura a
sociedade de classes
onde os proprietários dos meios de produção exploram os
que não têm outro recurso senão trabalhar para os
primeiros. Este é o proletário «livre» da sociedade
burguesa, de quem Marx escreve que «está desligado de tudo, excepto
da necessidade».
Vê-se, portanto, que, contrariamente ao que pretendem Marchand, Dimicoli,
Boccara e outros «renovadores do marxismo» que minimizam a
questão da propriedade, a questão central da
revolução é esta:
a quem pertencem os meios de troca e de produção?
[2]
São, directamente ou não, propriedade de alguns? Estamos,
então, perante uma sociedade composta de exploradores e explorados
[3]
. Se os meios de produção, pelo contrário, são
propriedade da sociedade (socialismo) ou um bem comum da humanidade
(comunismo), temos uma
sociedade sem classes
, onde a noção de indivíduo livre deixa de ser uma
ilusão: os homens já não pertencem a classes desde a sua
nascença, já não mourejam para um outro (escravo, servo,
assalariado) e tornam-se «produtores associados» que trabalham para
si mesmos e para a colectividade, de acordo com o princípio não
mercantilista do comunismo «de cada um segundo as suas possibilidades, a
cada um segundo as suas necessidades»
[4]
.
É assim que Marx vai desenvolver a concepção materialista
do comunismo como «movimento real que abolirá o estado de coisas
existente». Com efeito,
a exploração de classe gera necessariamente a luta de classes
, já que mais não fosse porque o explorador (e isto é
particularmente verdadeiro no capitalismo actual, regido pela busca do lucro
máximo) trava permanentemente um combate egoísta para sacar cada
vez mais dos assalariados:
estes não têm outra saída senão a de lutar ou recuar
constantemente.
Ora, o único «fim» (nos dois sentidos da palavra: objectivo
e ponto de chegada) da luta de classes só pode ser a sociedade sem
classes, o comunismo, pois que, se o explorador ganha
(contra-revolução, contra-reforma), a exploração
é retomada de maneira ainda mais dura; em caso contrário,
a classe explorada não terá ganho definitivamente a sua
«luta final» senão quando tiver posto termo à
própria existência das classes
: a luta dos comunistas apenas findará com o comunismo propriamente dito
quando o «desenvolvimento de cada um for a chave do desenvolvimento de
todos» (Marx).
2º Modernidade desta análise
a) Luta de classes e consciência de classe
Admitamos as análises de Marx, objectar-se-á, mas as classes
não desapareceram na nossa época? Quem fala ainda de
«burguesia» ou de «classe operária»?
Esta objecção assenta numa confusão. Na verdade, foi a
consciência de classe que recuou dramaticamente nos nossos países
e isso não está desligado das renúncias dos partidos e dos
sindicatos de classe no campo teórico e ideológico. Mas que um
indivíduo não saiba que é proletário não
impede que ele seja explorado. Pelo contrário! A ignorância em
que se encontravam os homens, antes de Galileu, acerca do movimento da Terra
nunca impediu o nosso planeta de girar
. A repartição dos indivíduos em classes sociais é
um dado objectivo que resulta do facto de os capitalistas comprarem a
força de trabalho e os proletários venderem-na no mercado de
trabalho
. A consciência de classe é, antes de mais, um fenómeno
político e ideológico que depende das relações de
força na luta de classes. Quando a classe operária perde os seus
instrumentos políticos e sindicais de classe (é o que se passa ou
pode passar-se num período contra-revolucionário), a sua
consciência política de classe declina e, então, subsiste
apenas um «instinto de classe» (Lénine) que a
social-democracia desvia para o reformismo (e os fascistas para o populismo
reaccionário).
Em contrapartida, a classe burguesa mostra uma arrogância
(Seillères!) digna dos senhores feudais e dos senhores de escravos da
Roma antiga.
O recuo da consciência política da classe proletária
não prova, pois, de modo nenhum, a inexistência de classes.
É, pelo contrário, um argumento de sobra para a
reconstituição de um partido de vanguarda
que permita à classe explorada tomar consciência dos seus
direitos a dirigir o desenvolvimento social em proveito de todos. Para isso,
é preciso combater o obreirismo que encerra o explorado no instinto de
classe, impedindo-o de compreender a necessidade da revolução:
«
não há movimento revolucionário sem teoria
revolucionária
», escrevia Lénine, com toda a razão.
b) A luta de classes continua mas mudando de forma
Na nossa época, é importante tomar consciência da
«exacerbação das contradições de classes»
(Manifesto do renascimento comunista).
A burguesia desapareceu? Evidentemente que não.
Mudou de forma.
As indústrias familiares de outros tempos deram lugar aos
monopólios transnacionais, que praticam a moral ensinada nas grandes
escolas comerciais: «
não atender nem aos produtos, nem aos países, nem aos homens
». É falso que a especulação financeira tenha
substituído a especulação capitalista de empresa, como
crêem alguns «altermundialistas». Sem que seja possível
desenvolver aqui este aspecto das coisas, a dominação do capital
financeiro e especulativo acompanha e acentua (cf. os despedimentos ditos
«bolsísticos») o recrudescimento da exploração
na empresa: atrás do CAC 40, que
France Info
apresenta hora a hora, há a precaridade, os baixos salários, as
deslocalizações, os despedimentos, o assédio moral no
trabalho, o trabalho nocturno das mulheres e outras «gracinhas» da
classe capitalista, que se aproveita plenamente da
remundialização do seu sistema.
Quanto aos proletários, é absurdo dizer-se que desapareceram. Em
primeiro lugar, as deslocalizações do Ocidente para países
«emergentes»
desloca
a classe operária sem a suprimir. Isto significa para nós que
é preciso simultaneamente desenvolver um internacionalismo
proletário de segunda geração e defender as
condições de existência da classe operária
AQUI
, tomando em mãos a bandeira da independência nacional no campo
industrial: a não ser assim, o que nos espera é a
exploração sem limites nos países da periferia capitalista
e a desqualificação massiça da classe operária nos
países dominantes!
Além disso, toda a gente sabe que o capitalismo actual faz por
«mercantilizar» e «proletarizar» actividades de
serviços em que vê fontes directas ou indirectas de mais-valia:
saúde, educação, investigação, etc.
Não é por acaso que as lutas se multiplicam em sectores onde
outrora havia consenso. Isto não significa que a classe operária
esteja a desaparecer, mas, sim, que o proletariado se diversifica e se alarga,
mesmo quando,
terrível contradição que complica o nosso combate,
o seu núcleo operário mais consciente é duramente atacado
nas metrópoles imperialistas. Uma razão mais para estudarmos como
se aplica hoje o conceito marxista de
trabalho produtivo
[5]
. Uma razão mais para construir a
solidariedade de classe
entre operários do sector privado, vítimas das
deslocalizações, e funcionários do sector público,
alvo das privatizações.
Romper com os tratados supranacionais, nacionalizar as empresas lucrativas que
façam despedimentos, bloquear as privatizações e
renacionalizar os serviços privatizados
, eis algumas reivindicações susceptíveis de reconstituir
a consciência de classe, desestruturada pelo reformismo.
Afinal de contas, «
nada se perde, nada se cria, tudo se transforma
», como disse o grande materialista Lavoisier.
A luta de classes muda de forma, mas o seu conteúdo essencial, a
exploração capitalista e a resistência à
exploração capitalista, continua
. É evidente, pois, o contra-senso sinistro dos nossos
mutantes
[nr]
que tomam uma mudança de forma por uma mudança de natureza do
capitalismo. A questão cada vez mais central é, na realidade, a
da propriedade capitalista, ou não, dos grandes meios de
produção (e não «uma outra utilização
do dinheiro», dos «bons critérios de gestão», etc,
como dizem os nossos ideólogos mutantes, que nos mergulharam
teoricamente duzentos anos atrás, para justificar as
privatizações da «esquerda»!). Portanto, os militantes
do Renascimento Comunista devem defender simultaneamente os
princípios fundamentais do comunismo
, que, podemos dizê-lo com segurança, continuarão na ordem
do dia tanto tempo quanto a exploração capitalista subsista, e
analisar as
novas formas que assume a luta de classes
em função da evolução das forças produtivas
e das relações de força entre classes.
3º Classe social, nação, Europa e mundialização
A favor ou contra a nação? A favor ou contra a Europa? A favor
ou contra a mundialização? Estas questões têm de
ser reformuladas à luz do conceito da luta de classes.
Por um lado, «a» nação, «a» Europa e
«o» mundo são abstracções ocas, se não se
puser a questão leninista do
conteúdo de classe
. Que «nação»? Que «Europa»? Que
«mundo»? Escolher a nação contra a Europa, ou a Europa
contra a mundialização «americana», ou o
«mundo» contra «a» nação, etc, é
fatalmente fazer o jogo das forças burguesas que querem impedir que os
proletários actuais equacionem as questões sociais em termos de
classe. Hoje, por exemplo, o grande capital é, ao mesmo tempo, pela
mundialização financeira (OMC, FMI e seus braços armados,
NATO, etc), pela «Françalemanha», pela Europa de Maastricht e
pela «França ganhadora», mantendo no seu jogo o nacionalismo
neofascista de um Le Pen («repor a França a trabalhar»
diz Raffarin, fazendo lembrar Pétain). E estes sinistros
indivíduos condenam não só os movimentos antimundialistas
que, com algumas insuficiências, criticam a globalização
financeira, mas também a Europa das lutas (que a CES tudo faz para
fragmentar) e a França dos trabalhadores, que eles rejeitam com um
desprezo de classe a raiar o racismo («
o francês entrega-se ao seu desporto favorito: o medo
» declara Francis Mer).
Pelo contrário, os militantes abertamente comunistas e os progressistas
consequentes associam a bandeira vermelha do internacionalismo
proletário à bandeira da nação, defendem
simultaneamente a mundialização da resistência popular, a
Europa das lutas operárias e a nação republicana, tudo
numa perspectiva de transformação socialista da França e
de caminhada de toda a humanidade para a sociedade sem classes.
A prática demonstra que
o conceito de luta de classes continua plenamente operativo nas nossas lutas
actuais.
Sem ele, os progressistas estão condenados a «disparar contra
si», desunindo as forjas da alternativa anticapitalista (lutas
reivindicativas, combate anti-racista, lutas «republicanas»,
acção «antimundialista»), sem conseguirem
fazê-las convergir contra a dominação de classe nos seus
diferentes níveis.
Conclusão
Para unir o patriotismo republicano ao internacionalismo proletário,
para vencer ao mesmo tempo o nacionalismo fascista e o eurocapitalismo, temos
de assumir, sem complexos, o
ponto de vista da luta de classes
que está no cerne da doutrina marxista-leninista.
Nada de mais moderno, nada de mais federador e nada de mais
vital !
________
NOTAS
1- Conferência de Georges Gastaud, em Liévin, em 15/Fev/04, a
pedido
do PRCF 62. Ver o sío de teoria da
Iniciativa Comunista
,
mensário do
Pólo do Renascimento Comunista em França.
Esta conferência existe em vídeo e está disponível
no Cercle Lénine de Culture Populaire, 199 rue Zola, 62800 Liévin.
2- Durante as ocupações de fábricas da Frente Popular ou de
Maio de 68, os trabalhadores, dirigidos pelo PCF e pela CGT, cuidavam
ciosamente dos seus instrumentos de trabalho: «um dia isto será
nosso» pensavam. Imagine-se o desespero em que se encontram hoje
alguns operários despedidos que, da Cellatex à Métaleurop,
ameaçam fazer ir pelos ares a sua fábrica ou lançam num
canal as máquinas de produção!
3-A noção de «coesão social» numa sociedade de
classes não é mais do que uma ilusão. Que uma tal
noção seja empregada pela CES ou pela CFDT não tem nada de
surpreendente. O que é inquietante é vê-la agora aceite,
sem discussão, na imprensa dos sindicatos de luta!
4- Princípio que A. Croizat, ministro comunista da
Libertação, tomou como base da Segurança Social.
5- Cf. o número especial da revista
Etincelles
sobre a actualidade do marxismo na economia.
[nr] Por 'mutantes' o autor designa a actual direcção do PCF.
Tradução de MJS.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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