por Valentin Katasonov
[*]
O mundo está a entrar numa fase caótica. Recentemente tem havido
afirmações de que os EUA começaram a criar
globalmente um "caos administrável". Mas os acontecimentos no
Médio Oriente afastaram a ilusão de que o instigador deste caos
seja capaz de administrá-lo. E o caos
não administrável
pode muito em breve surpreender o mundo da finança internacional. Os
EUA são mais uma vez culpados de terem liderado o caos financeiro
não administrável e os US$3 mil milhões da dívida
da Ucrânia à Rússia servirão como detonador do
processo.
Não é coincidência que os problemas estejam a agravar-se
quanto àquela dívida. Washington está deliberadamente a
explorar esta dívida a fim de tentar infligir dano à
Rússia. A
destruição final da ordem financeira global que foi estabelecida
durante a conferência internacional de Bretton Woods em 1944 poderia
acabar por ser um dano colateral desta política anti-russa.
Os EUA conceberam o sistema monetário de Bretton Woods, a seguir
infligiram-lhe o dano inicial durante a década de 1970 quando Washington
cessou de trocar dólares por ouro. O ouro foi desmonetizado, o mundo
transitou para o papel-moeda e as taxas de câmbio fixas foram eliminadas.
Os mercados financeiros, bem como a especulação financeira,
começaram a expandir-se a um ritmo frenético, o que reduziu
significativamente a estabilidade da economia global e da finança
internacional. O caos financeiro já estava à mão, mas
naquele tempo ainda a um nível administrável. O Fundo
Monetário Internacional, criado em Dezembro de 1945, continuava a ser a
ferramenta para administrar a finança internacional.
Mas hoje somos testemunhas oculares da destruição do FMI, a qual
ameaça ampliar a instabilidade da finança global em meio ao caos
financeiro global. O papel do FMI na manutenção da relativa ordem
financeira no mundo consistia não só em emitir empréstimos
e créditos para países específicos com também no
facto de que actuava como a autoridade final, escrevendo as regras do jogo para
mercados financeiros globais. Depois de os Estados Unidos o principal
accionista do FMI (controlando aproximadamente 17% do poder de voto dentro do
fundo) arrastarem o Fundo para os jogos que fazia na
Ucrânia, aquela instituição financeira internacional foi
forçada a romper as próprias regras que havia desenvolvido e
aperfeiçoado ao longo de décadas. As recentes decisões do
Fundo
criaram um precedente para um jogo sem regras e é quase
impossível calcular as suas consequências para a finança
internacional.
A mais recente decisão deste tipo foi
emitida
em 8 de Dezembro. Ela foi cronometrada de modo a corresponder com a data de
maturidade final da dívida de US$3 mil milhões da Ucrânia
à Rússia 20 de Dezembro. Mas se Kiev falhar no reembolso
do que deve, isto quase automaticamente levará a um incumprimento
soberano em plena escala e portanto o FMI, de acordo com as regras que foram
estabelecidas quase desde o nascimento do Fundo, não mais terá o
direito de fazer empréstimos à Ucrânia. A fim de continuar
a transferir fundos do empréstimo do FMI à Ucrânia (em
Abril de 2015 fora assinado um acordo para o empréstimo de US$17,5 mil
milhões), Washington ordenou ao Fundo que reescrevesse as regras de modo
a que mesmo se Kiev incumprir o que deve a Moscovo o FMI ainda possa emprestar
dinheiro à Ucrânia. O Fundo sempre submisso acatou
esta ordem de comando aparentemente não acatável.
Aleksei Mozhin, o director do FMI para a Federação Russa,
informou que em 8 de Dezembro o Conselho de Administração do
Fundo aprovou reformas que permitiriam emprestar a devedores mesmo no caso de
um incumprimento de dívida soberana. Toda a gente sabe perfeitamente bem
que o Fundo tomou uma decisão tão extraordinária a fim
especificamente de sustentar o regime moribundo em Kiev e alfinetar a
Rússia. Falando a repórteres, o ministro das Finanças
russo, Anton Siluanov,
declarou
: "A decisão de mudar as regras parece apressada e enviesada. Isto
foi feito unicamente para prejudicar a Rússia e legitimar a
possibilidade de Kiev não pagar suas dívidas".
Tem havido poucas decisões de natureza tão radical na
história do FMI. Em 1989, por exemplo, o fundo ganhou o direito de fazer
empréstimos a países mesmo que os receptores daqueles fundos
não houvesse pago dívidas a bancos comerciais. E em 1998 foi
permitido ao Fundo emprestar a países com passivos pendentes sobre
títulos soberanos mantidos por investidores privados. Contudo, o
reembolso de dívidas de credores soberanos sempre foi um dever sagrado
para os clientes do FMI. Os credores soberanos são os salvadores de
último recurso, os que vêm em ajuda de estados que são
deixados de lado por prestamistas e investidores privados.
Sob as regras do FMI, passivos de um estado para com um credor soberano (isto
é, um outro estado) são simplesmente tão
"sagradas" quanto passivos para com o próprio Fundo. Isto
é, por assim dizer, uma pedra angular da finança internacional. E
aqui vemos como, numa reunião ordinária do Conselho de
Administração do FMI, esta pedra angular foi precipitadamente
retirada do edifício da finança internacional. O ministro das
Finanças russo, Anton Siluanova, chamou
atenção particular
a este aspecto da decisão do Conselho de Administração:
"As regras para financiar os programas do Fundo existiram durante
décadas e não mudaram. Credores soberanos sempre tiveram
prioridade sobre credores comerciais. As regras enfatizavam o papel especial de
credores oficiais, o que é especialmente importante em tempos de crise,
quando prestamistas comerciais deixam países de lado, privando-os do
acesso a recursos".
A postura submissa do Fundo e a audácia do seu principal accionista (os
EUA) pode ser vista no modo como a decisão de 8 de Dezembro foi
rapidamente carimbada, ao passo que durante cinco anos Washington bloqueou
esforços para reformar o Fundo (rever as quotas dos estados membros e
duplicar o capital do Fundo). De acordo com Siluanov, dada a decisão de
8 de Dezembro do Conselho de Administração do FMI, "a
relutância dos EUA para tratar a questão da
ratificação do acordo para reforçar o capital do FMI
parece particularmente chocante, especialmente quando o capital seria muito
útil para resolver problemas de dívida da Ucrânia".
Em 10 de Dezembro foi
publicado
um relatório de 34 páginas contendo pormenores da reforma que
fora aprovada em 8 de Dezembro pelo Conselho de Administração do
FMI. De acordo com esse documento, algumas daquelas mudanças aplicam-se
à dívida para com credores soberanos que não é
coberta pelos acordos do
Clube de Paris
. Contudo, um país devedor deve cumprir um certo número de
condições a fim de manter o seu acesso a fundos do FMI, incluindo
"fazer esforços de boa fé" para reestruturar sua
dívida.
A referência a "esforços de boa fé" levanta um
ponto muito interessante. Até agora Kiev não fez de todo
quaisquer esforços enquanto estado devedor. As declarações
do primeiro-ministro ucraniano Arseniy Yatsenyuk não contam. Estas
não foram tentativas como "esforços de boa fé"
mas, ao invés, ultimatos feitos à Rússia, um credor
soberano: por outras palavras, ou você se associa a
conversações de reestruturação que estamos a
efectuar com nossos credores privados ou então não lhes pagaremos
nada. Também é típico que estas declarações
não tenham sido feitas através dos canais oficiais de
correspondência mas sim apresentadas verbalmente na televisão.
Encontrei uma declaração de Yatsenyuk particularmente comovente,
quando afirmava que não recebera quaisquer propostas formais
respeitantes à dívida da Ucrânia.
Isto é algo novo nas relações intergovernamentais em geral
e nas relações internacionais monetárias e de
crédito em particular. Quase desde o nascimento do FMI existiu a regra
(e ainda existe) segundo a qual: a) qualquer iniciativa para alterar os termos
originais de um empréstimo deve vir do devedor, não do credor; e
b) aquela iniciativa (pedido) deve ser emitida por escrito e enviada ao credor
através de canais oficiais.
Se o sr. Yatsenyuk está inconsciente destas regras, talvez os
responsáveis do FMI pudessem explicar-lhe. Contudo, nada
disto foi feito.
Vamos retornar à decisão de 8 de Dezembro. Quer Kiev queira ou
não, se é para continuar a obter crédito através do
Fundo a Ucrânia deve pelo menos mostrar evidência de uma tentativa
de negociar com o seu credor, isto é, com Moscovo. Ela deve apresentar
evidência de "um esforço de boa fé", por assim
dizer. E no que deveria consistir esta evidência? Ela deve ter pelo menos
três passos: a) um pedido formal para começar
conversações para rever os termos do empréstimo deve ser
minutado e enviado ao credor; b) o devedor deve receber uma resposta oficial do
prestamista; e c) se o credor concordar, devem ser efectuadas
negociações para rever os termos.
Naturalmente as negociações de Kiev com os seus credores privados
quanto à reestruturação da sua dívida
começaram quase imediatamente depois de ter sido assinado o mais
recente acordo de empréstimo do FMI, isto é, elas perduraram de
Março de 2015 até o fim de Agosto de 2015. O processo de
negociação perdurou até Outubro, o que significa que a
reestruturação da dívida arrastou-se durante seis meses.
Não esquecer que o prazo final para reembolsar a dívida à
Rússia (20/Dez) cai num domingo. Resta muito pouco tempo a Kiev para
demonstrar "um esforço de boa fé" e mesmo na melhor das
hipóteses possivelmente não poderia efectuar mais do que os
primeiros dois dos três passos que listei. Já não há
tempo para o terceiro passo e o mais importante.
Será muito interessante ouvir o que o FMI tem a dizer na segunda-feira,
21/Dez. Será ele capaz de descobrir evidência de
"esforços de boa fé" de Kiev? Ou esperará por
uma sugestão do seu principal accionista? Embora aquele accionista
principal não seja famoso pelo seu refinamento mental, ele compensa a
sua estupidez com o descaramento absoluto.
O dia 21/Dez promete ser o mais vergonhoso da história do FMI e poderia
ser seguido pela morte desta instituição financeira
internacional. Infelizmente, o FMI ainda seria capaz de explodir o sistema
financeiro global antes da sua própria morte, utilizando a dívida
da Ucrânia à Rússia como detonador. Naturalmente, é
Washington que está realmente a jogar o jogo o Fundo é
meramente um brinquedo nas suas mãos. Mas por que Washington desejaria
que isto acontecesse? Falando termos estritos, nem sequer é Washington
que quer isto, mas os "mestres do dinheiro" (os accionistas
principais do Federal Reserve) e todos os responsáveis conectados com a
Casa Branca, o Departamento do Tesouro e outras agências do governo que
estão na sua folha de pagamento. Os mestres do dinheiro têm sido
forçados a defender o enfraquecimento do dólar utilizando
ferramentas bem provadas a criação do caos fora das
fronteiras da América. Qualquer espécie de caos funcionará
político, militar, económico ou financeiro.
Após a decisão de 08/Dez/2015 do Conselho de
Administração do FMI, a qual foi tomada a fim de sustentar o
regime em bancarrota de Kiev e unicamente com o propósito de prejudicar
a Rússia, alguns peritos financeiros exprimiram cautelosamente a
opinião de que em breve haverá pouca razão para a
Rússia permanecer no FMI. Só posso endossar esta
posição, embora a retirada da Rússia do FMI fosse uma
pré-condição necessária mas insuficiente para
reforçar a soberania russa. A Rússia ainda deve criar uma defesa
confiável contra o caos financeiro global, o qual, depois de 21/Dez,
rapidamente se tornará não administrável.
17/Dezembro/2015
Ver também:
The IMF Changes its Rules to Isolate China and Russia
, Michael Hudson
IMF Dithers as Ukraine Defaults on Russia Loan
[*]
Professor, membro associado da Academia Russa de Ciência
Económica e Negócios.
O original encontra-se em
www.strategic-culture.org/...
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.