O ataque à BBC:
A verdade oficial é uma mentira

por John Pilger [*]

Blair e o jornalista Andrew Gilligan. Durante a guerra contra o Iraque, o programa BBC's Today enviou Andrew Gilligan a Bagdad. Os relatos de Gilligan foram diferentes de qualquer coisa que a BBC houvesse difundido. Eles contradiziam a linha oficial anglo-americana acerca da "libertação" e tornavam claro que, para um grande número de iraquianos, a invasão e ocupação eram pelo menos tão más como a vida sob Saddam Hussein.

Isto era heresia, o que levou Alastair Campbell a por Gilligan no alto da sua lista de "desvairados", como os descreveu Greg Dyke. O "crédulo Gilligan" era a expressão abusiva de Campbell, o que significava que o repórter era colocado numa categoria especial. Mas as conclusões de Gilligan eram correctas, tal como o seu relato posterior de que o governo havia tornando mais "atraente" ("sexed up") o dossier do Iraque. Não há libertação no Iraque. Há, sim, uma viciosa ocupação colonial. O governo tornou atraente não apenas um, mas dois dossiers.

Os ataques de Campbell recordam aqueles orquestrados contra outros jornalistas que se distinguiram pelo afastamento do roteiro pré-estabelecido. Por contar a verdade acerca da carnificina na guerra favorita da rainha Vitoria, a da Criméia, o correspondente do Times William Howar Russell foi amaldiçoado como traidor. Por revelar o custo humano do bombardeamento americano do Vietnam do Norte em 1965, James Cameron foi caluniado como "tolo em relação ao comunismo".

"Quando o chamam de tolo", contou-me Cameron, "do que eles estão realmente a queixar-se é de que você não é o tolo deles". A BBC comprou os direitos exclusivos do filme de Cameron, e desde então suprimiu-o, assim como suprimiu The War Game , brilhante ficção de Peter Watkins acerca da Grã-Bretanha sob ataque nuclear, da mesma forma como suprimiu ou alterou um sem número de trabalhos que procuravam explicar a guerra britânica na Irlanda do Norte, tal como Article 5 , peça de Brian Phelan sobre a tortura, e o filme City on the Border , de Colin Thomas. Thomas recebeu ordens dos chefes da BBC para cortar uma cena que mostrava uma pedra tumular onde se lia: "Assassinado por soldados britânicos no Domingo Sangrento". Ele recusou-se, e demitiu-se.

Um advogado chamado Brian Hutton, representando o Ministério da Defesa, é recordado desde o inquérito judicial sobre o Domingo Sangrento, em 1973, pela sua resposta ao investigador de homicídios, o qual ousara sugerir que os soldados não tinham justificação para atirar nas 13 pessoas mortas. "Não cabe a você ou ao júri", disse Hutton, "exprimir tais visões vastas, particularmente quando um dos mais eminentes juizes passou 20 dias a ouvir provas e chegou a uma conclusão muito diferente". O eminente juiz era Lord Widgery que, como sabemos agora, ainda administrou outro grosseiro abuso da lei. No obsequioso Hutton [1] , Blair tinha o homem certo.

O paralelo do Iraque com a Irlanda é instrutivo. Dentre aqueles actualmente mencionados como possível novo presidente da BBC está John Birt, o antigo director geral tornado lord por Blair. Durante os fins da década de 1980, Birt decretou que os pontos de vista dos representantes republicanos irlandeses só podiam ser difundidos se as suas vozes fosse imitadas por um actor. Isto acabou por ser abandonado depois de um grupo de jornalistas (eu próprio inclusive) levarmos tal abuso da liberdade de expressão ao Tribunal Europeu.

A presente exumação de Birt pode ser uma piada, mas duvido. Pois de muitas maneiras Birt era uma autêntica voz da BBC. Ele era um campeão daquilo que os mais pomposos na BBC chamam de "rigor". Ele exigia disciplina corporativa e construiu uma burocracia kafkiana para aplicá-la. Will Wyatt, um dos executivos de Birt, escreveu o seguinte acerca do actual director-geral, Mark Byford, outro homem de Birt: "Espero dele... que restaure o nível de rigor que existiu sob John Birt".

Ah, o "rigor". Nem uma única vez Blair convidou-o a contar o custo humano da sua política de sanções ao Iraque, deixando de lado a sua invasão. A Alastair Capbell foi permitido afastar-se da Newsnight sem desafios sérios à sua ridícula "justificação" de Hutton. Como é que este rigor é encarado de longe? Na Australian Financial Review de 31 de Janeiro, Brian Toohey, o mais destacado jornalista investigador do país, lembrou que em 23 de Setembro de 2002 Panorama afirmara ter "prova insofismável" das armas de destruição em massa do Iraque. "Não havia tal coisa", escreveu Toohey. "Ao invés disso, apresentou uma carga de tolices sem sentido que reforçavam a pressão para a invasão subsequente. Uma das fontes primárias do programa foi um iraquiano, o qual era apresentado como "crível". O programa lançou o anzol, a linha e o lastro na sua pretensão de saber que existia um laboratório secreto de armas biológicas debaixo de um grande hospital em Bagdad [e] no princípio deste mês Panorama teve a ousadia de atacar uma notícia da rádio BBC (de Gilligan), a qual correctamente relatava preocupações entre responsáveis acerca da precisão dos dossiers do governo britânico sobre as WMDs do Iraque".

Aquela edição de Panorama não era atípica da cobertura da BBC da preparação para a invasão, e a "guerra ao terror", ou na verdade a qualquer guerra combatida ou apoiada pelo establishment britânico que se recorde. Nada disto é conspiratório; é uma tradição venerável. Seguindo o exemplo estabelecido pelo fundador da BBC, John Reith, que secretamente escreveu propaganda para o governo conservador britânico de Stanley Baldwin durante a Greve Geral, o santificado princípio da imparcialidade é invariavelmente suspenso quando o establishment é ameaçado, especialmente quando ele decide seguir a sua tradição imperial e juntar-se aos Estados Unidos na subversão de outras nações por meios violentos ou outros. Ao canalizarem e ampliarem as agendas estabelecidas, os devotos praticantes da "imparcialidade" minimizam a culpabilidade de governos, primeiros-ministros e seus aliados.

Não foi surpreendente que um recente inquérito alemão acerca das principais coberturas noticiosas do Iraque no mundo todo descobrisse que a BBC deu apenas 2 por cento do espaço às demonstrações dos dissidentes anti-guerra — até mesmo menos do que noticiários americanos — muito embora os manifestantes provavelmente representassem a maioria do povo britânico.

Este é o "rigor" cujo recente lapso Wyatt e Byford lamentam. É o rigor, como colocou Robert Louis Stevenson, "dos isentos fingidos, dos lobos com peles de cordeiro, dos que sorriem com afectação honesta quando actuam desonestamente". É o rigor do respeito falso por uma elite corrupta, "daquela combinação de mediocridade e ambição: de morte para o espírito", como escreveu o historiador Norman Stone.

Sempre houve honrosas excepções, e a emergência de uma delas explica porque a gang de Blair ficou histérica quando Andrew Gilligan contou a verdade sobre a sua "libertação" do Iraque e de uma fraude destinada a encobrir a sua violência — uma violência que ceifou 55 mil vidas, incluindo 9600 civis: uma violência que mata ou fere 1000 crianças iraquianas por mês devido às bombas cluster não explodidas que os militares britânicos espalharam em áreas urbanas: uma violência que mais uma vez contaminou grande parte do Iraque com urânio. Este crime, e só por si, é a única questão a clamar um relato rigoroso e genuíno, não simplesmente uma "investigação" por uma outra parte do establishment que arranje uma saída para o responsável.
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[*] Jornalista, escritor e realizador de cinema, australiano. Autor de The New Rulers of the World .

[1] O curriculum de lord Hutton, desde o Domingo Sangrento até ao encobrimento no caso Pinochet e às mentiras da guerra do Iraque, pode ser apreciado em: http://www.indymedia.org.uk/en/2004/01/284545.html .

O original encontra-se em http://pilger.carlton.com/print . Tradução de JF.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

14/Fev/04