Urânio empobrecido
As mortes silenciosas de militares italianos

por Stefano Citati [*]

Há militares italianos a morrer no silêncio. São vítimas de doenças de guerra. "Síndroma do Golfo", "Síndroma dos Balcãs"... agora, talvez uma "nova síndroma do Golfo". Dois falecimentos este mês, o último dos quais a 13 de Julho. Consta que no hospital militar de Celio, em Roma, desde há algumas semanas estão internados num pavilhão especial cerca de vinte militares que teriam interrompido a missão no Iraque devido ao surto de patologias ligadas ao urânio empobrecido. As associações de tutela dos militares têm também uma longa lista de jovens soldados que, em toda a Itália e à sua custa, se encontram em tratamento de várias formas tumorais.

Desde que rebentou o escândalo do urânio empobrecido, no Inverno de 2000-2001, haveria já cerca de trinta mortes imputáveis à exposição às poeiras daquele que os americanos denominam desde 1991 o "metal da desonra". E seriam já quase 300 os militares com doenças "suspeitas". É para tentar conter esta avalancha que a Defesa está prestes a iniciar um projecto que deveria pôr a palavra fim à diatribe sobre os perigos do urânio empobrecido. E que segundo as associações de tutela dos militares afinal corre o risco de sepultar definitivamente a verdade.
 
As mortes dos militares atingidos por estas síndromas tumorais são todas análogas, mas até agora não foram reconhecidas oficialmente. Estas enfermidades levam à morte, mas a morte não leva ao reconhecimento da causa de serviço, a uma indemnização pelo empenho nas missões de paz que neste decénio – da Somália em diante – têm envolvido dezenas de milhares de militares italianos.

Não foi suficiente a Comissão Mandelli, instituída há mais de três anos e presidida pelo hematologista romano, para estabelecer uma conexão certa entre DU – depleted uranium , o urânio empobrecido de que são compostos os projécteis, e as couraças, usadas principalmente pelos americanos. Mas a comissão também não pôde excluir totalmente uma relação entre doenças e exposições às poeiras: a verdade é que instituiu um vasto programa de exames para todos os militares que estiveram (e ainda estão) em serviço no teatro de operações balcânico.

Mais de 40 mil pessoas que de 4 em 4 meses durante pelo menos três anos – e pelo menos uma vez por ano nos dois anos seguintes – tiveram de ser submetidas a exames que deveriam confirmar o seu bom estado de saúde com o passar do tempo. Estes exames periódicos afinal não estão a ser efectuados com a regularidade e no número estabelecido. Segundo fontes médicas das Forças Armadas os hospitais militares – concentrados sobretudo no norte – não estão em condições de realizar todas as análises: falta o pessoal e falta a possibilidade de manter sob controlo tão vasta população a examinar.

A percentagem de testes realizados calcula-se por volta dos 50 por cento. E no entanto foi a própria comissão Mandelli, apesar de criticada pelos métodos estatísticos estabelecidos para a obtenção das taxas de patologias entre os militares, a afirmar que se verificara um número percentualmente elevado em relação à média de linfomas Hodgkins (formas tumorais dos aparelhos glandulares) nos grupos examinados.

Ao cabo de três anos de procedimentos não respeitados, com exames não feitos ou feitos com atraso, sem ter em conta as tabelas, agora os vértices militares teriam decidido transferir o que resta do programa de exames feitos pelos hospitais militares para os civis. Assim, os custos dos exames (que variam de poucos euros a algumas dezenas), multiplicar-se-ão – num total de várias dezenas de milhões por ano – tal como subirão os tempos de espera dos resultados, pois as estruturas públicas dificilmente conseguirão respeitar os tempos prescritos. Deste modo, dizem alguns especialistas, perde-se a eficácia de todo o processo. A única solução, sublinham, seria a de "reunir todos os doentes num único hospital e submetê-los a exames contínuos e profundos".

PROJECTO SIGNUM

E é talvez para obviar à impossibilidade de cumprir as recomendações da comissão instituída em 2001 que o governo lançou um novo projecto: Signum. Iniciais de "Studio di Impatto Genotossico nelle Unità militari". Financiado através da lei de 12 de Março de 2004, n° 68 com o artigo 13-ter (publicado na Gazzetta ufficiale de 18 de Março) que autoriza "a despesa de 1 175 330 no ano de 2004 (...) para o estudo de levantamento dos níveis de urânio e de outros elementos potencialmente tóxicos".

Quem ilustrou as modalidades e tempos foi depois o general Michele Donvito director geral da sanidade militar durante a audição de 29 de Junho no parlamento. Em mil militares, escolhidos na base do voluntariado, efectuar-se-ão exames antes do envio para o Iraque, considerado "ambiente significativamente degradado" (em alternativa haveria os Balcãs); análises que serão repetidas com os sujeitos, todos munidos dos equipamentos de protecção de agentes nucleares, químicos e bacteriológicos (Nbc), nos teatros de operações e ao regresso dos voluntários à pátria.

Recolhas de urina, sangue e cabelos que deveriam permitir aos diversos laboratórios militares e civis envolvidos no programa uma observação completa de eventuais "elementos potencialmente tóxicos" (urânio, arsénio, cádmio, níquel – estes últimos metais contidos nas baterias de armamentos e equipamentos, ndr), mas talvez até os “cocktails" de vacinas injectados antes das missões e que há quem os considere como possíveis responsáveis do surto de patologias tumorais.

O Signum deveria arrancar em meados de Agosto e daria os primeiros resultados "no prazo de 18 meses". Deveria durar dez anos, não se centraria apenas no urânio mas também nos outros agentes ambientais potencialmente nocivos, e permitiria criar uma "referência para todo o consenso científico internacional".

Para as associações de tutela dos militares o Signum pelo contrário poria uma "pedra tumular" sobre as possibilidades de verificar a verdade sobre o urânio e as outras possíveis causas das doenças que estão a matar tantos militares. Os pressupostos da investigação são considerados disparatados, a ponto de se tornarem ineficazes, se não mesmo falseados, todos os resultados. Não se pode considerar cientificamente relevante – observam os expoentes das associações – um grupo de militares dotado de toda a protecção, enquanto se salienta que no passado (e a prática duraria ainda no Iraque) o pessoal militar praticamente nunca seguiu as medidas de segurança determinadas pela Defesa a partir de 22 de Novembro de 1999 (os americanos adoptaram-nas desde 14 de Outubro de 1993).

A sanidade militar – que tem insistido sempre que não há nenhuma ligação entre a exposição ao urânio e as patologias da "Síndroma do Golfo/Balcãs" – está segura de que graças ao Signum poderá confirmar definitivamente as suas convicções. Mas então, interrogam-se diversos parlamentares e até militares, por que razão o estudo só se efectua com sujeitos dotados do equipamento Nbc? E porquê, na ficha de informação que os voluntários têm de preencher, há um ponto sobre "interrupções espontâneas de gravidez, patologias dos nascidos", que parece confirmar os conselhos que desde há tempos se dão a quem parte para certos teatros de guerra: abster-se de procriar nos três anos seguintes ao regresso da missão?

Porque é que em tempos de restrições económicas, nas vésperas da reforma radical de um exército só de profissionais, que deveria ser capaz de oferecer perspectivas atraentes, se decide investir uma quantia considerável (se a multiplicarmos pelos dez anos de duração do projecto) em vez de a destinar, como pediram alguns parlamentares, a instituir um fundo que garanta as causas de serviço a todos os militares que adoeçam no "cumprimento do seu dever"?

É o que perguntam alguns dos militares que sofrem de patologias todas análogas, quase sempre tumorais, e que nas suas casas ou nas camas dos hospitais, socorridos por familiares ou por camaradas, empenhados em tratamentos longos e caríssimos, prontos a tornar-se cobaias da investigação científica, esperam que lhes seja reconhecido estarem a morrer de um mal que os atingiu durante o serviço, ao patrulharem uma área contaminada, ao limparem armas ou utensílios com dissolventes químicos, ao fazerem testes com armas em polígonos militares (na Sardenha, mas não só), onde nos últimos decénios teriam sido testados explosivos até por conta dos outros países da NATO (e portanto também americanos).

Alguns doentes interrogam-se porque é que outros nas mesmas condições que eles não falam, mas antes respondem recordando a reserva e a evasiva, devidas ao espírito de corpo, aos laços com as instituições, tanto ou ainda mais fortes que o medo, que leva a calar e a ter presente que mesmo fazendo parte da "força ausente", ou seja, com baixa por doença mas não desmobilizados, se está na mesma submetido ás regras do ordenamento militar.

Notícias portuguesas relacionadas em:
Iraque - Receios de exposição ao urânio empobrecido. GNR admite haver ainda militares sem testes feitos
GNR - Há militares vindos do Iraque ainda sem exames feitos. Urânio alarma famílias

[*] Do La Reppublica.it .

O original encontra-se em http://www.uruknet.info/.?p=4343 .
Tradução de José Colaço Barreiros.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

02/Ago/04