Sessenta anos depois
A reserva de soberania e o futuro de Portugal
por João Ferreira do Amaral
[*]
A União Europeia não é um mero prosseguimento da CEE sob
outro nome. A União é algo de novo e o seu estabelecimento, em
1992, com a ratificação do tratado de Maastricht, representou um
corte em relação ao que tinha sido até aí a
evolução da integração europeia ocidental
pós-II Guerra Mundial.
1. O modelo federal-neoliberal europeu
Comemora-se este mês o 60.º aniversário do Tratado de Roma.
Ou, como muitos acrescentam, os 60 anos da União Europeia, anteriormente
designada como Comunidade Económica Europeia (CEE).
Nada mais errado que este acrescento. De facto, a União Europeia
não é um mero prosseguimento da CEE sob outro nome. A
União é algo de novo, e o seu estabelecimento, em 1992, com a
ratificação do tratado de Maastricht, representou um corte em
relação ao que tinha sido até aí a
evolução da integração europeia ocidental
pós-II Guerra Mundial. Por isso, mais do que a comemoração
dos 60 anos da CEE, o que deveríamos estar a assinalar (não a
comemorar) são os 25 anos do Tratado de Maastricht.
Foi a partir deste tratado que a União entrou numa via federalista
induzida pelo objectivo do alargamento do mercado tanto no que respeita ao
mercado interno europeu como no que decorre do avanço da
globalização económica e financeira que, surgida ainda nos
anos oitenta se acelerou fortemente nos anos noventa do século passado.
A via federalista assentou em primeiro lugar na criação do euro,
que será efectivada em 1999 e desenvolver-se-á mais tarde, em
2009, com o chamado Tratado de Lisboa, que instituiu uma união estranha,
uma espécie de pseudo federalismo subordinado a um Estado a
Alemanha , por vezes acompanhado por um parceiro menor a
França.
Este caminho que as instituições europeias seguiram não
foi mais que uma forma de prosseguir o alargamento dos mercados e de
forçar uma suposta adaptação à
globalização, transferindo todo o impacte desta sobre o factor
trabalho, seja a nível dos salários e direitos sociais, seja ao
nível do emprego.
De facto, as instituições de Maastricht, em particular no que
respeita às instituições da União Económica
e Monetária, estabeleceram a obrigatoriedade de serem seguidas, por
parte do Banco Central Europeu, políticas monetárias
ultraconservadoras e, por parte dos governos, políticas
orçamentais restritivas. A combinação destas duas
exigências tem como consequência que todo o ajustamento
macroeconómico assenta necessariamente sobre o emprego e/ou os
salários e direitos sociais. Não é, pois, de estranhar que
a zona euro seja, desde a sua criação, a zona de maior desemprego
a nível mundial e que o peso dos salários no rendimento nacional
tenha vindo a reduzir-se ao mesmo tempo que as desigualdades se acentuaram.
A imposição deste pensamento único por parte das
instituições de Maastricht exigiu uma perda de soberania dos
estados-membros, de modo a que estes não dispusessem de autonomia para
decidir sobre as políticas de estabilização
económica que pretendessem seguir. O federalismo foi assim um
instrumento muito eficaz para forçar os estados a seguir
políticas macroeconómicas neoliberais, consideradas pelas
propaganda necessárias para reduzir os direitos sociais e os
salários no espaço europeu, única forma dizia-se
de a Europa se poder adaptar à globalização.
Mas não se ficou pelas políticas macroeconómicas a
imposição do modelo federal-neoliberal. A política
europeia de concorrência e de ajudas de Estado foi reforçada e a
jurisprudência do Tribunal de Justiça veio a revelar-se
marcadamente ideológica, também ela subordinada à
visão neoliberal do primado do mercado, forçando os tratados e
impondo uma visão muito restritiva da intervenção do
Estado na economia, com o fito, mais uma vez, de potenciar o alargamento de
mercado em prejuízo de todos os outros valores. Em vez de perseguir as
práticas discriminatórias entre naturais dos diversos
estados que possam decorrer da política económica, o que
é justificado quando existe um processo de integração e
que era a sua tradição, o tribunal tornou-se principalmente, sem
qualquer base nos tratados, um perseguidor da intervenção estatal
na economia.
O modelo federal-neoliberal iniciado com Maastricht cumpriu durante algum tempo
o papel para que tinha sido criado. Foi inclusivamente aprofundado pelo Tratado
de Lisboa e pelo infame Tratado Orçamental que se lhe seguiu. Mas,
quando este entrou em vigor (2013), já o modelo estava em crise. Crise
que se transformou numa crise profunda da União e que justifica que se
encarem todas as opções para o futuro da cooperação
europeia.
2. A reserva de soberania e uma nova cooperação europeia
A cooperação europeia é essencial, uma vez que existem
certos interesses comuns colectivos na Europa que exigem uma gestão
baseada na cooperação entre estados. Por isso, é
perfeitamente aceitável que os estados acordem em respeitar determinadas
regras comuns para prosseguirem da melhor forma esses interesses comuns
colectivos. Mas tal tem de ter um limite. Esse limite é o da reserva de
soberania que cada Estado-membro tem de manter para prosseguir os seus
interesses nacionais e não ficar sujeito ao pensamento único nem
aos interesses de outros estados.
Ora, o que sucedeu desde Maastricht é que essa reserva de soberania foi
violada e os estados, em particular os de menor dimensão, ficaram sem a
autonomia suficiente para poderem prosseguir os seus interesses.
Por isso, o passo fundamental para a criação de uma nova
união ou para a reforma drástica da actual é repor a
reserva de soberania no essencial do que existia antes de 1992. E nesse aspecto
a soberania monetária é a fundamental.
Basta ver o que um país perde quando cede a sua soberania
monetária, como foi o caso de Portugal quando aderiu ao euro, para
verificar como não pode haver sustentabilidade para um país como
membro respeitado da comunidade internacional se não dispuser da sua
soberania monetária. Recordemos os poderes soberanos que o País
perdeu com a entrada no euro.
Perdemos:
instrumentos essenciais da política económica
(política monetária e cambial);
autonomia do Estado em relação aos mercados financeiros e
às agências de rating;
autonomia das decisões orçamentais e com isso grande parte
da soberania em geral;
controlo do sistema financeiro por ter deixado de existir um prestamista
de última instância nacional (função anteriormente
exercida pelo Banco de Portugal);
possibilidades de o Estado controlar sectores essenciais para a
independência nacional.
A pertença ao euro um dos maiores desastres da nossa
história tem de ser revertida como primeiro passo fundamental
para repor a reserva de soberania. Por isso, é urgente que a nova
união defina um conjunto de procedimentos para a saída de um
país da zona euro.
Por outro lado, essa nova união deve assentar num tratado
[NR]
que substitua o modelo federal-neoliberal e que respeite sem
subterfúgios a reserva de
soberania de cada Estado.
A questão da reserva de soberania é nos tempos actuais a mais
importante que o País tem de enfrentar. Nela se joga a possibilidade de
Portugal continuar a existir.
24/Março/2017
[NR]
Resistir.info não considera que a UE seja reformável por meio de
um tratado e defende a saída da mesma.
Do mesmo autor em resistir.info:
Porque devemos sair do euro
"A saída da zona euro deve ser feita"
[*]
Professor catedrático do ISEG.
O original encontra-se em
www.abrilabril.pt/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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