Jugoslávia, a primeira guerra da globalização
BOMBAS PARA A PAZ
Durante o Inverno de 1997-1998, o UÇK anunciou o início da
batalha pela unificação do Kosovo com a Albânia,
intensificando os seus ataques contra polícias e civis. Perante a
imprensa em Pritina, e depois em Belgrado, em 23 de Fevereiro de 1998, o
representante dos Estados Unidos para a antiga Jugoslávia, Robert
Gelbard, declarou que o UÇK era "um grupo terrorista sem qualquer
dúvida" e "condenou fortemente" as actividades
terroristas no Kosovo. Quatro dias depois, o UÇK matou quatro
polícias numa emboscada. Então Belgrado começou a fazer
aquilo que o governo dos Estados Unidos teria feito em caso semelhante: esmagar
sem piedade os insurrectos "terroristas".
Durante o Verão de 1998, as forças de segurança
sérvias prosseguiram operações clássicas de
contra-insurreição, visando retomar o território ocupado
pelo UÇK. Washington distanciou-se progressivamente da
descrição feita por Gelbard do UÇK como um "grupo
terrorista". Numa conferência de imprensa no Pentágono, em 29
de Junho de 1998, um porta-voz explicou que "a secretária de Estado
determina um procedimento especial quando uma organização
é 'organização terrorista'. Essa
determinação não foi feita no caso do UÇK, é
tudo". Só Madeleine Albright tinha o poder de definir a natureza do
UÇK.
Conduzido pelos Estados Unidos e pela Alemanha, o Grupo de Contacto publicou
condenações de Belgrado e renovou as sanções contra
a Jugoslávia. Esta intervenção das grandes potências
continuava obscura nos seus objectivos e contraditória nas suas
acções. As potências da NATO reiteravam que o Kosovo devia
continuar a ser parte da Jugoslávia... mas acusavam apenas Belgrado
quando os albaneses se recusavam a negociar, insistindo em que só
discutiriam a independência. Sobre a questão política
fundamental o estatuto do Kosovo as potências da NATO
aceitavam a posição de Belgrado, enquanto a condenavam pelo
excessivo uso da força... o que viria a ser o pretexto para a NATO
utilizar uma força ainda mais excessiva para atingir o objectivo
contrário: a separação de facto do Kosovo da
Jugoslávia.
A análise das particularidades históricas e políticas do
conflito do Kosovo tendia a ser substituída pela analogia com a
Bósnia, entendida como oferecendo um "padrão" de
comportamento sérvio que, sem intervenção da
"comunidade internacional", seria repetido no Kosovo. Sem avaliar as
injustiças, os erros e os temores de todos os lados, era mais
fácil explicar tudo pela noção simplista de um
"pérfido ditador", sedento de sangue, que aproveitaria todas
as ocasiões para matar a seu bel-prazer. Era a época da moda dos
"assassinos em série".
Quase ninguém reparou que os Estados Unidos eram "bombardeiros em
série". A cada crise internacional, há sempre entusiastas da
aviação militar que vêem nela uma oportunidade para fazer a
demonstração da superioridade dos Estados Unidos nesse
domínio. Em 1995, a administração Clinton apressou-se a
bombardear os sérvios da Bósnia, em parte para assegurar o
controlo das negociações. Nessa época Richard Holbrooke
sabia bem, como sublinha muitas vezes no seu livro
To End a War,
que Miloevic queria a todo o custo fazer a paz na
Bósnia-Herzegovina para pôr fim às sanções
que estrangulavam a Sérvia. Era Izetbegovic quem queria continuar
a guerra
[58]
.
A justificação para o bombardeamento desejado por Holbrooke
chegou mesmo a tempo, em 28 de Agosto de 1995, coincidindo com a sua chegada a
Paris para se encontrar com Izetbegovic e Muhamed Sacirbey. Uma
horrível explosão no centro de Sarajevo despedaçou dezenas
de transeuntes. Do seu quartel-general em Pale, os sérvios acusaram os
muçulmanos de terem feito o massacre para obterem a
intervenção da NATO. Alguns especialistas militares
britânicos suspeitavam da mesma coisa, e o secretário-geral das
Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali, pediu um inquérito.
"Tudo isso não tinha qualquer importância", segundo
Holbrooke. "O que contava era a possibilidade de os Estados Unidos agirem
de maneira decisiva e persuadirem os seus aliados a participarem no tipo de
campanha aérea maciça de que tantas vezes tínhamos
falado..."
[59]
Esse bombardeamento foi a base da mentira segundo a qual "são
necessárias as bombas para levar Miloevic à mesa das
negociações". Estaria mais perto da verdade dizer que eram
necessárias bombas para levar Izetbegovic à mesa das
negociações. Mas a ideia de que só um bom bombardeamento
poderia fazer avançar a paz visava justificar a primeira ordem de
activação da NATO em 13 de Outubro de 1998. Na véspera
dessa ordem, Miloevic aceitou o cessar-fogo unilateral imposto por
Richard Holbrooke. A sua atitude conciliatória não fez mais do
que confirmar a eficácia das ameaças militares aos olhos daqueles
que, como Madeleine Albright, olhavam a Jugoslávia principalmente como
uma oportunidade para fazer a demonstração do poderio militar dos
Estados Unidos.
No acordo de Outubro, Miloevic aceitou reduzir as forças no
Kosovo para 20 mil homens e conceder livre acesso ao Kosovo a 2000
"verificadores" da OSCE para vigiarem a aplicação da
trégua. Miloevic poderia razoavelmente esperar uma certa
compensação, a saber, que a OSCE e os americanos refreassem as
operações ofensivas do UÇK. O facto de isso não ter
acontecido obrigou Belgrado a defender-se com as forças deixadas no
local
[60]
.
Se o UÇK fosse neutralizado, Rugova e outros dirigentes albaneses
reconhecidos poderiam ousar entrar em negociações para procurar
uma solução de compromisso, conforme com a política
declarada dos Estados Unidos: uma ampla autonomia sem secessão. Mas
nesse preciso momento os Estados Unidos tornaram impossível qualquer
solução negociada ao apoiarem, mais ou menos abertamente, a luta
armada do UÇK.
Ainda antes da criação oficial pela OSCE da Missão de
Verificação no Kosovo (MVK), os Estados Unidos tinham persuadido
o ministro dos Negócios Estrangeiros polaco, Bronislaw Geremek, que
nesse momento ocupava a presidência rotativa da OSCE, a nomear um
diplomata americano para a dirigir. E não um qualquer: o escolhido por
Washington, William Walker, tinha dado as suas provas na gestão violenta
das "repúblicas das bananas" da América Central. Os
europeus queixaram-se em privado dessa ausência de consulta, mas deixaram
passar
[61]
.
A "catástrofe humanitária", anunciada como
consequência inevitável das operações de
repressão sérvias, não se verificou. Os civis que tinham
fugido das aldeias para escaparem aos combates regressaram. Como confirmou mais
tarde o general alemão Klaus Naumann, que tinha participado no ultimato
de Holbrooke, Miloevic "fez na verdade aquilo que lhe
tínhamos pedido". Cumpriu a sua promessa de retirar o grosso das
suas forças, e além disso, no espaço de 48 horas, tinha
confinado cerca de 6000 polícias e soldados aos seus quartéis,
constatou a MVK. Mas ainda mal os sérvios tinham obedecido e já o
UÇK, aproveitando a situação, avançava, tomando
posições ofensivas e provocando os sérvios para que
violassem o cessar-fogo. O comandante do UÇK, Agim Çeku, recordou
mais tarde: "O cessar-fogo foi-nos muito útil. Ele permitiu
organizar-nos, consolidar-nos e aumentar as nossas forças."
[62]
Os "verificadores" chegaram a conta-gotas em fins do Outono de 1998.
A maioria deles era emprestada pelos serviços de
informações ou militares. No princípio de Novembro havia
no local apenas 200 dos 2000 previstos, e 150 deles eram mercenários
modernos empregados pela empresa DynCorp, com sede na Virgínia, nas
proximidades do Pentágono e da CIA, uma empresa privada de antigos
oficiais que trabalham sob contrato para o governo dos Estados Unidos
[63]
. Os europeus da MVK puderam observar que Walker e o seu adjunto
britânico, o general John Drewienkiewicz, encarregado da
segurança, "cultivavam relações privilegiadas com as
facções do UÇK"
[64]
. Os anglo-americanos bloquearam qualquer cooperação com a
polícia sérvia, informando-se unicamente junto do pessoal
albanês próximo do UÇK. Segundo os verificadores europeus e
canadianos, quem apresentasse um relatório sobre violações
dos direitos humanos por parte do UÇK podia contar com ameaças de
morte. Para se orientarem nesta pequena província, os verificadores
foram equipados com aparelhos do sistema americano GPS (
geographic positioning system
), capazes de fixar as coordenadas geográficas dos quartéis, dos
arsenais, das esquadras e de outros alvos potenciais dos bombardeamentos da
NATO. Afirmou um verificador suíço: "Compreendemos desde o
início que as informações recolhidas pelas patrulhas da
OSCE durante a nossa missão eram destinadas a completar as
informações que a NATO tinha já reunido por
satélite. Tínhamos a forte impressão de estar a fazer
espionagem para a Aliança Atlântica."
[65]
Pelo fim do ano, crescia o descontentamento com os métodos de Walker e
de Drewienkiewicz e o desprezo destes pelos outros cinco países
representados na missão. O facto de só o lado sérvio ter
sido obrigado a aceitar o cessar-fogo e de, por conseguinte, ser tecnicamente o
único em condições de violá-lo, equivalia a
convidar abertamente o UÇK a uma escalada das hostilidades e a provocar
represálias sérvias. O chefe-adjunto francês da MVK,
embaixador Gabriel Keller, queixou-se de que "cada retirada do
exército jugoslavo ou da polícia sérvia era seguida de um
avanço das forças do UÇK". O UÇK aproveitou-se
da contenção sérvia "para consolidar as suas
posições em toda a parte, continuando a fazer entrar armas da
Albânia, raptando e assassinando civis e pessoal militar, albaneses e
sérvios". Em privado, Keller exprimiu a sua convicção
de que Walker tinha sabotado deliberadamente a missão e de que a sua
única obsessão tinha sido "manter o UÇK para os
americanos"
[66]
. Um ano depois, tarde de mais para influenciar os acontecimentos, disse-se
abertamente que a MVK era uma "frente da CIA" que tinha explorado e
destruído aquilo que poderia ter sido uma missão de paz, para,
pelo contrário, levar o UÇK a combater os sérvios
[67]
.
RACAK:
CASUS BELLI
PARA A NATO
Em Janeiro de 1999, o UÇK intensificou os seus ataques. Na manhã
de 15 de Janeiro, a polícia sérvia cercou a aldeia de Racak
em perseguição de combatentes do UÇK que acabavam de matar
cinco guardas e dois civis albaneses numa emboscada nas redondezas. As
autoridades informaram a MVK da operação, convidando os
observadores a acompanhá-la. A operação foi filmada por
uma equipa local de televisão da Associated Press. Nessa noite, um
comunicado do Ministério do Interior sérvio anunciou que a
operação tinha conseguido matar "várias dezenas de
terroristas".
No entanto, o UÇK reocupou rapidamente a aldeia.
No dia seguinte, acompanhado por meios de informação ocidentais e
albaneses, Walker deixou-se guiar pelos homens do UÇK até uma
ravina perto da aldeia, onde estavam amontoados uns vinte cadáveres.
Diante das câmaras, Walker depressa interpretou os "rostos
dilacerados" como prova de uma "execução à
queima-roupa", "um massacre, um crime contra a humanidade",
cometidos por "pessoas para as quais a vida humana não tem
valor" quer dizer, pelos sérvios. Aparentemente muito
emocionado, o embaixador Walker declarava-se sem palavras "para descrever
a minha indignação à vista daquilo que se pode descrever
como uma atrocidade inominável". E acrescentou: "Já
estive noutras zonas de guerra e vi alguns actos bastante horrendos, mas isto
ultrapassa tudo aquilo que vi antes."
E Walker tinha sem dúvida visto muita coisa. A sua experiência
"noutras zonas de guerra" fora adquirida na América Central,
onde os "actos bastante horrendos" tinham sido cometidos sobretudo
pelas forças que ele próprio apoiava em nome do seu governo. As
suas missões no Salvador e nas Honduras nos anos 70 e 80 envolveram-no
na criação de uma operação
"humanitária" simulada para servir de cobertura ao
tráfico de armas e de material para os mercenários
"Contras" que semeavam o terror na Nicarágua, para
desestabilizar o governo sandinista. (Por uma curiosa coincidência, um
telegrama da Agência France Presse de 18 de Janeiro de 1999 informava que
um filho de Walker trabalhava para uma organização não
governamental no Kosovo.) Walker ajudava o exército das Honduras na
época em que este criou esquadrões da morte e fez
"desaparecer" cerca de 200 estudantes e sindicalistas de esquerda
[68]
. Na madrugada de 16 de Novembro de 1989, num momento em que Walker era
embaixador dos Estados Unidos em Salvador, os homens do sinistro
"batalhão Atlacatl", cujos oficiais eram na sua maioria
diplomados pela conhecida
School of the Americas
(viveiro americano dos militares que grassavam pela América Latina),
entraram num dormitório da Universidade da América Central,
tiraram seis padres jesuítas das suas camas e fuzilaram-nos à
queima-roupa antes de assassinarem da mesma maneira a cozinheira e a sua filha
de 15 anos. O embaixador Walker deu imediatamente mostras de
compaixão... pelo comandante dos assassinos, o chefe de Estado-Maior,
coronel Rene Emilio Ponce. "Em semelhante situação existem
problemas de gestão do controlo", observou ele. Sem aprovar, o
embaixador sublinhou que "em tempos como estes, de grande
emoção e grande cólera, coisas como estas acontecem".
Depois dos seus longos anos de serviço na coutada de Washington, Walker
partilhou a sua experiência com os estudantes da National Defense
University, antes de receber a sua primeira missão na Europa, em 1996,
como administrador transitório para a missão de
manutenção da paz da ONU na Eslavónia oriental, que
transferiu para a Croácia o território ocupado pelos
sérvios. O menos que se pode dizer é que a folha de
serviços do senhor Walker não parece adequar-se a contribuir para
a paz e a reconciliação numa zona particularmente
sensível.
A descrição feita por Walker do incidente de Racak foi
rejeitada com indignação pelas autoridades sérvias. O
presidente sérvio, Milan Milutinovic, acusou Walker de uma
"série de mentiras e invenções" visando
"afastar as atenções do terroristas, dos assassinos e dos
raptores e protegê-los tal como os tem protegido constantemente". O
presidente sérvio denunciou a recusa de Walker de reconhecer a
ilegalidade dos actos terroristas do UÇK, que tinha provocado a
polícia, obrigando-a a defender-se. Esses protestos foram totalmente
ignorados pelos políticos e pelos meios de informação
ocidentais, que davam grande eco às acusações de Walker. O
conflito do Kosovo era reduzido à perseguição gratuita de
civis albaneses inocentes e indefesos, entregues às forças
sádicas dos sérvios enfurecidos. Na sua versão
maniqueísta, assinada por Walker, "Racak" tornou-se o
casus belli
de que a NATO necessitava para lançar os seus bombardeiros contra a
Jugoslávia. A estratégia de provocação do
UÇK tinha resultado graças à ajuda dos americanos.
Por que razão, interrogaram-se alguns observadores, em vez de ir pedir
explicações às autoridades sérvias próximas,
se fechou Walker durante meia hora com os chefes do UÇK de Racak?
Mais tarde, Walker negou ter consultado responsáveis americanos por
telemóvel. No entanto, o comandante da NATO, Wesley Clark, e Richard
Holbrooke declararam ambos que Walker lhes tinha telefonado de Racak.
No dia seguinte à muito mediatizada "descoberta" de Walker, o
Conselho da NATO reuniu-se de emergência para ameaçar
lançar os ataques aéreos e para declarar que os acontecimentos de
Racak "representam uma violação flagrante do direito
internacional". Algumas semanas depois, em vésperas dos
bombardeamentos da NATO, o presidente Clinton declarou: "Devemos recordar
o que se passou na aldeia de Racak em Janeiro, os homens, mulheres e
crianças levados de suas casas até à ravina, obrigados a
ajoelhar-se na lama, crivados de balas não por alguma coisa que
tivessem feito, mas por serem o que eram." Joschka Fischer declarou que
"Racak foi para mim uma viragem", o acontecimento que
justificava a intervenção militar fora da zona de defesa da NATO.
A "viragem" de Racak conduziu directamente às
pseudo-"negociações" de Rambouillet, ocasião de
um ultimato de Washington que visava justificar a campanha militar da NATO
contra a Jugoslávia.
As acusações de Walker conseguiram justificar a guerra, apesar de
muitos membros da MVK não estarem nada de acordo com a maneira
espectacular e tendenciosa como ele havia tratado o acontecimento. A MVK sabia
perfeitamente que Racak era uma base do UÇK. Situada a uns
quinhentos metros a sul da cidade-encruzilhada de Stimlje, não longe do
futuro "Camp Blondsteel", Racak estava rodeada de trincheiras,
típicas das aldeias transformadas em fortalezas pelo UÇK. As
autoridades acreditavam que aquela aldeia abrigava as unidades do UÇK
que recentemente tinham feito emboscadas, raptos e assassínios nas
redondezas. Alguns sérvios raptados nas proximidades durante o
Verão de 1998 nunca tinham sido encontrados.
As vítimas não eram apenas sérvias. Em Dezembro de 1998 e
Janeiro de 1999, o UÇK "prendeu" dezassete albaneses acusados
de delitos tais como "relações de amizade com os
sérvios". Segundo um relatório da MVK, o UÇK
aproveitou os funerais celebrados para onze das vítimas de Racak,
que tinham atraído Walker, os meios de informação
internacionais e milhares de albaneses, para raptar nove albaneses acusados de
crimes como ter um irmão que trabalhava para a polícia; ser
suspeito de ter armas; ter bebido com sérvios; ter amigos
sérvios...
Em 8 de Janeiro de 1999, uma emboscada armada pelo UÇK atacara
veículos da polícia, matando três agentes e ferindo outro,
bem como três albaneses que passavam de táxi. "A emboscada
foi bem preparada: havia uma posição de tiro camuflada para 15
homens, que tinha sido ocupada havia vários dias, e dispararam sobre a
coluna da polícia com armas ligeiras, metralhadoras e granadas
propulsionadas por foguete", segundo o relatório da MKV. Em 10 de
Janeiro, mais um polícia foi morto numa emboscada a sul de Stimlje. Foi
nessa altura que a polícia sérvia decidiu preparar a sua
operação contra a base do UÇK em Racak.
Todas as polícias do mundo têm tendência para se zangar
contra aqueles que matam colegas seus. É razoável supor que
polícias sérvios, se cercavam os homens que consideravam
responsáveis por terem assassinado os seus colegas, não tivessem
hesitado em abatê-los sem piedade. E mesmo que os tenham morto durante um
combate, poder-se-ia chamar ao incidente um "massacre". Mas a
questão pertinente é antes: tratou-se ou não de um
"massacre de civis" cometido a sangue-frio, mortos unicamente por
causa da sua identidade étnica, no quadro de uma campanha de
"limpeza étnica"? Porque afinal de contas foi essa
interpretação que foi utilizada para justificar os
bombardeamentos da NATO.
Desde o princípio havia razões para cepticismo. Em 20 de Janeiro,
Le Figaro
e
Le Monde
publicaram telegramas dos seus correspondentes no local que suscitavam algumas
questões às quais nunca se deu resposta satisfatória
[69]
. O correspondente do
Le Figaro,
Renaud Girard, perguntava o que se tinha passado na realidade. Durante a
noite, o UÇK não poderia ter reunido os corpos daqueles que
tinham sido mortos por balas sérvias, para criar a impressão de
uma execução cometida a sangue-frio? "De um modo
inteligente, o UÇK procurou transformar assim uma derrota militar numa
vitória política?"
Os únicos princípios de resposta científica foram
fornecidos por exames médico-legais realizados nos 40 cadáveres
recuperados pelas autoridades sérvias três dias depois do
acontecimento. (Os corpos de cinco dos 45 mortos anunciados foram retidos pelos
albaneses e não puderam ser examinados.) Uma equipa médico-legal
da Bielorrússia juntou-se aos peritos sérvios para os primeiros
exames, seguida por uma equipa finlandesa já contratada pela
União Europeia para investigar as acusações de massacres
no Kosovo. Os primeiros resultados estavam disponíveis no fim de
Janeiro. Mas a equipa finlandesa, a única que o Ocidente se dignava
levar a sério, persistia em adiar para mais tarde o anúncio dos
seus resultados, apesar da urgência da questão. Os meios de
informação ocidentais passaram completamente em silêncio os
resultados bielorrussos e sérvios, que no entanto foram largamente
confirmados pelos dos finlandeses, revelados num artigo especializado alguns
anos mais tarde.
Só em 17 de Março, quando a segunda
"negociação de Rambouillet" se dirigia para o
inevitável impasse que havia de justificar a guerra, é que vinte
e um quilos de exames sem síntese acompanhados por três mil
fotografias foram entregues ao governo alemão, que assegurava a
presidência da UE e que não revelou nada. O público e os
meios de informação só tiveram acesso a uma
"impressão pessoal" redigida pela Drª
Helena Ranta, dentista, que presidia à equipa finlandesa (cujo membro
mais qualificado para esse género de trabalho, o Dr. Antti
Penttilä, se mantinha discreto).
Na sua conferência de imprensa de 17 de Março em Pritina, a
Drª Ranta dava a impressão de estar nervosa, e sob a influência de
Walker. Pressionada pelos jornalistas a qualificar o acontecimento de
Racak como "massacre", ela esquivou-se, depois concedeu que se
tratava de um "crime contra a humanidade", apressando-se a
acrescentar que, do seu ponto de vista, qualquer morte de homem era um crime
contra a humanidade. Vários telegramas captaram as palavras "crime
contra a humanidade", sem qualificação.
As redacções não precisavam das palavras da Drª
Ranta para tirarem as suas conclusões. Já na manhã de 17,
antes da conferência de imprensa de Pritina, o
The Washington Post,
num telegrama de Roma, anunciou que os peritos qualificavam as mortes de
Racak de "massacre" perpetrado pelos sérvios
[70]
. Citando "fontes ocidentais informadas do relatório" e
"responsáveis ocidentais", todos não identificados, o
The Washington Post
afirmou que a equipa finlandesa tinha concluído "que as
vítimas eram civis desarmados executados num massacre organizado, tendo
alguns sido obrigados a ajoelharem-se antes de serem crivados de balas".
Retomado por numerosos jornais americanos, esse artigo, que mostra todas as
características de uma desinformação armada pela CIA, teve
certamente um impacto maior do que as tímidas declarações
da Drª Ranta em Pritina. Podemos reconhecer nele a origem da
declaração do presidente Clinton a justificar a guerra.
Quase dois anos mais tarde sempre demasiado tarde para influenciar os
acontecimentos um pequeno resumo do relatório médico-legal
finlandês ficou acessível ao público. Um certo
número de pormenores técnicos das autópsias efectuadas nas
vítimas de Racak foram publicados num jornal especializado
[71]
. Os três autores do artigo, J. Rainio, K. Lalu e A. Penttilä,
sublinharam que as questões políticas e morais não eram do
seu domínio. No entanto, a sua peritagem confirmou as seguintes
conclusões:
não houve "execução à
queima-roupa" em Racak. Todas as vítimas, salvo talvez uma
delas, tinham sido mortas por balas disparadas de longe e de
direcções diferentes;
as "mutilações inumanas" lamentadas por Walker
eram literalmente inumanas: os vestígios de mordeduras provavam que elas
tinham sido causadas por animais selvagens durante a noite de 15 para 16;
falar de "homens, mulheres e crianças inocentes" era
enganador, porque as vítimas eram todas homens, com
excepção de uma mulher e de um adolescente. A mulher foi morta
por uma única bala nas costas, disparada à distância,
talvez ao fugir do combate.
Porque houvera combate. Com efeito, o chefe do UÇK tinha-se vangloriado
do número de sérvios mortos naquilo que ele próprio
qualificou como batalha. Mas não há nada que possa abalar a lenda
do "massacre de Racak" depois de ele ter desencadeado uma
guerra.
As conclusões finlandesas confirmavam as dos jugoslavos e dos
bielorrussos em Janeiro de 1999. Mas no Ocidente só se acreditava nas
declarações contraditórias da Drª Ranta, que esperou
cinco anos para se queixar, numa entrevista, das pressões que tinha
sofrido e para assinalar que um número indeterminado de polícias
sérvios também tinham sido mortos em Racak em 15 de Janeiro
de 1999.
Os dados materiais são compatíveis com a versão oficial de
Belgrado de um ataque da polícia sérvia contra aqueles que tomava
por "terroristas". As represálias contra os presumíveis
assassinos de polícias não são desconhecidas noutros
países, e designadamente nos Estados Unidos. Em 19 de Abril de 1993,
perto de Waco, Texas, umas 86 pessoas, entre as quais vinte crianças,
foram mortas durante um assalto policial contra uma comunidade de uma seita
suspeita de possuir armas ilegais. Evidentemente, nunca se falou de uma
ingerência humanitária por parte da comunidade internacional.
A FARSA DE RAMBOUILLET
O surgimento do UÇK, hostil a qualquer compromisso e disposto a
assassinar qualquer "traidor" albanês que o procurasse, tornou
mais difícil do que nunca qualquer tentativa para encontrar uma
solução pacífica negociada. Para os americanos, que
dirigiam o jogo, o simulacro de negociações que se iniciou em 2
de Fevereiro de 1999 em Rambouillet não tinha outro objectivo a
não ser provar que não havia solução
pacífica possível e que era preciso fazer a guerra.
Em Rambouillet, a delegação sérvia, que incluía
representantes das diversas minorias étnicas do Kosovo, estava preparada
para fazer concessões aos dirigentes nacionalistas albaneses mais
respeitáveis, como Rugova, Fehmi Agani ou Veton Surroi. Isso foi
excluído. Esses homens conhecidos foram imediatamente marginalizados a
favor do chefe do UÇK, Hashim Thaqi, até então um
fora-da-lei obscuro, promovido não se sabe como a chefe da
delegação "kosovar". Obrigar a delegação
sérvia a lidar com um "terrorista" era contrário a
qualquer prática diplomática, tal como exigir concessões
sob a ameaça da força era contrário ao direito
internacional. Thaqi foi rodeado de todas as atenções por James
Rubin, o responsável de imprensa de Madeleine Albright, que lhe teria
até proposto uma carreira no cinema. A delegação albanesa
era assistida por uma equipa de conselheiros americanos de alto nível: o
advogado Paul Williams, secretário de Estado adjunto para a Europa do
Sudoeste na administração do presidente Bush pai, antes de fazer
parte do grupo encarregado por Clinton de aplicar as sanções
contra a Sérvia; Marc Weller, um investigador especilizado na causa
albanesa do Kosovo na Universidade de Cambridge; e sobretudo Morton Abramowitz,
eminência parda da "intervenção
humanitária" e pai-fundador do International Crisis Group,
financiado por governos ocidentais e por George Soros
[72]
. A principal tarefa desses conselheiros era persuadir os albaneses reticentes
de que deviam assinar um texto que não chegava a prometer a
independência do Kosovo. Foi preciso explicar-lhes que a sua assinatura
era condição necessária para que a NATO bombardeasse a
Jugoslávia.
Uma negociação normal teria pelo menos tomado em
consideração a proposta apresentada pelo governo sérvio de
assegurar ao Kosovo uma ampla autonomia, com a protecção dos
direitos de todas as minorias. Nem as potências ocidentais nem os seus
meios de informação deram qualquer atenção a essa
proposta. Quanto à delegação albanesa, tinha apenas uma
proposta: a independência total, se não hoje, dentro de três
anos. Mas em Rambouillet não se tratava de favorecer ou sequer de
permitir verdadeiras negociações entre as partes em conflito.
Tratava-se de impor um "acordo de Rambouillet" americano, redigido
principalmente pelo diplomata Christopher Hill. Esse "acordo"
predeterminado foi apresentado pelos Estados Unidos como um ultimato, cujo
objectivo era obrigar os sérvios a partirem e fazer a NATO entrar no
Kosovo, com o consentimento dos albaneses. Esse documento comportava duas
partes, civil e militar. Segundo a parte civil, o Kosovo teria a sua
própria constituição, cujas disposições
prevaleceriam sobre as constituições jugoslava e sérvia,
assegurando uma "economia de mercado livre". Prometia-se uma
importante ajuda económica ao Kosovo, mas a Sérvia nada
receberia. Não se mencionava sequer a suspensão das
sanções económicas contra a Sérvia, já para
não falar de qualquer ajuda aos cerca de 650 mil refugiados já
existentes na Sérvia. Contrariamente ao sistema de governo parlamentar
proposto pelos sérvios, o Kosovo "livre" previsto pelos
americanos seria um protectorado ocidental, cujo director teria autoridade para
decidir todas as medidas importantes, nomear os responsáveis e anular os
resultados de eleições.
Consciente da correlação de forças, a equipa sérvia
em Rambouillet exprimiu o seu desejo de aceitar esse arranjo. O impasse dizia
respeito ao lado militar do ultimato. Os sérvios já tinham
acolhido os observadores internacionais (a MVK) e diziam-se dispostos a aceitar
uma força internacional de manutenção da paz. Por isso
entendiam uma força da ONU, imparcial, e não da NATO. Mas, no
último momento, os Estados Unidos introduziram novas exigências
expressas numa secção chamada "Anexo B", que daria
à NATO o controlo não apenas das forças de
ocupação do Kosovo mas também liberdade total de
operações em toda a Jugoslávia. A NATO reclamou "o
acesso livre e sem restrições" a todo o território
jugoslavo, à custa dos jugoslavos, bem como imunidade a qualquer
acção judicial. Isto significava que a NATO ou membros do seu
pessoal seriam livres de cometer crimes ou destruir os bens com total
impunidade. Seria renunciar sem condições a toda a soberania.
Mais tarde, quando por fim o público teve notícia dessas
exigências, os apologistas da NATO afirmaram que os sérvios eram
responsáveis pela guerra por não terem contestado abertamente
essas disposições, que representariam apenas uma
"posição de negociações". No entanto, a
própria Madeleine Albright, numa conferência de imprensa em 20 de
Fevereiro, acusou os sérvios de serem os responsáveis pelo
fracasso por terem recusado a presença de uma força da NATO.
É pois evidente que a questão-chave era a ocupação
pela NATO. Era neste ponto que o Ocidente podia ter aliviado a pressão
se o objectivo fosse um acordo pacífico.
"As disposições militares", observou Jan Oberg em 18 de
Março, dia da assinatura pelos albaneses, "não têm
nada a ver com a manutenção da paz." O termo mais apropriado
seria "prevenção da paz". Oberg, director da
Transnational Foundation for Future and Peace Studies, sediada na
Suécia, que tinha feito dezenas de visitas ao Kosovo como conselheiro de
Ibrahim Rugova, sublinhou que nenhum dos numerosos jornalistas, comentadores,
investigadores e diplomatas que condenaram os sérvios por se recusarem a
assinar se deu ao trabalho de examinar o conteúdo dos acordos. Oberg,
pelo contrário, tinha-os estudado bem ao longo do processo, e tirou a
conclusão de que "este documento foi adaptado para ser
aceitável pelos delegados albaneses, a tal ponto que o lado jugoslavo
inicialmente disposto a aceitar as partes políticas achou
o documento modificado inaceitável". Porquê essa
alteração? "Porque o pior dos casos para a comunidade
internacional seria a Jugoslávia dizer que sim e os albaneses dizerem
que não", concluiu ele.
Em Setembro de 2000, ao fazer o seu relato das negociações, James
Rubin afirmou que se tinha dito aos sérvios que o anexo militar podia
ser negociado. Mas contou também que quando o ministro italiano dos
Negócios Estrangeiros, Lamberto Dini, sugeriu que fosse permitido
às forças da ONU policiarem o acordo em vez das forças da
NATO, Madeleine Albright replicou vigorosamente que "todo o objectivo
é obrigar os sérvios a aceitarem a força da NATO". O
cenário, recorda Rubin, foi este: "se os sérvios e os
albaneses aceitassem o acordo, a NATO aplicá-lo-ia com a
participação de tropas americanas. Se os sérvios
recusassem, a NATO efectuaria os ataques aéreos. Se os kosovares
recusassem, tentaríamos cortar o apoio internacional para a sua
rebelião". Mas, acrescentou, "eu não ousei dizer, nem
mesmo a alguns jornalistas sofisticados, que o único fracasso em
Rambouillet seria uma rejeição por parte dos albaneses"
[73]
. Em suma, ainda que alguns governos europeus se tenham deslocado a Rambouillet
na esperança de encontrar uma solução pacífica, o
objectivo principal dos Estados Unidos era instalar a NATO no Kosovo.
O direito internacional proíbe explicitamente a utilização
de ameaças militares nas negociações internacionais. Um
tratado obtido sob tais ameaças é nulo. A recusa de aceitar
acordos nessas circunstâncias é, pois, perfeitamente
legítima. Mas o objectivo dos Estados Unidos era também
demonstrar que a sua vontade (benfazeja, é claro) devia prevalecer
contra o direito internacional.
Em 18 de Março, sob a forte pressão americana, a
delegação albanesa conduzida por Hashim Thaqi assinou o chamado
"Acordo de Paz de Rambouillet" que não era um acordo,
porque unilateral, nem "de paz", porque a sua função
era desencadear a guerra. Dois dias depois, Walker ordenou aos 1381
"verificadores" que abandonassem o Kosovo em direcção
à Macedónia. Alguns lamentaram-no. "A situação
no terreno, em vésperas dos bombardeamentos, não justificava uma
intervenção militar", testemunhou Pascal Neuffer, membro
suíço da MVK. "Podíamos certamente ter continuado o
nosso trabalho. E a explicação dada à imprensa, dizendo
que a missão estava comprometida por ameaças sérvias,
não correspondia àquilo que eu vi. Digamos que fomos evacuados
porque a NATO tinha decidido bombardear." Em 24 de Março de 1999, a
NATO desencadeou a sua guerra aérea contra a Jugoslávia.
As consequências eram absolutamente previsíveis: uma vaga de
refugiados, mortos, devastação. Para além das
destruições materiais, uma outra consequência, igualmente
desastrosa ainda que menos visível, da decisão americano-europeia
de "resolver" o problema do Kosovo pela guerra foi um crescimento sem
precedentes do ódio entre comunidades. Em nome dos "direitos
humanos" e da "ingerência humanitária", o
ódio triunfou no Kosovo.
3. O TRIUNFO DO ÓDIO
O facto de os albaneses terem convidado potências estrangeiras a
bombardearem o seu país não podia deixar de suscitar uma
cólera violenta entre os sérvios. Uma parte dessa cólera
(mas muito menos do que se quis fazer crer) exprimiu-se em actos de
violência contra albaneses. A decisão de Walker de retirar os
observadores do Kosovo deixava os protagonistas frente a frente sob as bombas,
sozinhos para se vingarem ou mentirem. A aceitação pela
"comunidade internacional" da crença de que os sérvios
estavam dispostos ao genocídio atiçou o ódio
anti-sérvio quase paranóico de muitos albaneses. As
relações entre os sérvios e os albaneses do Kosovo
já eram más. A guerra da NATO tornou-as desesperadas. O principal
efeito psicológico da guerra foi confirmar e reforçar o
ódio albanês contra os sérvios, reconhecê-lo como
legítimo e libertá-lo de qualquer entrave, qualificando desde
então toda a perseguição aos sérvios como
"vingança", implicitamente merecida.
Nos primeiros dias de bombardeamentos aéreos, a atenção do
mundo esteve centrada no espectáculo da vaga de refugiados albaneses, em
fuga para a Albânia e a Macedónia vizinhas. No fim dos
bombardeamentos, calculava-se o número total dos refugiados do Kosovo em
cerca de 800 mil (de uma população de um pouco menos de dois
milhões). Essa fuga, resultado previsível dos bombardeamentos,
foi transformada pela propaganda de guerra em justificação desses
mesmos bombardeamentos. Na ausência de observadores internacionais
neutros, era impossível ao mundo exterior saber as razões
precisas desse êxodo em massa se, como afirmavam a NATO e os seus
aliados albaneses, era resultado de uma vasta "limpeza étnica"
planificada pelos sérvios, ou se, como afirmavam os sérvios, o
UÇK tinha incitado os albaneses a fugirem para ganharem a simpatia
internacional para a sua causa. Ou então, como parece mais
plausível, vários factores contribuíram para pôr as
pessoas em fuga. Em primeiro lugar, deve recordar-se que é perfeitamente
habitual em tempo de guerra ver enormes êxodos de civis abandonarem as
zonas de combate e as cidades submetidas a bombardeamentos. Milhões de
civis belgas e franceses abandonaram tudo e puseram-se a caminho no
início das duas guerras mundiais. Sob os bombardeamentos da NATO,
centenas de milhares de jugoslavos abandonaram as principais cidades da
Sérvia central (Belgrado, Ni Novi Sad...) para procurar
refúgio. Tal como a maioria dos refugiados do Kosovo, a maioria eram
mulheres e crianças. A agressão da NATO tinha transformado o
Kosovo em terreno de ensaio de toda uma gama de armas do Pentágono:
mísseis de cruzeiro, bombas guiadas por laser, bombas de
fragmentação, explosivos de urânio empobrecido. Os ataques
aéreos desencadearam combates violentos entre o UÇK e as
forças sérvias, decididas a extirpar a "quinta coluna"
que ajudava a NATO a guiar os seus ataques. O êxodo afectou sobretudo o
Oeste da província, junto à fronteira com a Albânia, onde
os combates eram mais duros. As forças sérvias tinham o objectivo
estratégico de esvaziar a zona fronteiriça de albaneses que
poderiam ajudar à infiltração de armas e de combatentes da
Albânia. Noutras partes do Kosovo o êxodo foi menos importante. O
Kosovo é uma pequena província que se pode atravessar de carro em
cerca de duas horas. Muitos albaneses do Kosovo podiam esperar abrigar-se em
casa de parentes do outro lado das fronteiras albanesa ou macedónia. Uma
vez terminados os combates, podiam esperar regressar a suas casas, o que
efectivamente fizeram, com uma rapidez que surpreendeu os observadores que
haviam apresentado essa partida provisória como uma
"deportação" trágica de um povo expulso para
sempre do seus lares. Quando, em 1999, os soldados da NATO entraram no Kosovo
"vazio", foram aclamados por multidões de albaneses em todas
as principais cidades.
A guerra acabou por justificar a guerra. Os objectivos declarados da guerra do
Kosovo eram variáveis. A razão oficial era, no início,
simplesmente obrigar Miloevic a assinar o texto de Rambouillet.
Para os estrategos americanos, uma razão um pouco menos
confessável mas mais imperativa era "preservar a credibilidade da
NATO". Essa era "a questão principal", segundo Zbigniew
Brzezinski, um dos conselheiros principais de Madeleine Albright
[74]
. Mas o espectáculo das massas de refugiados albaneses forneceu
rapidamente um objectivo mais susceptível de comover o público
ocidental: a necessidade de impedir a "catástrofe
humanitária" em curso. Depois, quando o governo jugoslavo
não capitulou como previsto, o objectivo declarado passou a ser expulsar
Miloevic do poder. O método para o conseguir era fazer o
povo sérvio sofrer.
Ao fim de um mês de bombardeamentos, o senador Joe Lieberman, grande
amigo do
lobby
albano-americano, declarou: "Espero que a campanha de ataques
aéreos, mesmo que não convença Miloevic a
retirar as suas tropas do Kosovo, cause uma tal devastação na sua
economia, coisa que ela está a fazer, arruine a tal ponto a vida do seu
povo, que este se revolte para o expulsar."
[75]
Ao fim de dois meses, à pergunta se sim ou não a NATO
"tentava tornar a vida miserável para os sérvios
comuns", Lieberman respondeu: "Ah, sim, quero dizer que é isso
que fazemos desde há dois meses. Não atacamos só alvos
militares, pois de outro modo por que é que cortamos o abastecimento de
água e liquidamos as centrais eléctricas, apagando as luzes?
Através dos ataques aéreos procuramos quebrar a vontade do povo
sérvio para ele obrigar o seu dirigente a quebrar e a ordenar às
suas tropas que abandonem o Kosovo."
[76]
Este senador, que seria o candidato democrata à vice-presidência
dos Estados Unidos em 2000, proclamou que "os Estados Unidos da
América e o exército de libertação do Kosovo
representam os mesmos valores humanos, os mesmos princípios. [...] Lutar
pelo UÇK é a mesma coisa que lutar pelos direitos humanos e os
valores americanos"
[77]
.
Entrevistado pela primeira vez após o início da guerra, o
comandante da aviação da NATO, general Michael Short, confirmou
que os bombardeamentos visavam fazer os civis sofrerem, como meio de atingir
"a direcção e as pessoas que rodeiam Miloevic
para as forçar a mudarem o seu comportamento"
[78]
.
Penso que sem electricidade para o frigorífico, sem gás para a
cozinha, sem poder ir para o trabalho porque a ponte está
destruída a ponte sobre a qual se realizaram concertos de rock e
onde todos estavam com um alvo sobre a cabeça. Isso tem que desaparecer
às três horas da manhã.
Os bombardeamentos da infra-estrutura não eram apenas um meio para
atingir a vida quotidiana dos sérvios. Eles visavam ter também um
impacto político a longo prazo, destruindo a autonomia económica
do país. Um alto responsável alemão explicou que as somas
que seriam necessárias para reconstruir as pontes, ou muito simplesmente
para dragar os detritos do Danúbio, dariam aos países ocidentais
"uma influência muito grande"
[79]
. O país destruído seria obrigado a obedecer aos seus
destruidores, os únicos capazes de financiar a
reconstrução. Esse jogo cínico acabou por resultar.
Visar a população civil era uma violação flagrante
do direito internacional. No entanto, um coro de comentadores acotovelava-se
para explicar que o povo sérvio merecia plenamente qualquer
punição que o atingisse. William Pfaff, o mais sofisticado,
abandonou o cliché do "Miloevic ditador" para
argumentar que, visto que os sérvios o tinham eleito e reeleito durante
uma década, não era claro "por que razão se devia
poupá-los ao gosto do sofrimento que eles infligiram aos seus
vizinhos"
[80]
.
A
Newsweek
atingiu o cume do racismo anti-sérvio com um artigo intitulado
"Vingança de uma raça vítima". "Os
sérvios estão fora da Europa, habituados ao ódio, educados
na piedade por si mesmos", explicou o autor
[81]
. Evidentemente, semelhante povo não poderá merecer simpatia,
aconteça o que acontecer. Eles queixam-se por serem bombardeados?
É o seu temperamento nacional.
A propaganda da NATO procurava justificar a destruição da
Jugoslávia comparando-a à Alemanha nazi e Miloevic a
Hitler. Clinton declarou que o governo de Miloevic, "como o da
Alemanha nazi, chegou ao poder persuadindo as pessoas a desprezarem as pessoas
de uma raça ou de uma etnia determinada, e a acreditar que estas
não tinham qualquer direito de viver". Em pleno bombardeamento,
Daniel Jonah Goldhagen, professor de Harvard, forneceu a
justificação suprema não apenas para "um gosto pelo
sofrimento" mas também para a conquista e a ocupação
da Sérvia, identificando a fuga provisória dos civis do Kosovo
com o Holocausto, Miloevic com Hitler e o povo sérvio com os
"carrascos de boa vontade de Hitler" (
Hitler's willing executioners,
título do livro que o tornou célebre). Como a Alemanha e o
Japão nos anos 40, a Sérvia nos anos 90 "conduz uma guerra
imperialista brutal, procurando conquistar um território após
outro, expulsando populações não desejadas, perpetrando
assassínios em massa"
[82]
. Miloevic era um "assassino genocida". Ele e o povo
sérvio eram "tributários de uma ideologia que exige a
conquista de
Lebensraum
". A maioria dos sérvios "acredita fanaticamente" na
justiça das acções criminosas e propôs-se eliminar a
população albanesa do Kosovo, numa acção que faz
lembrar o Holocausto. O único remédio era, portanto, o aplicado
à Alemanha nazi: a Sérvia devia ser conquistada,
"desnazificada" e reeducada pelo Ocidente.
Goldhagen afirmava que, tal como os alemães e os japoneses dos anos 40,
a nação sérvia é "composta por
indivíduos cujas faculdades de juízo moral estão
diminuídas e que caiu num abismo moral do qual provavelmente não
conseguirá sair sem ajuda num futuro próximo". Pelo facto de
ter apoiado ou tolerado "as políticas eliminacionistas" de
Miloevic, os sérvios "tornaram-se legal e moralmente
incompetentes para gerirem os seus próprios assuntos". O seu
país devia ser colocado em "correcção judicial"
e entregue à NATO, e os sérvios "devem compreender os seus
erros e deixar-se reabilitar".
Isto era um apelo a uma cruzada ideológica, baseada na ideia de que se
deve utilizar a violência para corrigir a maneira errónea de
pensar de uma nação inteira. A comparação com o
Holocausto é sintomática de uma transformação
ideológica dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial (únicos,
como todos os acontecimentos) em modelos de acções e de
papéis que se repetem muitas vezes, permitindo à potência
"boa", os Estados Unidos, vencer de novo "o mal" pela
força das armas. O mito do eterno retorno do Holocausto pode servir de
pretexto para inúmeras guerras, necessárias para
"reeducar" todas as populações moralmente deficientes
do planeta.
Na ausência de observadores internacionais neutros, a
informação quase única sobre o que se passava no Kosovo
durante a guerra era fornecida por fontes albanesas próximas do
UÇK. Os activistas do "Conselho para a Defesa dos Direitos Humanos
e das Liberdades" albanês, financiado por Washington, eram
"muitas vezes os primeiros a entrevistar os refugiados que chegavam
à Macedónia", e ajudaram o UÇK a formar a imagem do
Kosovo em guerra vista pelo Ocidente
[83]
.
As atrocidades sérvias eram necessárias para justificar a guerra.
Em 8 de Abril, o ministro da Defesa alemão, Rudolf Scharping, anunciou a
descoberta de um projecto sérvio chamado Operação Potkova
("ferradura"), visando esvaziar o Kosovo da sua
população albanesa. Segundo Scharping, esse plano
constituía a prova de que Miloevic e o exército
jugoslavo tinham planificado a expulsão de toda a
população albanesa do Kosovo muito antes dos ataques da NATO. Mas
esse "plano" não existia. Um ano mais tarde, o general
alemão Hainz Loquai revelou que o documento em questão não
correspondia à descrição dramática feita por
Scharping e não era sequer um documento sérvio. Tratava-se de uma
extrapolação de uma descrição geral dos movimentos
militares sérvios feita aparentemente pelos serviços de
informações búlgaros, que além disso precisaram que
o objectivo desses movimentos era derrotar o UÇK e não expulsar a
população albanesa. Os mapas que Scharping tinha apresentado para
ilustrar esse "plano" provinham dos serviços alemães.
Finalmente, afirmava-se que o nome desse plano sérvio era
"potkova". Mas "ferradura", para os sérvios, diz-se
"potkovica". "Potkova" é a palavra croata
[84]
.
Scharping apressou-se a repetir qualquer boato que apresentasse os
sérvios como monstros sanguinários. Logo em 26 de Março
ele anunciou que estava em curso no Kosovo "um genocídio de base
étnica". Dois dias depois, declarou que tinha sido organizado um
campo de concentração a norte de Pritina onde "os
professores são reunidos e fuzilados diante dos alunos". Em 16 de
Abril não hesitou em repetir as histórias mais repugnantes
fornecidas pelos albaneses para denegrir os seus adversários: teriam
assado o feto de uma mulher grávida antes de voltar a introduzir-lho no
ventre dilacerado; teriam cortado sistematicamente os braços e as pernas
das vítimas; teriam jogado futebol com as cabeças cortadas, etc.
Felizmente, tudo isso era mentira.
Para os países da NATO, todo este incitamento ao ódio era apenas
propaganda efémera de guerra, que depressa poderia ser esquecida. As
sequelas eram mais graves para os povos implicados. Representar os
sérvios como monstros sanguinários só podia atear um
ódio muito mais apaixonado e duradouro: o ódio dos albaneses aos
sérvios. Os albaneses mais moderados estavam desarmados diante daqueles
que gritavam vingança contra todos os sérvios, incluindo velhos e
crianças, quando as maiores potências, os Estados Unidos e a
Alemanha, davam um eco complacente à ideia de que os sérvios eram
um povo daninho, genocida.
A atitude da NATO reforçou a tendência dos albaneses para dizer e
acreditar no pior. Depois de se retirar do Kosovo, a MVK encarregou-se de
recolher testemunhos albaneses nos campos criados para os refugiados albaneses.
O objectivo era reunir provas contra Miloevi? para o procurador do TPIJ.
Os questionários fornecidos pelo Departamento de Estado americano
ofereciam às pessoas interrogadas umas trinta categorias de
violações dos direitos humanos para confirmar. Prometia-se aos
refugiados que faziam as acusações uma confidencialidade total,
"para garantir a segurança das vítimas ou das
testemunhas". Este método, já utilizado na Bósnia,
incitava à delação. A tentação de inventar
ou exagerar devia ser considerável. Ao acusar os sérvios de
atrocidades, prestava-se o melhor serviço à NATO e ao UÇK,
que se podiam mostrar reconhecidos, sem correr o risco de se ser acusado de
calúnia ou falso testemunho. E mesmo quando, depois da guerra, as
acusações mais atrozes se revelaram completamente inventadas,
nunca foi posta em causa a credibilidade fundamental desses
questionários.
A MVK não se interessava pelos refugiados não albaneses. Ela
nunca tentou compreender o ponto de vista dos ciganos, por exemplo interrogando
os que se encontravam também nos campos de refugiados. Os ciganos
só eram encarados do ponto de vista, hostil, dos albaneses. No seu
capítulo sobre os ciganos no Kosovo, o relatório da MVK
designa-os pelo nome de "maxhupet" porque era essa a palavra usada
pelos albaneses, apesar de o nome "maxhupet" ser
"infamante" e de haver "claramente preconceito contra e uma
percepção negativa dos ciganos (maxhupet) entre os albaneses do
Kosovo". Mas, acrescentava-se, visto que "quase toda a
informação tinha sido fornecida pelos refugiados albaneses do
Kosovo", o termo infamante fora mantido. Pode-se perguntar: por que motivo
é aceitável chamar "maxhupet" aos ciganos mas
inaceitável chamar "shqiptar" aos albaneses, como eles
próprios fazem?
Quando a NATO entrou no Kosovo em 9 de Junho de 1999, as forças
sérvias retiraram-se e os combatentes do UÇK impuseram
rapidamente a sua lei, expulsando os sérvios dos seus empregos e das
suas casas. O ódio dos albaneses aos sérvios explodiu numa
campanha de violência. Cerca de metade da população
sérvia teve de fugir, amontoando-se em campos de refugiados da
Sérvia central. Os ciganos, que no Kosovo sérvio viviam melhor do
que em qualquer outra parte da região, também tinham de fugir de
uma perseguição que as forças de ocupação
"humanitárias" nada faziam para impedir. Numerosos velhos
sérvios que tinham ficado em Pritina foram expulsos ou
assassinados para permitir que albaneses, por vezes recém-vindos da
Albânia, se apoderassem dos seus apartamentos, por vezes para os alugarem
aos humanitários internacionais. Mais de uma centena de igrejas e
mosteiros ortodoxos sérvios, muitos dos quais pertenciam a um
património artístico que tinha sobrevivido aos séculos de
conflitos com os turcos, foram sistematicamente destruídos, com
explosivos ou pelo fogo.
As potências de ocupação não ligavam. A sua
atenção estava absorvida pela procura das "valas
comuns", para apoiar a acusação pelo TPIJ do presidente
Miloevic e dos seus colegas nos mais altos cargos. Durante os
bombardeamentos, o governo dos Estados Unidos tinha mantido a
ficção do "genocídio" com uma escalada de
números fantasistas. A 16 de Abril, o secretário da Defesa
William Cohen, tinha falado de cerca de 100 mil albaneses desaparecidos. Em 18
de Abril, David Scheffer, representante de Madeleine Albright para "as
questões dos crimes de guerra", inquietava-se com o destino de mais
de 225 mil homens cujo paradeiro se desconhecia. Em 19 de Maio, o Departamento
de Estado elevou o número dos albaneses que talvez tivessem sido mortos
para meio milhão. No entanto, mais de um ano de exumações
dos locais assinalados não permitiu encontrar mais de 2788 corpos de
pessoas, incluindo não albaneses, mortas durante a guerra de morte
violenta ou natural. Por outro lado, na maior parte das vezes não se
tratava de "valas comuns" mas de simples campas. Juan Lopez Palafox,
chefe da equipa espanhola de medicina legal enviada ao Kosovo para examinar os
corpos de 2000 vítimas presumíveis, queixou-se ao jornal
El País
de que no seu sector havia apenas 187. As minas de Trepca, onde, segundo
fontes albanesas, os sérvios teriam lançado milhões de
vítimas albanesas, revelaram-se vazias. No fim de contas, se
acrescentarmos aos mortos confirmados o número de pessoas declaradas
desaparecidas, o total de vítimas não pode ultrapassar muito as
5000, bem longe das estimativas alarmistas dos porta-vozes da NATO durante os
bombardeamentos. Quanto às valas comuns que os sérvios indicaram
conterem vítimas do UÇK, a procuradora Louise Arbour explicou que
"o Tribunal não tem dinheiro para levar a cabo essas
exumações".
Enquanto a violência albanesa continuava, foi instalado um governo de
ocupação chamado Missão das Nações Unidas no
Kosovo (UNMIK). Podia-se contar com o seu primeiro chefe, Bernard Kouchner,
para não notar nada que pusesse em questão o "direito de
ingerência humanitária". Não sabendo como deter a
violência albanesa, Kouchner achava argumentos para a justificar. "A
natureza humana" exigia vingança, sendo a vingança "um
antídoto para o veneno que infectou esta região devastada pela
guerra", receitou o médico sem fronteiras. Para tentar amaciar os
albaneses, Kouchner declarou-lhes: "amo todos os povos, mas alguns mais do
que outros, e é o vosso caso"
[85]
. Mas o ambiente não estava para amores. "É preciso ser um
pouco doido para ir ao Kosovo!", confessou ele, acrescentando que "o
que falta no Kosovo é amor" mesmo entre albaneses. "As
pessoas não gostam umas das outras. Têm laços de
família e de clã, uma tradição que eu
respeito..." Mas "o espírito de vingança" acabou
por lhe meter medo. O Kosovo, concluiu ele, "não é um lugar
afectuoso"
[86]
.
Kouchner não podia ignorar a implicação do UÇK na
violência. Esses grupos armados pareciam operar de uma maneira
organizada, com uma forma de hierarquia, de comando e de controlo, constatou
ele. Mas a violência espontânea não era mais
tranquilizadora. Comentando o relatório da nova equipa de observadores
da OSCE, criada no início da ocupação, Kouchner assinalou
que "uma das tendências mais alarmantes... [é] a
participação crescente de jovens nas violações dos
direitos humanos". A OSCE tinha documentado "sucessivos casos de
jovens, alguns com apenas 10 ou 12 anos, que perseguem, espancam e
ameaçam sobretudo as vítimas idosas indefesas, apenas por causa
da sua etnia"
[87]
.
Tratava-se de uma geração educada no chauvinismo albanês. A
opressão sérvia dos albaneses, tantas vezes denunciada, era
sobretudo uma questão de maus tratos infligidos pela polícia
sérvia a homens suspeitos de infracções e não de
ataques de cidadãos sérvios comuns contra os seus vizinhos
albaneses. Mesmo durante os bombardeamentos houve casos de sérvios que
protegeram os seus vizinhos albaneses. Depois da guerra, Veton Surroi ousou
denunciar a violência contra civis sérvios como
"fascismo". Foi uma excepção. Os albaneses que
quisessem defender os seus vizinhos sérvios não se atreveriam: a
violência do UÇK impedia qualquer gentileza para com os
sérvios. A NATO tinha liberto não o Kosovo no sentido de toda uma
sociedade mas sim os reflexos de uma cultura de ódio, justificada e
até exaltada pela propaganda ocidental.
Os albaneses matavam também outros albaneses, e até mais
albaneses do que sérvios. Podemos ver nisso uma
continuação da guerra travada pelos combatentes do UÇK
para se estabelecerem como senhores da comunidade albanesa. Perante este
problema, a comunidade internacional nomeou o caçador furtivo para
guarda-caça. Depois de um falso "desarmamento" do UÇK,
os seus homens foram recrutados para um chamado "Corpo de
Protecção do Kosovo" (KPC), cuja ambiguidade se exprimia
logo no seu nome. Enquanto os seus padrinhos internacionais afirmam que a
"protecção" se refere à protecção
contra desastres naturais, a palavra albanesa, "Mbrojtes", significa
não "protecção" mas sim "defesa".
Porque o KPC se considera o novo exército do Kosovo. O seu chefe, o
antigo comandante do UÇK Agim Çeku, tinha adquirido triste
notoriedade ao expulsar os sérvios da Krajina enquanto oficial do
exército croata. Os salários desses protectores, alguns dos quais
complementariam os seus salários com o tráfico de drogas ou de
mulheres, eram pagos por um fundo especial da ONU, alimentado pelas
contribuições voluntárias dos Estados Unidos e da Alemanha.
Um favorito dos anglo-americanos, próximo do
lobby
albanês nos Estados Unidos, Ramush Haradinaj, foi nomeado
comandante-adjunto do KPC. Em 1998, quando comandava o UÇK no feudo do
seu clã na região de Decani, no Oeste do Kosovo, foram aí
assassinados quarenta civis. "Muitos cadáveres
sérvios, albaneses e ciganos tinham vestígios de tortura.
Os albaneses moderados da Liga Democrática do Kosovo [o partido de
Rugova] acusaram Haradinaj de estar ligado aos assassínios de civis
suspeitos de terem colaborado com as forças sérvias."
[88]
Haradinaj era um dos comandantes do UÇK equipados com um telefone por
satélite, em 1999, para guiar os ataques da NATO. Quando em Julho de
2000 ele foi ferido durante um assalto armado contra a aldeia fortificada do
clã rival dos Musaj, Haradinaj foi rapidamente transferido para um
hospital militar americano.
Em Março de 2000, Jiri Dienstbier, antigo ministro dos Negócios
Estrangeiros checo, num relatório à comissão da ONU para
os direitos humanos, constatou: "Os bombardeamentos não resolveram
nenhum problema. Eles apenas multiplicaram os problemas existentes e criaram
outros novos." A maior parte do Kosovo tinha sido "etnicamente limpa
dos seus não albaneses, dividida, sem nenhum sistema jurídico,
dominada pelas estruturas ilegais do Exército de
Libertação do Kosovo [UÇK] e muitas vezes por
máfias rivais". Além disso, as forças extremistas do
UÇK eram apoiadas, no seu desejo de criar a "Grande
Albânia", pelo antigo presidente Sali Berisha e outros dirigentes da
Albânia. Esse relatório encontrou pouco eco na imprensa e
não conseguiu influenciar a opinião pública mundial.
A guerra de 1999 deixou uma ferida aberta nos Balcãs. O nacionalismo
albanês triunfante, aproveitando a protecção dos Estados
Unidos, ameaça o Sul da Sérvia, a Macedónia e até
uma parte do Montenegro. A guerra e o desastre económico que ela
provocou entregaram a região às actividades criminosas,
nomeadamente o tráfico de drogas, de armas e de mulheres. Essas
actividades ameaçam mesmo aumentar o nível de violência
criminosa nos países europeus da NATO.
4. A DEMOCRACIA NA NOVA ORDEM MUNDIAL
A primeira cruzada (1096-1099) foi proclamada a partir das igrejas. A cruzada
de 1999 contra os sérvios foi proclamada oficiosamente a partir do mais
sagrado dos lugares de peregrinação contemporâneos, o Museu
do Holocausto em Washington. A ocasião foi um discurso, a 23 de
Fevereiro de 1999, de James Hooper, director executivo do Balkan Action
Council, um
think tank
que reunia alguns dos "falcões" mais eminentes de Washington,
tais como Zbigniew Brzezinski, Frank Carlucci, Jeane Kirkpatrick e Paul
Wolfowitz. Hooper fora convidado pelo "Comité de
Consciência" do Museu. Essa voz da consciência oficial
explicou que "os Balcãs são uma região de interesse
estratégico para os Estados Unidos, a nova Berlim se quiserem, o terreno
de ensaio para a firmeza da NATO e a liderança dos Estados Unidos"
[89]
. Miloevic devia pagar pelo crime de ter "conseguido
dividir" os Estados Unidos dos seus aliados. "A
Administração [Clinton] deve ser franca com o povo americano e
dizer-lhe que provavelmente teremos uma presença militar nos
Balcãs por tempo indeterminado, ao menos até que haja um governo
democrático em Belgrado."
Assim, entre as diversas razões declaradas e não declaradas para
fazer a guerra havia o desejo de escolher o governo de um país
estrangeiro, a célebre "mudança de regime" que se
tornou uma das novas prerrogativas do Império. A palavra
"democrático" neste contexto não indica um governo
eleito segundo as regras democráticas, porque o próprio
Miloevic o havia sido por diversas vezes. E não bastaria
fazê-lo perder uma eleição. Ele tinha de ser
"derrubado por um levantamento popular", para mostrar bem que se
tratava de um "ditador".
Mas o próprio Miloevic tinha antecipado em vários
meses as eleições, que iria perder. Esperava sem dúvida
ganhar, mas o castigo infligido à Jugoslávia teve finalmente o
efeito esperado: um número cada vez maior de jugoslavos culpava
Miloevic pelas desgraças do país, incluindo a perda
de facto
do Kosovo. A insistência da "comunidade internacional" em que
a Jugoslávia seria um pária enquanto Miloevic
aí estivesse era um importante meio de chantagem. E depois, pela
primeira vez, a oposição uniu-se em volta de um candidato
aceitável: Vojislav Kotunica, um jurista bastante conservador, com
a reputação rara de ser patriota e honesto. Os argumentos e os
dólares de Washington tinham persuadido os desavindos dirigentes dos 18
partidos da Oposição Democrática da Sérvia (DOS) a
apoiar Kotunica. O embargo continuava a bloquear a
importação de todos os materiais para reconstruir as pontes e as
fábricas destruídas pela NATO, mas dos Estados Unidos chegava um
rio de dólares para subvencionar os adversários de
Miloevic. Entre os beneficiários dessa generosidade estava
uma rede de jovens bastante desportivos chamada Otpor
("resistência"). Milhões de dólares de ajuda do
governo americano passaram por organizações chamadas
"não governamentais", o National Endowment for Democracy
o mesmo NED que financiava os albaneses do Kosovo e o
International Republican Institute, para fornecer aos cerca de 70 mil membros
da Otpor cartazes,
t-shirts,
desdobráveis, telemóveis, tinta em
spray
e dinheiro de bolso. A única perspectiva política da Otpor era
ser "normal" à moda do Ocidente, um Ocidente de cinema
americano. Entre 31 de Março e 3 de Abril de 2000, num hotel de luxo de
Budapeste, os dirigentes dessa jovem vanguarda aprenderem "métodos
de acção não violenta" com um coronel do
Exército dos Estados Unidos, Robert Helvey. O manual do movimento foi
escrito por um colega de Helvey, Gene Sharp, que enumera 198 métodos de
acção não violenta. A chave é a
provocação. As acções pretendem provocar uma
repressão que vai desacreditar o regime no poder
[90]
. Assim, a Sérvia servia de terreno de ensaio das técnicas que
visam a "mudança de regime", que os estrategos americanos
copiaram dos autênticos movimentos populares do passado para os simularem
no futuro.
Graças à sua infiltração nas instâncias do
poder (uma das técnicas da lista de Sharp), a Otpor conhecia
antecipadamente a data das eleições. Sessenta toneladas de
propaganda eleitoral estavam já preparadas. Na primeira volta, a 24 de
Setembro de 2000, entre cinco candidatos, Miloevic foi segundo,
depois de Kotunica, que obteve mais de 48% dos votos. A lei eleitoral
sérvia exige uma segunda volta se nenhum dos candidatos obtiver 50% na
primeira. Com dez pontos de avanço, Kotunica estava seguro da
vitória. Mas uma pacífica vitória eleitoral não
bastaria. Era preciso qualquer coisa mais dramática. A DOS declarou que
o seu candidato já tinha vencido na primeira volta, que esta tinha sido
"fraudulenta" e que por essa razão boicotaria a segunda volta.
Em vez das urnas, os "democratas" preferiam "a rua", uma
rua bem preparada. Em 5 de Outubro, diante das câmaras de
televisão, levaram à cena um espectáculo tão
artificial como aquele que desembaraçou a Roménia do casal
Ceaucescu, mas felizmente menos sangrento. Num simulacro de
"revolução popular", jovens tomaram de assalto a
Skuptina, o edifício do parlamento no centro de Belgrado,
deitando-lhe fogo... que, por acaso, parece ter destruído os boletins de
voto que poderiam confirmar ou negar as acusações de
"fraude".
Enquanto os "libertadores" deitavam fogo à sede da
Rádio Televisão Sérvia, destruindo arquivos preciosos, as
outras televisões do mundo inteiro difundiam complacentemente as cenas
de vandalismo apresentando-as como a "queda de um ditador" expulso
pela indignação popular.
Para realizar essa proeza, um bando de desordeiros tinha sido transportado para
Belgrado da cidade de Èaèak. O presidente da câmara
municipal de Èaèak, Velimir Ilic, anticomunista
fanático, gabou-se de que o seu "comando" armado de 2000
homens se dirigira para a capital em 5 de Outubro para "tomar o controlo
das instituições-chave". Alguns traziam armas e coletes
à prova de bala. A acção tinha sido preparada
antecipadamente, disse ele orgulhosamente à AFP. Entre os seus homens
encontravam-se antigos pára-quedistas, antigos oficiais do
exército e da polícia, mas também antigos membros das
"forças especiais" que tinham combatido nas guerras da
Croácia e da Bósnia. Assim, alguns dos mesmos paramilitares que
sem dúvida tinham cometido as piores violências da "limpeza
étnica" atribuída aos sérvios foram instantaneamente
promovidos pelos meios de informação ocidentais a heróis
de uma "revolução democrática".
Longe das câmaras, os comandos tomaram de assalto e destruíram a
sede do Partido Socialista. As empresas mais lucrativas foram tomadas, os seus
responsáveis espancados e expulsos. Sem qualquer ligação
com o novo presidente jugoslavo, formaram-se comités de crise para
redistribuir propriedades e cargos. Mais uma demonstração de que
um regime "democrático" não significa que saiu das
urnas, mas sim que é apoiado pela "comunidade internacional".
Mas não é tudo. Para serem aceites pela comunidade internacional,
os novos dirigentes da Jugoslávia teriam de ajudar a NATO a justificar a
destruição do seu país, em primeiro lugar transferindo o
seu presidente para Haia para um julgamento-espectáculo montado pela
organização irmã da NATO, o TPIJ. Não bastava
bombardear a Sérvia e amputar uma parte do seu território. Era
preciso obrigar o povo sérvio a acreditar ou fingir acreditar
que o merecia. Na Nova Ordem Mundial, é preciso adaptar o crime
ao castigo.
NOTAS
58- Richard Holbrooke,
To End a War,
Nova Iorque, Random House, 1998.
59- Holbrooke, pp. 91-92, 96. Hugh McManners, "Serbs "not
guilty" of massacre: Experts warned US that mortar was Bosnian",
The Sunday Times,
1 de Outubro de 1995, p. 15.
60- Timothy W. Crawford, "Pivotal deterrence and the Kosovo war: Why the
Holbrooke agreement failed",
Political Science Quarterly,
22 de Dezembro de 2001, nº 4, vol. 116, p. 499.
61- General de Brigada (ret.) Heinz Loquai, conselheiro militar junto da
delegação alemã na OSCE em Viena, "Die OZCE-Mission
im Kosovo eine ungenutzte Friedenschance?",
Blätter für deutsche und internazionale Politik,
Setembro de 1999.
62- "Moral Combat: NATO at War", documentário difundido pela
BBC2 Television em 12 de Março de 2000.
63-
Der Spiegel,
46/1998, 9 de Novembro de 1998, "Wehrlose Aufpasser", p. 210.
64- Ulisse (pseudónimo), "Come gli Americani hanno sabotato la
missione dell'Osce",
Limes,
suplemento ao nº 1/99, p. 113,
L'Espresso,
Roma, 1999.
65- Pascal Neuffer, geólogo, citado por
La Liberté,
Genebra, 22 de Abril de 1999.
66- Entrevista da autora com o correspondente do
Figaro,
Renaud Girard, em 25 de Janeiro de 2000.
67- Tom Walker & Aidan Laverty, "CIA aided Kosovo guerrilla army",
The Sunday Times,
12 de Março de 2000.
68- Don North, "Irony at Ra?ak: Tainted Diplomat",
The Consortium,
Arlington, Virginia, 8 de Fevereiro de 1999, p. 2.
69- Renaud Girard, "Kosovo: zones d'ombre sur un massacre",
Le Figaro,
20 de Janeiro de 1999, p. 3; Christophe Châtelet, "Les morts de
Racak ont-ils vraiment été massacrés froidement?",
Le Monde,
21 de Janeiro de 1999, p. 2.
70- R. Jeffrey Smith, "Kosovo Attack Called a Massacre",
The Washington Post,
17 de Março de 1999, p. 1.
71- J. Rainio, K. Lalu, A. Penttilä, "Independent forensic autopsies
in
an armed conflict: investigation of the victims from Ra?ak, Kosovo",
Forensic Science International,
116 (2001), pp. 171-185.
72- Crónica de Anna Husarska no
International Herald Tribune,
1 de Agosto de 2001.
73- James Rubin, "Countdown to a Very Personal War",
Financial Times,
30 de Setembro de 2000, e "The Promise of Freedom",
Financial Times,
7 de Outubro de 2000.
74- Tyler Marshall, "U. S. in Kosovo for the Long Haul",
Los Angeles Times,
10 de Junho de 2000.
75- "Meet the Press", 25 de Abril de 1999.
76- Fox News (televisão), 23 de Maio de 1999.
77-
The Washington Post,
28 de Abril de 1999.
78- Michael R. Gordon, "NATO General Urges Hits on Serbian Leaders;
Belgrade
People Must Suffer, Too, He Says",
The New York Times/International Herald Tribune,
14 de Maio de 1999.
79- "Is Serb Economy the True Target? Raids Seem Aimed at Bolstering
Resistance to Miloevic", by Joseph Fitchett,
International Herald Tribune,
26 de Maio de 1999, p. 1.
80-
International Herald Tribune,
31 de Maio de 1999.
81- Rod Nordland, "Vengeance of a Victim Race",
Newsweek,
12 de Abril de 1999.
82- Daniel Jonah Goldhagen, "If you rebuild it... A New Serbia",
The New Republic,
17 de Maio de 1999.
83- Daniel Pearl & Robert Block, "Despite Tales, the War in Kosovo Was
Savage, but Wasn't Genocide",
Wall Street Journal,
31 de Dezembro de 1999.
84- Heinz Loquai,
Der Kosovo-Konflikt: Wege in einen vermeidbaren Krieg,
The Institute for Peace Research and Security Policy of the University of
Hamburg, Nomos, Baden-Baden, 2000, pp. 138-144. John Goetz & Tom Walker,
"Serbian ethnic cleansing scare was a fake, says general",
The Sunday Times
(Londres), 2 de Abril de 2000.
85- Bernard Kouchner, "The Long Path Toward Reconciliation in
Kosovo",
Los Angeles Times/International Herald Tribune,
27 de Outubro de 1999.
86- Entrevista com Bernard Kouchner por Catherine Perron, "Kosovo: Le
courage
de Sisyphe",
Politique Internationale,
Paris, Inverno de 1999-2000, pp. 69-90.
87- Citação do prefácio escrito por Kouchner para o segundo
volume do relatório da OSCE sobre as violações dos
direitos humanos,
Kosovo/Kosova: As Seen, As Told.
Este relatório foi redigido por uma nova missão da OSCE no
Kosovo, OMIK, dirigida por um diplomata neerlandês, Daan Everts, que
começou os seus inquéritos em Julho de 1999.
88- Tom Walker, "Cook held talks with war crime suspect",
The Sunday Times,
Londres, 29 de Abril de 2001.
89- Anthony Lewis,
The New York Times/International Herald Tribune,
12 de Abril de 1999.
90- Roger Cohen, "Who Really Brought Down Miloevic?",
The New York Times Sunday Magazine,
26 de Novembro de 2000.
[*]
Jornalista, americana, residente em Paris. Trabalhou para a Agence France
Presse e diversas publicações, incluindo
Le Monde Diplomatique.
Entre 1979 e 1989 foi correspondente europeia do semanário
social-democrata de Chicago
In These Times.
O seu livro
The Politics of Euromissiles: Europe in America's World
foi publicado pela editora Verso, Londres, 1984. De 1990 a 1996 foi adida
de imprensa do Grupo Verde no Parlamento Europeu.
Este texto é extraído do capítulo 5 (O novo modelo
imperial) de
Cruzada de cegos: Jugoslávia, a primeira guerra da globalização
, Editorial Caminho, Lisboa, 2006, 381 pgs., ISBN 972-21-1764-5.
Este texto encontra-se em
http://resistir.info/
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