Da barbárie colonial à política nazista de
extermínio
por Rosa Amelia Plummelle-Uribe
A autora de
"A Ferocidade branca"
[Albin Michel, 2001] desenvolve uma
argumentação original e pertinente que Césaire exprimira
com convicção no seu "Discurso sobre o colonialismo", o
elo entre as políticas de destruição colonial, o
enselvageamento das sociedades europeias e, em retorno, o choque do nazismo
sobre essas mesmas sociedades. Afrikara publica o texto duma
comunicação dessa militante afro-descendente, apresentada dia 15
de Junho em Berlim no âmbito do Fórum de Diálogo organizado
pela secção europeia da Fundação AfricAvenir.
Estamos reunidos aqui para analisar em conjunto o elo histórico que,
como um fio condutor, leva da barbárie colonial à política
nazista de extermínio. Trata-se de um esforço que visa detectar
pelo menos a maioria dos factores que, de maneira directa ou indirecta, teriam
favorecido o desenvolvimento político e o desabrochar ideológico
da empresa de desumanização que foi a barbárie nazista, na
Alemanha e para lá das suas fronteiras.
Esta contribuição será útil a todo o esforço
que almeje pôr fim a todo o tipo de discriminação, donde
quer que ela venha; a começar pela discriminação que
consiste em classificar os crimes, para mais tarde, segundo a identidade das
vítimas ou, por vezes, a dos carrascos, seleccionar o crime que se deve
condenar. Esta hierarquização dos crimes e, portanto, a da sua
condenação, continua sendo um entrave decisivo na luta pela
prevenção dos crimes contra a humanidade, entre os quais o crime
de genocídio.
Escravatura e tráfico de escravos
Convém precisar logo de princípio que as guerras de conquista e
os crimes associados ao domínio colonial, tal como a
redução de seres humanos à escravatura, eram já
realidade desde tempos imemoriais. Por exemplo, quando o domínio dos
árabes muçulmanos se estende em direcção à
Europa, o comércio de seres humanos é já uma actividade
milenar entre os europeus. O reinado do Islão em Espanha de 711
até 1492 limitou-se a dinamizar o tráfico de escravos dentro de
Europa
[1]
, fazendo do continente um importante fornecedor de escravos, homens e
mulheres, expedidos para os países do Islão.
Os prisioneiros, maioritariamente eslavos, alimentavam o comércio de
homens entre Veneza e o império arabo-muçulmano do
Mediterrâneo sul. É assim que nas línguas ocidentais a
palavra "escravo" ou "eslavo" substitui o
"servus" latino para designar os trabalhadores privados de liberdade.
Dito doutra maneira, durante vários séculos cristãos
europeus venderam outros europeus a comerciantes judeus especializados no
fabrico de eunucos
[2]
, mercadoria bastante consumida e fortemente solicitada nos países do
império muçulmano.
Investigadores, especialistas em escravatura na Europa medieval, viram no
sistema de servidão inaugurado na América pelo domínio
colonial um elo de continuação com as instituições
esclavagistas da Europa. Jacques Heer disse que "pertence a Charles
Verlinden o mérito incontestável pela tese, verdadeiramente
pioneira, de ter reparado que a conquista e a exploração
coloniais das Américas terem sido largamente inspiradas em certas
experiências bem recentes no Mediterrâneo e inscrevem-se em linha
direita numa continuidade inimterrupta em precedentes medievais."
[3]
Decidi, no entanto, abordar esta análise a partir de 1492, ano da
chegada dos europeus ao continente americano. E fiz tal escolha porque, apesar
do que acabou de ser dito, a destruição dos povos
indígenas da América, a instauração do
domínio colonial e o sistema de desumanização dos negros
nesse continente não tiveram precedentes na história. E
sobretudo, porque o prolongamento desta experiência durante mais de
três séculos, condicionou em larga escala a
sistematização teórica das desigualdades, entre outras a
desigualdade racial, cujas consequências continuam na actualidade.
O primeiro genocídio dos tempos modernos
Os historiadores do século XX, estudando a conquista da América,
chegaram mais ou menos a acordo na estimativa do número de habitantes do
continente americano antes da invasão. Afirmou-se então que,
antes de 1500, à volta de 80 milhões de pessoas habitavam o
continente americano. Estes números foram comparados aos obtidos
cinquenta anos mais tarde de recenseamentos espanhóis.
[4]
Concui-se então que, à volta de 1550, de 80 milhões de
indígenas não resta mais que 10 milhões. Ou seja, em
termos relativos, uma destruição da ordem de 90% da
população. Uma verdadeira hecatombe uma vez que, em termos
absolutos, trata-se de uma diminuição de 70 milhões de
seres humanos. E mais, importa saber que, nos últimos anos,
historiadores sul-americanos chegaram à conclusão que, na
realidade, nas vésperas da conquista, havia na América mais de
100 milhões de habitantes. Do ponto de vista europeu estas estimativas
são inaceitáveis, e com razão! Se isso fosse verdade,
estaríamos perante uma diminuição de 90 milhões de
seres humanos.
Mas, para além do número de indígenas exterminados, o
comportamento adoptado pelos conquistadores cristãos teve
consequências que perduram. Por exemplo, a justificação
posterior desse genocídio condicionou a evolução cultural,
ideológica e política da supermacia branca em
relação aos outros povos não-europeus, e no fim, mesmo
dentro da própria Europa.
A situação de impunidade de que beneficiavam os conquistadores
deveria fatalmente favorecer o aparecimento muito rápido de
prácticas bastante inquietantes. Por exemplo, o mau hábio de
alimentar os cães com indígenas e por vezes com
bébés arrancados às suas mães e lançados
como pasto a cães esfomeados. Ou a tendência de se divertir
queimando indígenas vivos lançados a piras acesas para os assar.
[5]
Esse desastre foi a primeira consequência directa daquilo que os manuais
de história continuam a chamar 'a descoberta da América'.
A solução africana
Após terem esvaziado o continente americano da sua
população, as potências ocidentais nascentes fizeram da
África negra uma fornecedora de escravos para a América. Esse
empresa desagregou a economia dos países africanos e esvaziou o
continente duma parte da sua população, naquilo que é a
deportação de seres humanos mais gigantesca que a história
da humanidade alguma vez conheceu. Aqui convém lembrar a
situação dos países africanos no momento em que foram
abordados pelos europeus.
É um facto que, mesmo que o modo de produção em
África não fosse fundamentalmente esclavagista, essas sociedades
conheciam certas formas de servidão. Como dissemos, na Idade
Média, a escravatura, tal como a venda de seres humanos, eram
práctica bastante generalizada e a África não era
excepção. Após o século VII a África negra,
tal como a Europa após o século VIII, abastece de escravos os
países do império arabo-muçulmano.
Parece que nessa época a dimensão e as modalidades do
tráfico de escravos não seriam incompatíveis com o
crescimento económico nos países a que esse comérico de
seres humanos dizia respeito. Admite-se, aliás frequentemente, que
é sob o reinado do Islão na Espanha que a Europa começou a
sair das trevas da Idade Média. Relativamente à África,
note-se que, no século XV, apesar das investidas do tráfico
negreiro arabo-muçulmano, os países desse continente gozavam dum
bom nível de bem-estar social.
O despovoamento do continente, assim como a miséria e a indigência
dos seus habitantes doentes e esfaimados, descritas pelos viajantes que
exploraram a África negra no século XIX, contrastam com os
países densamente povoados, a economia florescente, a agricultura
abundante, o artesanato diversificado, o comércio intenso, e, sobretudo,
com o nível de bem-estar social descritos pelos viajantes,
geógrafos e navegadores que exploraram a África negra entre os
séculos VIII e XVII, e cujos testemunhos conhecemos presentementes
graças a diversas pesquisas, entre outras as de Diop Maes.
[6]
Entre os séculos XVI e XIX as guerras e as razias em cadeia provocadas
pelos negreiros em busca de cativos, conduziram à
destruição quase irreversível da economia, do tecido
social e da demografia dos povos africanos. A acumulação dos
tráficos árabe e europeu, com a ajuda de armas de fogo, o
carácter maciço, na verdade industrial, do tráfico
negreiro transatlântico em crescimento constante, causaram em três
séculos uma devastação que o continente nunca conhecera
até então. Este novo desastre foi a segunda consequência da
colonização da América.
Uma empresa de desumanização
No quadro do domínio colonial sobre o continente americano, os
indígenas sobreviventes, despojados das suas terras, foram repelidos e
encerrados em reservas. Ao mesmo tempo, milhões de mulheres,
crianças e homens africanos, arrancados da sua terra e deportados para a
América, foram sistematicamente excluídos da espécie
humana e reduzidos à categoria de bem móvel ou de sub-humano. A
inferioridade racial dos não-brancos e a sua irmã gémea, a
superioridade da raça branca, tomaram forma de lei, sendo consagradas
pelo cristianismo e consolidadas nos factos.
As potências coloniais, Espanha, Portugal, França, Inglaterra,
Holanda, dotaram-se dum quadro jurídico no qual a
desumanização dos negros passaria a ser legal. Consequentemente,
cada metrópole tinha o seu arsenal jurídico para regulamentar a
sua política genocida no universo concentracionário da
América. Nesse aspecto a codificação mais conseguida
terá sido o código negro francês
[7]
.
Promulgado em 1685, essa monstruosidade jurídica esteve em vigor
até 1848, aquando da segunda abolição da escravatura nas
colónias francesas.
É significativo que, pelo menos durante os séculos XVI e XVII,
tanto quanto saibamos, não houve uma única voz com autoridade que
denunciasse e condenasse a exclusão legal dos negros da espécie
humana. Mesmo durante o século XVIII, que foi o século das Luzes,
nenhum dos grandes filósofos exigiu formalmente das autoridades
competentes a supressão imediata, real, sem adiamentos, das leis que
regulavam esses crimes.
[8]
Uma ideologia partilhada unanimemente
Tem-se por hábito ignorar que é graças à
racialização da escravatura no universo concentracionário
da América, que a superioridade da raça branca e a inferioridade
dos negros se tornaram um axioma profundamente enraizado na cultura ocidental.
É bom saber que foi essa herança perniciosa do domínio
colonial europeu, combinada com os efeitos nefastos dessa mania das Luzes de
tudo ordenar, hierarquizar e classificar, que estimulou a criação
duma cultura mais ou menos favorável ao extermínio de grupos
considerados inferiores.
Entre os séculos XV e XIX, toda a produção
literária e científica relativa aos povos indígenas da
América procurava justificar o seu extermínio passado e futuro.
Após três longos séculos de barbárie colonial sob
controlo cristão, um dos princípios validados pelos
católicos espanhóis foi a certeza de que matar índios
não é um pecado.
[9]
Essa consciência foi reforçada pelos protestantes
anglófonos, convencidos de que o índio bom é o
índio morto. Da mesma maneira, toda a literatura relativa à
bestialização dos negros no universo concentracionário da
América era uma verdadeira propaganda a favor do tráfico negreiro
e da escravatura dos negros apresentados como um progresso da
civilização.
Quando finalmente se deu o desmantelamento do universo concentracionário
da América, a mudança provocada pelas abolições da
escravatura teve um alcance deveras limitado. Em primeiro lugar porque o
essencial das estruturas e relações sociais e económicas
introduzidas pela barbárie institucionalizada quase não sofreram
mudança. E também porque o triunfo do pensamento
científico sobre a fé religiosa deu à raça dos
senhores e aos valores da civilização ocidental uma credibilidade
que a religião não beneficiava já junto dos
espíritos esclarecidos. Desde esse momento, a colonização
e os actos de barbárie que lhe são consubstanciais, por exemplo o
extermínio de grupos considerados inferiores, far-se-ão tendo
como suporte um discurso científico.
Uma cultura de extermínio
Seria útil um estudo rigoroso sobre o papel dos cientistas ocidentais no
desenvolvimento da cultura de extermínio que prevaleceu no século
XIX e no princípio do século XX nos países colonizadores.
Apesar da sua relação estreita com a nossa análise, esse
não é o assunto central desta comunicação. Podemos,
no entanto, revelar algumas pistas para aqueles que queiram retomar o assunto e
esclarecer-se.
Parece que, em meados do século XIX, as associações
científicas mais prestigiosas foram a Geographical Society, a
Anthropological Society em Londres e a Société de Géologie
em Paris. Em 19 de Janeiro de 1864 teve lugar uma mesa redonda organizada pela
Anthropological Society sobre o tema "a extinção das
raças inferiores". Esteve em discussão o direito das
raças superiores de colonizar os espaços territoriais
considerados vitais para os seus interesses.
No Journal of the Anthropological Society of London, vol. 165, 1864
foi
publicado um relatório dos debates da Conferência. Tratava-se de
saber se, em todos os casos de colonização, seria
inevitável a extinção das raças inferiores ou se
alguma vez seria possível que elas pudessem coexistir com a raça
superior sem serem eliminadas.
[10]
Nessa altura a Inglaterra tinha já cometido, além do
genocídio dos indígenas da América do Norte, o dos
aborígenes da Austrália, entre eles o dos tasmanianos.
Em França, Albert Sarraut ensinava os alunos da Escola colonial
afirmando: "seria pueril opôr às empresas europeias de
colonização um pretenso direito de ocupação
[
] que perpetuaria em mãos incapazes a vã posse de riquezas
sem emprego".
[11]
Por outro lado, o sociólogo francês Georges Vacher de Lapouge
defendia que não havia nada de mais normal que a redução
das raças inferiores à escravatura e exigia uma única
raça superior nivelada pela selecção.
Cientistas reticentes
Note-se que a maioria dos antropólogos alemães, mesmo convencidos
da sua superioridade racial, não partilhavam com os seus colegas
britânicos, norte-americanos e franceses a convicção que as
raças inferirores devessem necessariamente desaparecer ao contacto com a
civilização. O professor Théodore Waitz, por exemplo,
desenvolve entre 1859-1862 um trabalho em que contesta os fundamentos das
teorias propagadas pelos seus colegas ocidentais empenhados na
justificação científica dos extermínios cometidos
pelos seus países.
Mais tarde, o seu discípulo George Gerland faz em 1868 um estudo sobre o
extermínio das raças inferiores. Nele denuncia a violência
física exercida pelos colonizadores como sendo o factor de
extermínio mais tangível e afirma que não existe nenhuma
lei natural que diga os povos primitivos devam de desaparecer para que a
civilização avance. O arrazoado deste cientista alemão
pelo direito à vida das raças ditas inferiores é um facto
raríssimo neste período da história.
Em 1891 o professor alemão Friedrich Ratzel publica o seu livro
"Antropogeografia" onde, no décimo capítulo
sub-intitulado "O declínio dos povos de culturas inferiores ao
contacto com a cultura", exprime a sua hostilidade em
relação à destruição dos povos
indígenas: "Tornou-se uma regra deplorável, que os povos
fracamente avançados morram ao contacto com os povos altamente
civilizados". Isto aplica-se à vasta maioria dos australianos,
polinésios, asiáticos do norte, americanos do norte e numerosos
povos da África do Sul e da América do Sul.
(
) Os indígenas são mortos, perseguidos, proletarizados e
a sua organização social é destruída. A
característica principal da política dos brancos é o uso
da violência dos fortes contra os fracos. O objectivo é
apoderar-se das suas terras. Este fenómeno tomou a sua forma mais
intensa na América do Norte. Brancos sedentos de terra amontoam-se entre
povoamentos índios fracos e parcialmente desintegrados."
[12]
Este teria sido o último discurso em que o professor Ratzel exprimiu um
ponto de vista tão pouco favorável à
extinção dos povos inferiores.
Uma evolução infeliz
As antigas potências negreiras, reunidas em Berlim em 1884-1885,
oficializam a divisão da África. A Alemanha apodera-se do
controlo do sudoeste africano (ou seja, a Namíbia), do leste africano
(correspondendo aos actuais territórios da Tanzânia, do Burundi e
do Ruanda) e também do controlo sobre o Togo e Camarões.
A entrada da Alemanha na empresa colonial constitui um hiato sensível
entre o discurso dos cientistas alemães de antes dos anos 1890 e o que
passarão a ter após os anos de 1890 sobre o mesmo assunto: o
extermínio das raças inferiores ou a sua subjugação
consoante as necessidades dos conquistadores e o progresso da
civilização.
Com efeito, em 1897 o professor Ratzel publica a sua obra "Geografia
política" na qual toma a peito o extermínio das raças
inferirores. Nela afirma que um povo em desenvolvimento e que necessite de mais
terras deve conquistá-las "as quais, por morte ou
transferência dos seus habitantes são transformadas em terras
inabitadas".
[13]
O domínio económico combinado com métodos racistas deu
à luz a supremacia branca cristã. A sua ideologia
hegemónica reina sem fracções sobre o planeta e vive todo
o seu esplendor entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade
do século XX. Mesmo nos países antes colonizados, o
extermínio das raças inferiores era considerado política
oficial.
Uma ideologia triunfante
A maioria dos países da América tornam-se independentes no
século XIX. As classes dirigentes desses países crêem-se
brancas, por provirem de aventureiros europeus que a mais das vezes violavam
mulheres indígenas. Chegados ao poder na sequência de guerras de
independência, essas elites sempre se indentificaram com o seu
antepassado branco. De facto adoptaram os métodos de extermínio
de indígenas herdados da colonização.
Em Abril de 1834 as autoridades da Argentina, país recentemente
independente, desencadearam a "Campaña del Desierto" (Campanha
do Deserto), cujo objectivo é o extermínio dos indígenas
sobreviventes que ocupam a pampa. Dirigida por Juan Manuel de Rosas, Presidente
da Argentina desde 1835, essa campanha foi coordenada com o governo do Chile. O
primeiro governo constitucional do Uruguai, dirigido por Fructuoso Rivera
juntou-se também à Campanha que devia transformar essas terras
em espaços inabitados.
Apesar da violência extrema da 'Campanha' nem todos os indígenas
são mortos, para grande desgosto do presidente Rosas, para quem os
índios se reproduziam como insectos. Para remediar esse fracasso, em
1878, por iniciativa do ministro da Guerra Julio Argentino Roca, o Congresso
Nacional argentino vota e aprova a lei "de expansión de las
fronteras hasta el Rio Negro" (expansão das fronteiras). É o
ponto de partida da segunda "Campanha do Deserto" que deverá
esvaziar definitivamente a Pampa da sua população indígena
para fazer avançar a civilização.
Um espaço vital antes do seu tempo
A "Campanha" teve lugar na altura em que os sobreviventes
indígenas eram acossados por todo o lado no continente. Na
América do Norte são massacrados e repelidos a fim de libertar um
espaço tornado vital para a instalação de famílias
civilizadas, isto é, brancas. Na Argentina o objectivo reconhecido da
"Campanha" é o mesmo: substituição da
população local por uma população civilizada que
possa garantir a incorporação efectiva da Pampa e da
Patagónia na nação do Estado Argentino.
Algumas décadas mais tarde Heinrich Himmler defenderá o mesmo
princípio de substituição de populações ao
afirmar: "O único meio de resolver o problema social é que
um grupo mate os outros e se apodere dos seus países."
[14]
Mas, por enquanto, isso passava-se na América e em detrimento de
populações não-europeias. O ministro Roca,
responsável pela segunda "Campanha do Deserto", chegou mesmo a
ganhar as eleições de 1880 tornando-se presidente da Argentina.
É certo que algumas vozes se levantaram para criticar a barbárie
das atrocidades cometidas durante a Campanha. Mas, duma forma geral, a
inferioridade das vítimas não era contestada e o governo de Julio
Roca, chamado de conquistador do Deserto, é tido como o fundador da
Argentina moderna. A história desse país registou principalmente
que foi sob a Presidência de Roca que o país avançou em
direcção à separação da igreja e do Estado,
ao casamento civil, ao registo civil dos nascimentos e à
educação. Uma das maiores cidades da Patagónia tem o nome
de Roca.
Não há muito tempo o historiador Félix Luna afirmava, sem
se rir, que: "Roca encarnou o progresso, integrou a Argentina no mundo:
ponho-me no seu lugar para compreender o que implicava exterminar algumas
centenas de índios para poder governar. É preciso considerar o
contexto da época, em que se vivia uma atmosfera darwinista que
favorecia a sobrevivência do mais forte e a superioridade da raça
branca (
) Com erros e abusos, com um custo, Roca construiu a Argentina
que nós gozamos hoje em dia: os parques, os edifícios, o
palácio das Obras Sanitárias, o dos Tribunais, a Casa do
Governo."
[15]
Extermináveis, pois inferiores
Notar-se-á que, após o primeiro genocídio dos tempos
modernos, cometido pelos cristãos na América a partir de 1492, a
situação dos povos não-europeus em geral e dos negros em
particular encontra-se ritmada pelas exigências da supremacia branca. No
universo concentracionário da América, o negro, excluído
da espécie humana, na forma de sub-humano ou de bem móvel,
não foi jamais reintegrado ou reinstalado na sua humanidade. E os
indígenas sobreviventes foram massivamente massacrados para tornar
inabitáveis as suas terras.
Na África o povo congolês sob a administração desse
carrasco que foi o Rei Leopoldo, foi submetido a formas de
subjugação que causaram a destruição de metade da
população, que passou de vinte milhões a 10 milhões
de habitantes.
[16]
Nesse mesmo continente a Alemanha também, tal como outros antes dela,
aplicará os bons princípios da colonização. Entre
1904 e 1906, ou seja, no intervalo de dois anos, os alemães exterminaram
três quartos do povo Herero. Sem contar os mortos dos Nama, Baster,
Hotentotes, etc.
[17]
No quadro do domínio colonial alemão na Namíbia, o
professor Eugen Fischer irá estudar em 1908, entre os Baster instalados
em Rehoboth, "o problema da bastardização entre os seres
humanos". As recomendações do investigador são sem
rodeios. Pode-se ler no seu tratado sobre os mestiços: "Que se lhes
garanta portanto o nível preciso de protecção que lhes
seja necessário, como raça inferior à nossa, nada mais, e
unicamente na medida em que nos forem úteis. Doutra forma, que entre em
jogo a livre concorrência, isto é, na minha opinião, que
desapareçam."
[18]
Este trabalho, no qual o professor Fischer considerava ter demonstrado
cientificamente a inferioridade dos negros, fez a glória do seu autor,
cujo prestígio passou além das fronteiras do seu país.
Anos mais tarde, quando em 1933 Adolf Hitler chega ao poder na Alemanha, o
professor Fischer, muito naturalmente, porá ao serviço da
política racial do novo Estado o prestígio e a autoridade que lhe
conferiram a condição de cientista de renome mundial. De facto,
foi esse o caso do establishment científico em conjunto.
[19]
O perigo de se ser classificado como inferior
É um facto verificável que, nos finais do século XIX e
durante as primeiras décadas do século XX, o extermínio de
seres inferiores ou a programação do seu desaparecimento era uma
realidade que não levantava grandes vagas de solidariedade para com as
vítimas. É por isso que os dirigentes nazistas se aplicaram a
convencer os alemães que os judeus, tal como os eslavos e outros grupos,
eram diferentes e consequentemente inferiores.
É nesse contexto, tão favorável ao extermínio dos
inferiores, que os conselheiros científicos do plano quadrienal
encarregado de planificar a economia da Alemanha nazista, levando a
lógica da aniquilação mais longe que os seus
predecessores, e numa combinação, tão terrível
quanto sinistra, de factores ideológicos e motivações
utilitárias, programaram o extermínio do Leste, de 30
milhões de seres humanos.
No seu ensaio "Os arquitectos do extermínio ", Susanne Heim e
Götz Aly sublinham que os planificadores da economia, escolhidos
não em função da sua militância política, mas
da sua competência profissional, basearam o seu processo sobre
considerações puramente económicas e geopolíticas,
sem a mínima referência à ideologia racial. Narram o
relatório duma reunião durante a qual os conselheiros
económicos explicaram, na presença de Goebbels, o seu plano de
aprovisionamento alimentar.
Este último anotou no seu diário em 2 de Maio de 1941 que:
"A guerra não pode continuar a menos que a Rússia
forneça víveres a todas as forças armadas alemãs
durante o terceiro ano da guerra. Milhões de pessoas morrerão
certamente de fome se os víveres que nos são necessários
forem retirados ao país"
[20]
Com efeito, esse plano deveria fazer morrer à volta de 30
milhões de eslavos numa primeira altura. Mas isso deveria assegurar o
aprovisionamento de víveres durante um ano e, para mais, tornar
inabitáveis terras onde famílias alemãs seriam instaladas.
Uma tradição sinistra
Assim, Hermann Göring, cujo pai fora o primeiro governador alemão
da Namíbia, podia afirmar em 1941 ao seu camarada, o ministro italiano
dos Negócios estrangeiros, o conde Ciano que: "Este ano, entre 20 a
30 milhões de pessoas morrerão de fome na Rússia. Talvez
seja o melhor, uma vez que certas nações devem de ser
dizimadas."
[21]
Aqueles que, numa associação extrema de ideologia racista e
motivação utilitária, programavam o extermínio de
30 milhões de eslavos, podiam programar sem estados-de-alma o
extermínio dum outro grupo também considerado inferior, neste
caso, os judeus.
Não é por acaso que o professor Wolfang Abel: "encarregado
pelo alto-comando das forças armadas de realizar estudos
antropológicos sobre prisioneiros de guerra soviéticos,
propôs entre outras opções a liquidação do
povo russo"
[22]
O professor Abel fora discípulo do professor Fischer antes de se tornar
seu assistente. Juntos, foram os primeiros peritos científicos
encarregados de seleccionar aqueles que, culpados de não serem arianos,
deveriam ser exterminados em Auschwitz ou algures.
[23]
Quanto aos soviéticos: "Em 1 de Fevereiro de 1942, de 3,3
milhões de soldados do Exército Vermelho feitos prisioneiros, 2
milhões haviam já morrido nos campos alemães ou no decurso
dos transportes, ou seja 60%. Se se descontar as três primeiras semanas
da guerra, no decurso das quais os primeiros prisioneiros teriam podido
sobreviver graças às reservas corporais, o número
correspondia a uma taxa de mortalidade de 10 mil homens por dia."
[24]
A tragédia de uns e o lucro de outros
A grande maioria dos alemães, contente de se encontrar do lado
bom, aceitou o facto consumado, isto é, a exclusão dos
não-arianos, e dele tirou todos os benefícios possíveis.
É preciso dizer que, na época, a solidariedade para com os grupos
considerados inferiores não fazia de facto sucesso na cultura dominante.
Vários séculos de matraqueamento ideológico para
justificar o esmagamento dos povos colonizados e subjugados decerto não
favoreceu a humanidade dos que ganhavam com isso.
[25]
Como diz tão bem Aly: "O governo nazista realizou o sonho dum
automóvel popular, introduziu um conceito de férias practicamente
desconhecido até então, duplicou o número de dias de
férias e pôs-se a desenvolver o turismo de massa que nos é
hoje familiar. (
) Também a libertação fiscal dos
subsídios de trabalho nocturno, os domingos e os feriados após a
vitória sobre a França, e considerada, até à sua
recente posta em práctica como uma conquista social. (
) Hitler
melhorou a vida dos arianos comuns à custa do mínimo vital de
outras categorias."
[26]
O dinheiro espoliado aos judeus da Europa e aos países sob
ocupação alemã serviu para o governo nazista financiar a
sua política social, que visava favorecer o nível de vida da
população ariana. Compreende-se que, após a guerra, tantos
alemães tenham admitido em privado que o período mais
próspero da sua vida tenha sido sob o governo nazista, inclusivé
durante a guerra
Conclusão
O domínio colonial sobre outros povos tem sempre fornecido as
condições indispensáveis para a introdução
de sistemas de subjugação e desumanização friamente
regulamentados. Foi esse o caso no universo concentracionário da
América, onde as potências coloniais inventaram um sistema
jurídico dentro do qual a bestialização dos negros, por
serem negros, se fazia com toda a legalidade. No século XIX, a
colonização britânica da Austrália recomeçou
o genocídio cometido na América do Norte.
Na África os povos congoleses sofreram o seu Adolf Hitler encarnado no
Rei dos Belgas que, não satisfeito por matar metade das suas
populações, cortava a mão aos que tentavam fugir aos
trabalhos forçados.
[27]
Na Namíbia, a Alemanha colonial cometeu o seu primeiro genocídio
e tanto posso continuar como ficar por aqui. Há mais do que suficiente
para se compreender que a empresa nazista de desumanização se
inscreve continuamente e sem interrupção na barbárie
colonial.
No fim da guerra as potências coloniais vitoriosas decretaram que o
nazismo seria incompreensível e atroz, uma vez que, atrás das
suas atrocidades, não havia qualquer racionalidade económica.
Tendo sido sempre a motivação utilitária a causa das
empresas de desumanização levadas a cabo contra outros povos
não-europeus, era absolutamente necessário que a empresa nazista
de desumanização fosse desprovida de qualquer
motivação utilitária. Daí essa abordagem
reducionista que isolou historicamente o nazismo, focando a
atenção sobre as atrocidades cometidas pelos nazistas e
abstraindo dos factores sem os quais, cada qual deveria sabê-lo, esse
desastre horroroso não teria jamais tomado a desproporção
que lhe conhecemos.
10/Setembro/2006
1- Sobre este assunto veja-se Charles Verlinden, L'esclavage dans l'Europe
médiévale, Tome 1 Péninsule Ibérique, France 1955 ;
Tome 2 Italie Colonies italiennes du Levant latin Empire Byzantin, 1977.
2- Verlinden, L'esclavage dans l'Europe médiévale, Tome 2,
especialmente no capítulo II La traite vénitienne et la traite
juive, p. 115 e seguintes, e também no capítulo III La traite des
eunuques, p. 981 e seguintes. Este livro, impossível de encontrar
à venda, pode ser consultado na biblioteca do Centro Pompidou e na da
Sorbonne.
3- Jacques Heers, Esclaves et domestiques au Moyen Âge dans le monde
méditerranéen, Paris, 1981, p. 12.
4- Sobre este assunto veja-se Tzvetan Todorov, La conqête de
l'Amérique. La question de l'autre, Paris, 1982.
5- Veja-se Bartolomé de Las Casas, Brevísima relación de
la destrucción de las Indias, Buenos Aires, 1966 e também
Historia de las Indias, México, Fondo de Cultura Económica, 1951.
6- O leitor poderá consultar com proveito a obra pioneira de Louise
Marie Diop Maes, Afrique Noire Démographie Sol et Histoire, Paris, 1996.
7- Louis Sala-Molins, Le code noir ou le calvaire de Canaan, Paris, 1987.
8- Louis Sala-Molins, Les Misères des Lumières. Sous la Raison,
l'outrage, Paris, 1992
9- Em 1972, na Colômbia, um grupo de camponeses analfabetos teve de
responder em tribunal pelo massacre premeditado de dezoito indígenas,
homens, mulheres e crianças. Os acusados foram absolvidos por um
júri popular, uma vez que eles não sabiam que matar índios
era um pecado, quanto mais um delito. Veja-se sobre este assunto Rosa Amelia
Plumelle-Uribe, La férocité blanche Des non-Blancs aux non-Aryens
Génocides occultés de 1492 à nos jours, Paris, 2001.
10- Sven Lindqvist,
Exterminez toutes ces brutes. L'odysée d'un homme au cur de la nuit et les origines du génocide européen
, Paris, 1999.
11- Aimé Césaire, Discours sur le colonialisme, Paris, 1955.
12- Lindqvist, op. cit., p. 189-190.
13- Ibid, p. 192.
14- Götz Aly e Susanne Heim, Les architectes de l'extermination Auschwitz
et la logique de l'anéantissement, Paris, 2006, p. 25-26.
15- Consulte-se Diana Lenton, La cuestion de los Indios y el genocidio en los
tiempos de Roca : sus repercusiones en la prensa y la politica, SAAP- Sociedad
Argentina de Análisis Politico
www.saap.org.ar/esp/page
Veja-se
também Osvaldo Bayer, no jornal argentino Página/12,
Sábado, 22 de Outubro de 2005.
16- Adam Hochschild, Les fantômes du roi Léopold II. Un holocauste
oublié, Paris, 1998.
17- Ingol Diener, Apartheid ! La cassure, Paris, 1986.
18- Benno Muller-Hill, Science nazie, science de mort, Paris, 1989, p. 194.
19- Consulte-se Muller-Hill
20- Aly et Heim, op. cit., p. 271-272.
21- Ibid, p. 267.
22- Ibid, p. 289.
23- Muller-Hill, op. cit.
24- Götz Aly, Comment Hitler a acheté les Allemands, Paris, 2005,
p. 172.
25- Veja-se Plumelle-Uribe, op. cit.
26- Götz Aly, Comment Hitler a acheté les Allemands, p. 9, 28.
27- Hochschild, op. cit.
O original encontra-se em
http://www.afrikara.com/index.php?page=contenu&art=1386
Tradução de DF.
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
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