Para aquele que vive nas trevas
William McKinley, candidato republicano às eleições
presidenciais de 1900, baseou grande parte de sua plataforma na idéia da
responsabilidade dos Estados Unidos pelos territórios então
tomados à Espanha. Alegando a necessidade da defesa desses novos
territórios, McKinley alertava para a urgência de se acabar com as
insurreições armadas nesses locais e, assim, conferir as
"bênçãos" da civilização aos povos
libertados.
Twain tratou do assunto neste que é um de seus mais importantes e
controvertidos ensaios sobre o imperialismo. Ironizando a idéia da
civilização como "bênção" oferecida
aos que "vivem na escuridão", ele trata de questões
diversas relacionadas ao tema do antiimperialismo: as agressões
cometidas na cidade de Nova York sob os auspícios do chefe
político de Tammany Hall, Richard Croker, as indenizações
cobradas pelos missionários mortos logo após a Rebelião
dos Boxers, a política repressora designada como "luva de
aço" aplicada pelo kaiser alemão contra a China e as
atrocidades cometidas pelos ingleses na África do Sul e pelo
Exército dos Estados Unidos nas Filipinas.
A crítica dirigida por ele aos missionários era constante e
cerrada; apesar disso, a estratégia dos missionários de responder
apenas aos comentários que lhes diziam respeito contribuiu para que
questões como a Guerra das Filipinas e as atividades missionárias
na China fossem tratadas como aspectos totalmente diferenciados, o que
evidentemente dificultava a percepção crítica do processo
imperialista nelas implícito.
Para Twain tratava-se de problemas análogos. No artigo intitulado
"A causa do reverendo doutor Ament, missionário", de 1901, ele
afirma não haver diferença entre o missionário, que
impõe multas 13 vezes superiores ao preço de uma propriedade
danificada pelos boxers, e McKinley, autor de um projeto de
"Assimilação benevolente dos filipinos".
Aqui, como em muitos outros de seus escritos antiimperialistas, a mordacidade e
a veia satírica de Twain são responsáveis pela
extraordinária eficácia crítica do documento.
A CAUSA DO REVERENDO DOUTOR AMENT
Nos Estados Unidos, o Natal vai descer sobre um povo alegre, cheio de
esperanças e sonhos. Uma condição que significa
satisfação e felicidade. Um ou outro queixoso rabugento talvez
encontre uns poucos ouvintes. A maioria vai se perguntar se ele está
doente e passar adiante.
New York Tribune,
sobre o Natal.
De
The Sun,
de Nova York
Este artigo não pretende descrever as terríveis agressões
contra a humanidade cometidas em nome da política em alguns dos
distritos mais mal-afamados do East Side. Seria impossível
descrevê-las, não há palavras. Mas ele pretende dar
à massa de cidadãos mais ou menos despreocupados desta bela
metrópole de Nova York uma concepção do caos e da
ruína impostos a todo homem, toda mulher e toda criança na mais
densamente populosa e menos conhecida das áreas da cidade. Nome, data e
local serão fornecidos aos que têm um pouco de fé ou
a qualquer um que se sinta agredido. É simplesmente uma
declaração do que foi visto e observado, escrita com total
liberdade e sem adornos.
Tente imaginar, se conseguir, uma área da cidade completamente dominada
por um homem, sem cuja permissão não se fazem negócios
legítimos nem ilegítimos; onde se incentiva a atividade
ilícita e se desencoraja a lícita; onde residentes
respeitáveis se trancam à noite atrás de portas e janelas
em quartos abafados, num calor de 40ºC, deixando de sair para o lugar onde
se pode respirar naturalmente, a varanda; onde mulheres nuas dançam
à noite nas ruas e homens carentes de sexo cortam a noite como abutres,
em "negócios" que não são apenas tolerados, mas
até incentivados pela polícia; onde a educação das
crianças se inicia pelo conhecimento da prostituição e as
meninas são treinadas apenas nas artes de Frinéia
[3]
; para onde se importam meninas educadas com o refinamento do lar americano em
pequenas cidades do norte do estado, de Massachusetts, Connecticut e de Nova
Jersey, que são mantidas prisioneiras, quase como se trancadas
atrás das grades até perderem toda a aparência de mulheres;
onde os meninos aprendem a agenciar clientes para as mulheres das casas de
má fama; onde existe uma sociedade organizada de homens jovens cujo
único fim é corromper moças e oferecê-las aos
prostíbulos; onde homens que passam com as esposas pelas ruas são
abertamente insultados; onde crianças contraem doenças de adultos
e são os principais clientes dos hospitais e dispensários; onde a
regra, e não a exceção, é não se punir o
assassinato, o estupro, o assalto e o roubo em resumo, onde o
prêmio das formas mais terríveis de vício é o lucro
dos políticos.
A notícia que se segue vem da China e foi publicada no
The Sun
de Nova York, no último dia de Natal. Os itálicos são
meus:
O reverendo Sr. Ament, da Câmara Americana de Missões no
Estrangeiro, acaba de retornar de uma viagem que fez com o fim de cobrar
indenizações por danos provocados pelos boxers. Em todos os
lugares por onde passou, os chineses foram obrigados a pagar. Segundo ele,
todos os nativos cristãos das missões já estão bem
providos. Havia 700 sob seus cuidados, mas 300 foram mortos. Cobrou 300 taels
por cada um dos assassinados, mais o pagamento de indenizações
por toda a propriedade pertencente a cristãos que foi destruída.
E multas que chegaram a 13 VEZES o valor a ser indenizado. Esse dinheiro vai
ser usado para a propagação da Palavra de Deus.
O Sr. Ament declara que as indenizações que cobrou são
moderadas, se comparadas com o valor recebido pelos católicos, que
exigem, além do dinheiro, cabeça por cabeça. Cobram 500
taels por cada católico assassinado. Na região de Wenchiu, 680
católicos foram mortos, e por eles os católicos europeus cobraram
750 mil colares de cobre
[4]
e 680 cabeças. Durante a conversa, o Sr. Ament se referiu à
atitude dos missionários em relação aos chineses. Disse
ele:
"Nego enfaticamente que os missionários sejam vingativos, que eles
tenham em geral feito saques, ou que desde o cerco eles tenham feito qualquer
coisa que as circunstâncias não tenham determinado. Eu critico os
americanos. A luva de pelica dos americanos não é tão boa
quanto a luva de aço dos alemães. Trate os chineses com luvas de
pelica e eles se aproveitam".
A declaração de que os franceses vão devolver o que foi
saqueado pelos soldados franceses provocou muito riso por aqui. Os soldados
franceses foram saqueadores mais sistemáticos que os alemães, e a
verdade é que mesmo hoje cristãos católicos portando
bandeiras francesas e armas modernas estão saqueando aldeias na
província de Chili.
Por sorte, notícias tão alvissareiras nos chegam na
véspera do Natal bem em tempo para que possamos comemorar o dia
com alegria e entusiasmo adequados. Nossos espíritos se elevam e
inventamos novas brincadeiras: taels ganho eu, cabeça você perde
[5]
.
O nosso querido reverendo Ament é o homem certo no lugar certo. O que
esperamos de nossos missionários no estrangeiro não é
apenas representar por seus atos e pessoas a graça, a bondade, a
caridade e o amor de nossa religião, mas que também representem o
espírito americano. Os mais antigos americanos são os
pawnees
. A
História
de Macallum nos informa que:
Quando um boxer branco mata um pawnee e destrói sua propriedade, os
outros pawnees não se preocupam em
caçar aquele, matam qualquer branco que aparecer; também fazem
que alguma aldeia branca pague aos herdeiros do pawnee o valor integral do
falecido, mais o valor integral da propriedade destruída; e fazem a
aldeia pagar, além de tudo isso, 13 vezes
[6]
o valor da propriedade para constituir um fundo para
disseminação da religião pawnee, considerada por eles a
melhor de todas para enternecer e humanizar o coração do homem.
Consideram também que é verdadeiramente digno e justo que os
inocentes paguem pelos culpados, e que é preferível fazer noventa
e nove sofrerem a deixar um único culpado sem castigo.
É explicável a inveja do Sr. Ament em relação a
católicos tão empreendedores, que não apenas ganham muito
dinheiro por convertido que perdem, mas que, além disso, recebem
"cabeça por cabeça". Mas ele deveria se consolar
pensando que tudo o que eles coletam se destina aos seus próprios
bolsos, ao passo que ele, desprendido, separa míseros 300 taels para tal
fim e destina a totalidade das 13 repetições da
indenização por perdas de propriedade ao serviço de
propagação da Palavra de Deus. Sua magnanimidade conquistou-lhe a
aprovação de toda esta nação e há de lhe
assegurar a ereção de um monumento. Que ele se satisfaça
com tais recompensas. Todos nós o respeitamos por defender corajosamente
os colegas missionários dessas acusações exageradas que
já começavam a nos inquietar, mas que seu testemunho tanto
modificou que já somos capazes de enfrentá-las sem sofrimento.
Por ora, sabemos que, mesmo antes do cerco, os missionários não
se dedicavam de modo geral aos saques e que, desde o cerco, eles agiram com
toda lisura, exceto quando foram pressionados pelas circunstâncias.
Proponho-me a organizar a construção do monumento. As
contribuições podem ser enviadas para a Câmara Americana;
os desenhos devem ser enviados a mim. Os projetos devem enfatizar as 13
reduplicações da indenização e o objeto que
justificou sua cobrança; como ornamento, os projetos devem exibir 680
cabeças, dispostas de forma a dar um efeito agradável e belo;
quanto aos católicos, sua grande realização merece
menção no movimento. Aceito sugestões de lemas, se houver
algum que seja pertinente.
O feito financeiro de extorquir de camponeses miseráveis uma
indenização multiplicada por 13 para expiar as culpas de outros,
condenando-os assim, e às suas mulheres e aos seus filhos inocentes,
à certeza da fome e de uma morte lenta a fim de que o dinheiro
arrecadado pudesse ser
"usado para a propagação da Palavra de Deus",
não perturba minha serenidade, embora o ato e as palavras, em conjunto,
concretizem uma blasfêmia tão horrível e colossal que,
não tenho dúvidas, jamais se encontrará igual na
história desta ou de qualquer outra era. Ainda assim, se algum leigo
tivesse realizado o mesmo feito e o justificado com as mesmas palavras, sei que
teria tido calafrios. O que também teria ocorrido se eu tivesse
realizado o feito e pronunciado eu mesmo as palavras, apesar de o pensamento
ser impensável, por mais que pessoas desinformadas me considerem
irreverente. Às vezes um pastor ordenado se torna blasfemo. Quando tal
acontece, o leigo deixa de competir; não tem a menor chance.
Temos ainda a garantia emocionada do Sr. Ament de que os missionários
não são "vingativos". Vamos esperar e orar para que
nunca o sejam, mas guardem a mesma índole quase morbidamente justa e
tranqüila que hoje dá tanta satisfação a seu
irmão e defensor.
O trecho que se segue é da edição do
New York Tribune
da véspera do Natal. Foi escrito pelo correspondente do jornal em
Tóquio. Soa estranho e impudente, mas os japoneses ainda são
apenas parcialmente civilizados. Quando se tornarem completamente civilizados,
não falarão como falam hoje:
A questão missionária ocupa, evidentemente, lugar de destaque
nessa discussão. Entende-se hoje que é essencial que as
potências ocidentais reconheçam o sentimento de que
invasões religiosas de países orientais por poderosas
organizações ocidentais equivalem a expedições de
pirataria, que não merecem apenas condenação, mas que
exigem medidas enérgicas para serem suprimidas. O sentimento
predominante aqui é o de que as organizações
missionárias constituem uma ameaça constante às
relações internacionais pacíficas.
Devemos?
Ou melhor, devemos continuar a impor nossa civilização aos povos
que vivem na escuridão, ou devemos dar um descanso a esses infelizes?
Vamos continuar a avançar, no nosso passo antigo, piedoso e ruidoso, e
comprometer o novo século com o mesmo jogo, ou vamos antes nos recompor,
sentar e repensar? Não seria prudente reunir nossos instrumentos
civilizadores e avaliar o estoque que ainda temos, coisas como contas de vidro,
teologia, metralhadoras Maxim, hinários, gim e tochas de progresso e luz
(ajustáveis, ótimas para incendiar aldeias sem necessidade de
preparação), fechar os livros, calcular lucro ou prejuízo
para poder decidir racionalmente entre continuar no negócio ou vender os
ativos e usar o resultado dessa venda para fundar um novo sistema civilizador?
Levar as bênçãos da civilização ao nosso
irmão que vive na escuridão já foi um bom negócio e
rendia bons lucros; ainda hoje é possível ganhar dinheiro, desde
que se trabalhe bem mas não o suficiente, a meu ver, para
justificar maiores riscos. Os povos que vivem na escuridão estão
ficando raros raros e retraídos. E a escuridão que ainda
existe não é realmente de boa qualidade, pouco escura para essa
atividade. Em sua maioria aqueles que vivem nas trevas já receberam mais
luz do que precisam e do que é lucrativo para nós. Fomos
injudiciosos.
A Companhia Bênçãos da Civilização, desde que
administrada com inteligência e cuidado, é uma
bênção. É possível obter ganhos, expressos em
dinheiro, territórios, soberania e outros tipos de emolumentos,
superiores aos oferecidos por qualquer outro jogo. Mas, na minha
opinião, a cristandade não tem jogado bem ultimamente, e com
certeza passará a ter prejuízo com ele. Repica com tanta
ânsia toda aposta sobre a mesa que aqueles que vivem nas trevas já
estão notando; notam e começam a se alarmar. Têm
dúvidas quanto às bênçãos da
civilização. Mais que isso, passaram a examiná-las
cuidadosamente. E isso não é bom. Bênçãos da
Civilização é uma boa marca, uma boa propriedade
comercial; sob luz mortiça, talvez não haja outra tão boa.
Sob a luz correta, e a uma distância adequada, com o produto ligeiramente
fora de foco, ela oferece àqueles que vivem nas trevas esta imagem
desejável:
AMOR,
|
ORDEM E DIREITO,
|
JUSTIÇA,
|
LIBERDADE,
|
BONDADE,
|
IGUALDADE,
|
CRISTIANISMO,
|
VIDA COM HONRA,
|
PROTEÇÃO PARA OS FRACOS,
|
CARIDADE,
|
TEMPERANÇA,
|
EDUCAÇÃO,
|
|
e muitas outras.
|
E este produto é bom? Meu amigo, é uma maravilha. Há de
trazer para a luz qualquer idiota na escuridão em qualquer lugar do
mundo. Mas não se o adulterarmos. É preciso enfatizar essa
questão. Esta marca destina-se exclusivamente à
exportação aparentemente. Aparentemente. Aqui entre
nós, em confiança, não é nada disso. Aqui entre
nós e em confiança, isso não passa de uma cobertura,
alegre, bonita e atraente, que expõe os padrões especiais de
nossa civilização que reservamos para consumo doméstico,
ao passo que oferecemos realmente o que há no interior do fardo, e que o
cliente que vive na escuridão compra com seu próprio sangue. O
que há dentro do fardo
[7]
é realmente civilização, mas apenas para
exportação. Existe alguma diferença entre as duas? Em
alguns detalhes, certamente há.
Sabemos todos que este negócio está sendo arruinado. Não
é tão difícil perceber as razões. Tudo porque o Sr.
McKinley, o Sr. Chamberlain
[8]
, o kaiser e o czar começaram a exportar o que há no interior do
fardo,
sem a embalagem.
E isso perturba o jogo. Mostra que estes novos
jogadores não o dominam suficientemente bem.
É triste observar e ver os movimentos errados, tão estranhos e
desajeitados. O Sr. Chamberlain fabrica uma guerra usando materiais tão
inadequados que os camarotes sofrem e a platéia ri, e ele tenta se
convencer de que não se trata meramente de uma excursão à
caça de dinheiro, mas de algo dotado de uma espécie de
respeitabilidade obscura e vaga que ele não consegue perceber, e de que
mais tarde ele será capaz de limpar outra vez a bandeira, quando tiver
acabado de arrastá-la na lama, capaz de fazer que ela volte a brilhar na
abóbada do céu, como brilhou ao longo de mil anos no respeito do
mundo, até ele lançar sobre ela sua mão infiel. Isso
é jogar mal, muito mal. Pois se expõe o que se esconde no
interior da embalagem aos que vivem na escuridão, e eles dizem: "O
quê! Cristão contra cristão? E só por dinheiro?
Será isso um exemplo de paciência, amor, magnanimidade, bondade,
caridade, proteção dos fracos esse ataque estranho e
exagerado de um elefante a um ninho de ratos do campo, sob o pretexto de que os
ratinhos o insultaram uma conduta que 'nenhum governo digno de respeito
deixaria passar sem punição', como disse o Sr. Chamberlain? Seria
o caso de um bom pretexto para uma causa sem importância, sem ser um bom
pretexto para uma grande causa? pois recentemente a Rússia
afrontou o elefante três vezes e sobreviveu sem ferimentos. Será
isso a civilização e o progresso? Isso será melhor do que
o que já temos? Toda essa destruição, incêndios,
desertos criados no Transvaal9 seria um aperfeiçoamento de nossa
escuridão? Seria possível haver dois tipos de
civilização, um para consumo doméstico e outro para o
mercado pagão?".
Então aquele que vive nas trevas fica em dúvida, balança a
cabeça e lê esse trecho da carta de um soldado britânico, em
que ele conta suas aventuras em uma das vitórias de Methuen, alguns dias
antes da derrota em
Magersfontein
, e fica mais uma vez em dúvida:
Avançamos colina acima e invadimos as trincheiras, e os bôeres
viram que estavam perdidos; então eles largaram as armas, caíram
de joelhos, levantaram as mãos e pediram clemência. E
clemência nós demos a eles. Com as colheres longas.
A colher longa é a baioneta. Vejam o último
Lloyd's Weekly,
de Londres. A mesma edição e a mesma coluna trazia
uma sátira inconseqüente sob a forma de censuras amargas e chocadas
aos bôeres por suas brutalidades e desumanidades!
Em seguida, para prejuízo nosso, o kaiser começou a praticar o
jogo antes de dominá-lo. Perdeu alguns missionários numa
agitação de rua em Shantung, e para acertar as contas apresentou
uma cobrança absurda por eles. A China teve de pagar 100 mil
dólares por cabeça, em dinheiro; 19,3 quilômetros de
território, com milhões de habitantes e que valem 20
milhões de dólares; a construção de um monumento e
de uma igreja cristã, embora o povo da China com certeza fosse se
lembrar desses missionários sem precisar desses memoriais dispendiosos.
Está tudo errado. Errado, pois aquele que vive nas trevas jamais se
deixará enganar. Ele sabe que foi uma cobrança excessiva. Sabe
que um missionário é como qualquer outro homem: vale
apenas o
custo de um substituto, nada mais. É útil, mas um médico
também é útil, um delegado, um editor; mas um imperador
justo não cobra indenizações de guerra por eles. Um
missionário inteligente, diligente, mas obscuro, assim como um editor
inteligente, diligente, mas obscuro, valem muito, todos o sabemos; mas
não valem a terra. Estimamos o editor, lamentamos sua perda; mas quando
ele morre devemos considerar excessiva uma compensação por sua
perda composta de 19,3 quilômetros de território, uma igreja e uma
fortuna. Quero dizer, ainda que se tratasse de um editor e tivéssemos
que pagar indenização por ele. Não é um valor
condizente com um editor ou um missionário; pode-se comprar reis por
menos. O kaiser fez uma jogada errada. É verdade que ele ganhou; mas
também produziu a
revolta dos chineses,
a rebelião indignada dos patriotas traídos da China, os boxers.
Os resultados foram caros para a Alemanha e para outros disseminadores do
progresso e das bênçãos da civilização.
A aposta do kaiser foi paga, mas mesmo assim foi uma jogada errada, pois
terá certamente efeito danoso sobre aqueles que vivem nas trevas na
China. Eles hão de ponderar o que aconteceu e provavelmente irão
dizer: "A civilização é bela e graciosa, pois essa
é a sua reputação; mas estará ao nosso alcance?
Existem chineses ricos, talvez eles tenham condições; mas essa
cobrança não foi apresentada a eles, foi apresentada aos
camponeses de Shantung; só eles terão de pagar essa quantia
enorme, e eles ganham meros quatro centavos por dia. Será essa
civilização melhor que a nossa, mais santa, elevada e nobre? Ou
isso seria rapacidade? Quem sabe extorsão? A Alemanha teria cobrado 200
mil dólares aos Estados Unidos por dois missionários, teria
brandido a luva de aço na sua cara, enviado navios de guerra e soldados
com a ordem: 'Tomem 19,3 quilômetros de território, no valor de 20
milhões de dólares, como pagamento adicional pelos dois
missionários e mandem aqueles camponeses construir um monumento aos
missionários e uma custosa igreja cristã para que eles não
sejam esquecidos'? E depois a Alemanha teria ordenado aos seus soldados:
'Marchem através da América e matem, sem perdão;
façam lá da máscara alemã o que representa aqui a
máscara do huno, um terror de mil anos; marchem através da grande
república e matem, rasgando para passagem de nossa religião
ofendida uma estrada que lhe corte o coração e as
vísceras'? A Alemanha teria feito a mesma coisa com Estados Unidos,
Inglaterra, França ou Rússia? Ou somente com a China, a indefesa
repetindo o ataque do elefante contra os ratinhos do campo? Devemos
investir nessa civilização uma civilização
que considerou Napoleão um pirata por ter roubado os cavalos de bronze
de Veneza, mas que rouba de nossas paredes os antigos instrumentos
astronômicos e pilha como bandidos comuns, ou seja, todos os soldados
estrangeiros, com exceção dos da América; e que assalta
aldeias aterrorizadas e comunica todo dia o resultado para os jornais felizes
da pátria: 'Perdas chinesas, 450 mortos; nossas,
um oficial e dois homens feridos.
Avançaremos amanhã sobre a próxima aldeia, de onde
comunicaremos um
massacre
'. Temos recursos para investir em tal civilização?".
Depois foi a vez de a Rússia entrar no jogo e jogar insensatamente.
Afronta a Inglaterra uma ou duas vezes observada por aquele que vive nas
trevas; com a assistência moral da França e da Alemanha, ela rouba
do Japão uma presa de guerra duramente conquistada, encharcada no sangue
chinês
Port Arthur
, mais uma vez observada por aquele;
então ela toma a Manchúria, ataca suas aldeias e afoga o grande
rio com cadáveres inchados de incontáveis camponeses massacrados
ainda observada por aquele assustado. E talvez ele diga para si mesmo:
"É mais uma potência civilizada, trazendo numa das
mãos a bandeira do Príncipe da Paz e na outra a cesta de pilhagem
e uma faca de açougueiro. Existirá outra salvação
para nós ou teremos de adotar a civilização e descer
até o seu nível?". Em seguida vêm os Estados Unidos, e
o nosso Mestre do Jogo joga mal, como jogou o Sr. Chamberlain na África
do Sul. Foi um erro; mais que isso, foi um erro inesperado de um mestre que
vinha jogando tão bem em Cuba. Em Cuba ele estava praticando o jogo
americano normal e estava ganhando, pois não havia como
derrotá-lo. O mestre olhou para Cuba e disse: "Eis uma
nação oprimida e sem amigos, disposta a lutar para conquistar a
liberdade; vamos nos associar a ela e colocar a força de 70
milhões de simpatizantes e os recursos dos Estados Unidos: jogue!".
Ninguém além da Europa combinada teria condições de
repicar, e a Europa não se combina em torno de nada. Em Cuba ele estava
seguindo nossas grandes tradições de uma forma que nos enchia de
orgulho, dele e da profunda insatisfação que sua jogada provocou
na Europa continental. Movido por uma grandiosa inspiração, ele
gritou aquelas palavras emocionadas que declaravam ser a anexação
forçada uma "agressão criminosa" e, ao dizer isso,
"disparou mais um tiro ouvido por todo o mundo". A lembrança
daquela declaração magnífica não será
superada por nenhuma outra lembrança de ato seu, a não ser pelo
fato de, passados meros 12 meses, ele tê-la esquecido e à promessa
solene que a acompanhou.
Pois, logo em seguida, veio a tentação filipina. Era forte; forte
demais, e ele cometeu um erro grave: começou a jogar o jogo europeu, o
jogo de Chamberlain. Foi uma tristeza; aquele erro foi uma tristeza muito
grande; aquele erro terrível, irremediável. Pois aqueles eram a
hora e o lugar de jogar mais uma vez o jogo americano. E sem custos: grandes
ganhos, ricos e permanentes; indestrutíveis; uma fortuna a ser
transmitida para sempre aos filhos da bandeira. Não a terra, não
o dinheiro, não a dominação; não, algo que valia
muitas vezes mais que essa escória: nossa participação, o
espetáculo de uma nação de escravos havia muito
perseguidos e atormentados que se libertaria por nossa influência; a cota
da nossa posteridade, a lembrança daquele belo feito. O jogo era nosso.
Se tivesse sido jogado de acordo com as regras americanas, Dewey
[10]
teria zarpado de Manila logo depois de derrotar a esquadra espanhola, depois
de fincar na praia um sinal de garantia de toda propriedade e toda vida
estrangeiras contra agressão pelos filipinos, e um aviso às
potências que qualquer interferência com os patriotas emancipados
seria considerada um ato hostil aos Estados Unidos. As potências
são incapazes de se combinar, nem mesmo em torno de uma causa que
não seja boa, e o sinal teria sido respeitado.
Dewey teria ido tratar de outros problemas, deixando ao competente
exército filipino a tarefa de liquidar por inanição a
pequena guarnição espanhola e mandá-la de volta para casa,
e os cidadãos filipinos criariam a forma de governo que preferissem,
tratariam os frades e suas aquisições duvidosas de acordo com as
idéias filipinas de eqüidade e justiça idéias
que já foram testadas e consideradas de ordem igual às das que
predominam na Europa e na América.
Mas jogamos o jogo de Chamberlain, e perdemos a oportunidade de acrescentar
outra Cuba e outro feito de honra à nossa história.
Quanto mais estudamos esse erro, mais percebemos suas más
conseqüências para os negócios. Aquele que vive nas trevas
com certeza há de dizer: "Aqui há algo curioso e
inexplicável. Só pode ter havido duas Américas: uma que
liberta os cativos e outra que toma dos cativos recém-libertados a sua
liberdade, briga com eles sem qualquer razão aparente e depois os mata
para lhes tomar a terra".
Na verdade, aquele que vive nas trevas está realmente dizendo coisas
semelhantes; em nome dos negócios, temos de convencê-lo a olhar de
maneira mais saudável a questão filipina. Precisamos organizar
suas idéias. Acho que isso é possível; pois o Sr.
Chamberlain organizou as idéias inglesas sobre a questão
sul-africana de uma maneira muito inteligente e bem-sucedida. Apresentou os
fatos alguns deles e mostrou àquele povo confiante o que
significavam. Isso foi feito estatisticamente, a melhor forma de fazê-lo.
Ele usou a fórmula "2 X 2 = 14 e 9 2 = 35". Os
números não falham; os números convencem os eleitos.
Mas o meu plano é ainda mais ousado que o do Sr. Chamberlain, apesar de
parecer uma cópia do dele. Vamos ser mais francos que o Sr. Chamberlain;
vamos apresentar todos os fatos, sem ocultar nenhum, e depois os explicamos de
acordo com a fórmula do Sr. Chamberlain. Essa sinceridade corajosa
há de perturbar aquele que vive nas trevas, e ele vai aceitar a
explicação antes que sua visão mental tenha tido tempo de
entendê-la. Eis o que lhe diremos:
"Nossa explicação é simples. No dia 1º de maio,
Dewey destruiu a frota espanhola. Isto deixou o arquipélago nas
mãos de seus proprietários legítimos, a
nação filipina. Tinham um exército de 30 mil homens e
conseguiriam liquidar a pequena guarnição espanhola, então
o povo organizaria um governo criado por ele próprio. Nossas
tradições determinavam que Dewey fincasse um sinal de aviso e
partisse. Mas o Mestre do Jogo imaginou outro plano o plano europeu.
Agiu de acordo com ele. Era o seguinte: enviar um exército
ostensivamente para ajudar os nativos patriotas a dar o toque final na sua
longa e corajosa luta pela independência, mas na verdade para lhes tomar
a terra. Ou melhor, em nome do progresso e da civilização. O
plano se desenvolveu, estágio por estágio, satisfatoriamente.
Fizemos uma aliança militar com os filipinos confiantes e eles cercaram
Manila por terra, e com sua valiosa ajuda o lugar, com sua
guarnição de 8 mil ou 10 mil espanhóis, foi tomado
o que àquela época não teríamos conseguido sem
ajuda. Conquistamos sua ajuda pela esperteza. Sabíamos que eles estavam
lutando por sua independência, e já lutavam havia dois anos.
Sabíamos que eles acreditavam que estávamos participando de sua
honrosa causa como havíamos ajudado os cubanos a lutar pela
independência de Cuba e deixamos que eles continuassem a
acreditar.
Até o momento em que Manila se tornou nossa e pudemos prosseguir sem
eles.
Então abrimos o jogo. É claro que eles ficaram espantados
era natural; surpresos e desapontados; desapontados e magoados. Para eles tudo
aquilo era anti-americano, não-característico, contrário
às nossas tradições estabelecidas. O que também era
natural, pois estávamos jogando o jogo americano apenas para a
platéia na verdade era o jogo europeu. Foi muito bem executado,
com perfeição, e eles ficaram perplexos. Não conseguiam
entender; tínhamos sido tão amigos até afetuosos
daqueles patriotas simplórios! Nós próprios
havíamos trazido do exílio seu líder, seu herói,
sua esperança, seu Washington Aguinaldo; nós o trouxemos
num navio de guerra, com todas as honras, sob o abrigo e a hospitalidade
sagrados da bandeira; nós o trouxemos e o devolvemos ao povo, e
conquistamos sua gratidão eloqüente e comovida. É verdade,
fomos amigos deles, e os encorajamos de tantas formas! Emprestamos armas e
munições, oferecemos assessoria; trocamos cortesias com eles;
deixamos nossos doentes e feridos sob seus cuidados; confiamos nossos
prisioneiros espanhóis às suas mãos honestas e humanas;
lutamos com eles ombro a ombro contra o 'inimigo comum' (frase nossa);
elogiamos sua coragem, elogiamos seu heroísmo; elogiamos sua bondade,
sua conduta correta e honrosa; usamos suas trincheiras, suas
posições reforçadas, que eles haviam antes tomado aos
espanhóis; nós os mimamos, mentimos para eles ao proclamar
oficialmente que nossas forças de mar e terra vinham para lhes dar a
liberdade e para expulsar o cruel Governo Espanhol; ludibriamo-los, usamo-los
até não precisar mais deles; então desprezamos a laranja
chupada e a jogamos fora. Mantivemos as posições que lhes tomamos
pela trapaça; mais tarde avançamos e anexamos o território
dos patriotas uma idéia inteligente, pois precisávamos de
uma revolta, e isso iria gerar uma. Um soldado filipino, cruzando o terreno
onde ninguém tinha o direito de o impedir, foi abatido por uma de nossas
sentinelas. Os patriotas, confusos, reagiram com armas, sem esperar para saber
se Aguinaldo, que estava ausente, teria ou não aprovado. Aguinaldo
não aprovou, mas de nada adiantou. O que queríamos, em nome do
progresso e da civilização, era o arquipélago, sem o
estorvo de patriotas que lutam pela independência; precisávamos da
guerra. Agarramos a oportunidade. Foi mais uma vez a história do Sr.
Chamberlain pelo menos na motivação e na
intenção; e jogamos tão bem quanto ele".
Neste ponto de nossa declaração franca dos fatos para aquele que
vive nas trevas, deveríamos lhe oferecer um brinde sobre o tema das
bênçãos da civilização para variar e
para elevação de seu espírito e depois continuar
com nossa história:
Depois que nós e os patriotas capturamos Manila, a propriedade da
Espanha sobre o arquipélago e sua soberania sobre ele chegaram ao fim
obliteradas, aniquiladas, nenhum vestígio de qualquer das duas.
Foi então que imaginamos essa idéia divinamente engraçada
de comprar da Espanha os dois espectros! [Não há risco em
confessar este fato àquele que vive nas trevas, pois nem ele, nem
ninguém vai acreditar.] Ao comprar os dois espectros por 20
milhões de dólares, assumimos também responsabilidade
sobre os frades e seus bens acumulados. Creio que também contratamos a
disseminação da lepra e da varíola, mas quanto a isso
ainda há dúvidas. Mas não tem importância: pessoas
que já sofrem com os frades não se importam com outras
doenças. Ratificado o tratado, Manila conquistada e garantidos os nossos
espectros, Aguinaldo se tornou inútil, bem como os donos do
arquipélago. Forçamos uma guerra e desde então estamos
caçando o antigo hóspede e aliado dos Estados Unidos por
florestas e pântanos.
Neste ponto da história, seria bom vangloriarmo-nos de nossa guerra e de
nossos heroísmos no campo de batalha, para tornar nossos feitos
tão belos quanto os dos ingleses na África do Sul; mas acredito
que não seja aconselhável exagerar nessa ênfase. É
preciso cautela. Evidentemente será necessário ler para o homem
os telegramas de guerra, para manter a franqueza do nosso relato; mas seria bom
que lhes déssemos um tom bem-humorado, que deverá aliviar um
pouco a sua eloqüência soturna e as exibições
indiscretas de sangrenta exaltação. Antes de ler para ele os
títulos destes despachos de 18 de novembro de 1900, seria bom ensaiar
sua leitura, para colocar neles o tom correto de leveza e graça:
ADMINISTRAÇÃO ESGOTADA PELO PROLONGAMENTO DAS HOSTILIDADES!
GUERRA DE VERDADE ESPERA OS REBELDES FILIPINOS!
ADOTADO O PLANO KITCHENER!
[11]
Kitchener sabe bem como tratar essa gente desagradável que luta por seus
lares e liberdades, e é preciso deixar vazar que estamos apenas imitando
Kitchener, e que não temos interesse nacional na questão,
além de granjear a admiração da Grande Família de
Nações, em cuja augusta companhia o Mestre do Jogo adquiriu para
nós um lugar na última fila.
É claro que não podemos esquecer os relatórios do general
McArthur oh! Por que essas coisas embaraçosas sempre são
publicadas?
e deixar escorrer da língua,
en passant,
e assumir os riscos:
Durante os dez últimos meses, nossas perdas montaram a 268 mortos e 750
feridos; as perdas filipinas, 3.226 mortos, e 694 feridos.
Temos de estar preparados para segurar aquele que vive nas trevas, pois
é provável que ele desmaie diante dessa confissão,
dizendo: "Meu Deus, aqueles 'negros' cuidam dos prisioneiros feridos e os
americanos os massacram!".
Ele deverá ser reanimado, convencido, mimado, e devemos assegurar a ele
que os caminhos da Providência são os melhores, e que não
ficaria bem para nós proclamar os defeitos deles; e então, para
demonstrar que somos apenas imitadores, não os inventores, é
preciso ler para ele este trecho da carta de um soldado americano para a
mãe, publicada no
Public Opinion
de Decorah, Iowa, em que ele descreve o fim de uma batalha vitoriosa:
"NÃO SOBROU NENHUM VIVO. SE ALGUM ESTAVA FERIDO, A GENTE LHE
ENFIAVA A BAIONETA".
Depois de relatar para aquele que vive nas trevas os fatos históricos,
é preciso reanimá-lo mais uma vez e explicá-los a ele.
Devemos dizer-lhe:
Parece mentira, mas na realidade não é. Pode ter havido mentiras,
é verdade, mas foram contadas por uma boa causa. Fomos
traiçoeiros, mas foi apenas para que o bem emergisse do mal aparente.
É verdade que esmagamos um povo iludido e confiante; atacamos os fracos
e sem amigos que confiavam em nós; destruímos uma
república ordeira, justa e inteligente; apunhalamos um aliado pelas
costas e esbofeteamos o rosto de nosso hóspede; compramos uma mentira de
um inimigo que nada tinha para vender; roubamos a terra e a liberdade de um
amigo confiante; convidamos nossos jovens a apoiar no ombro um fuzil
desacreditado e os obrigamos a fazer o trabalho que geralmente é feito
por bandidos, sob a proteção de uma bandeira que os bandidos
aprenderam a temer, não a seguir; corrompemos a honra americana e
maculamos seu rosto perante o mundo, mas cada detalhe visava o bem. Disso temos
certeza. Todo chefe de Estado e soberano em toda a cristandade, 90% de todos os
corpos legislativos da cristandade, inclusive o nosso Congresso e as
assembléias legislativas de 50 estados são membros não
apenas da igreja, mas também da Companhia Bênçãos da
Civilização. Esta acumulação mundial de moral
treinada, de altos princípios e de justiça, não tem
capacidade de cometer um único erro, de realizar um ato injusto, uma
única coisa não-generosa, uma única coisa que não
seja imaculada. Ela sabe do que se trata. Não se apoquente; está
tudo bem.
Ora, basta isso para convencer um homem. Os senhores verão. Isto
há de recuperar os negócios. Será também suficiente
para eleger o Mestre do Jogo para o lugar vago na Trindade de nossos deuses
nacionais; e lá, do alto de seus tronos, os três hão de se
sentar, era após era, às vistas do povo, cada um trazendo o
emblema de seu serviço: Washington, a espada do libertador; Lincoln, as
correntes partidas dos escravos; o Mestre, as correntes restauradas.
Tudo isto há de dar um forte impulso aos negócios. Os senhores
verão.
Tudo agora é prosperidade; tudo está como sempre quisemos que
estivesse. Temos o arquipélago e nunca o perderemos. Temos também
razões para esperar que em breve teremos uma oportunidade de nos livrar
do contrato congressional com Cuba e de oferecer a ela algo melhor. É um
país rico, e muitos de nós já começam a perceber
que aquele contrato foi um erro sentimental. Mas é agora
exatamente agora o momento de iniciar o lucrativo trabalho de
reabilitação trabalho que vai nos enriquecer, facilitar
nossa vida e acabar com os boatos. Não podemos esconder de nós
mesmos que, no íntimo, nossa farda nos preocupa. É um de nossos
orgulhos; está acostumada à honra, aos grandes e nobres feitos e,
assim, vê-la envolvida nessa atividade nos desagrada. E nossa bandeira
outro de nossos orgulhos, o principal! Nós a adoramos tanto; e
depois de vê-la em terras distantes, vê-la inesperadamente em
céus estranhos, ondulando a nos saudar e bendizer, prendemos a
respiração, descobrimos a cabeça e ficamos sem fala
durante um momento, a pensar no que ela era para nós e nos grandes
ideais que representava. É verdade. É preciso resolver essas
dificuldades; não podemos manter nossa bandeira no estrangeiro, nem a
nossa farda. Elas já não são necessárias lá;
vamos trabalhar de outra forma. No que se refere à farda, a Inglaterra
já achou uma solução; logo, nós também
encontraremos. Teremos de enviar soldados é inevitável
, mas é possível disfarçá-los. É o que
a Inglaterra está fazendo na África do Sul. Até mesmo o
Sr. Chamberlain se orgulha do honroso uniforme da Inglaterra; então o
exército que está lá usa um disfarce feio e odioso, feito
de um tecido amarelo igual ao material das bandeiras de quarentena que
são usadas para afastar os sãos das doenças imundas e da
morte repulsiva. É um tecido chamado Kakhi. Poderíamos
adotá-lo. É leve, confortável, grotesco e engana o inimigo,
que não consegue imaginar que um soldado se oculte dentro dele.
Quanto à bandeira da província filipina, é um problema de
fácil solução. Faremos uma bandeira especial como
já fazem os estados: será igual à nossa bandeira, com as
listas brancas tingidas de preto e as estrelas substituídas pelo
crânio e as tíbias cruzadas.
E lá não vamos precisar de uma comissão civil. Como
não tem poderes, ela terá de inventá-los, e esse tipo de
trabalho não é para qualquer um; é preciso um
especialista. Mas não necessariamente o Sr. Croker. Não queremos
os Estados Unidos representados lá, somente o jogo.
Com os reparos sugeridos, progresso e civilização terão um
boom
naquele país capaz de absorver todos aqueles que vivem nas trevas,
e poderemos retomar o ritmo normal dos negócios.
Notas
3. Frinéia: bela e audaciosa cortesã grega do século IV
a.C.. Levada a julgamento em Atenas por impiedade, foi despida por seu advogado
diante dos juízes e, assim, imediatamente absolvida.
4. Havia na China o costume de amarrar moedas de cobre, que eram vazadas,
formando colares. Isto facilitava o manuseio do dinheiro, os pagamentos e
recebimentos. (N. T.)
5. Em inglês o jogo da cara ou coroa tem o nome heads or tails,
efígie ou o reverso, o que permite o trocadilho. (N. T.)
6. O editorial sem título publicado no
The Public
de 12 de fevereiro de 1901 menciona as críticas feitas pelo Dr.Wyland
Spalding a Mark Twain devido às afirmações a respeito
deste episódio: segundo Spalding, "13 vezes" teria sido fruto
de um equívoco do telegrafista, que teria transmitido esse número
em vez de "1/3" (um terço). Apesar de reconhecer que Twain
havia feito posteriormente uma retratação e mencionado o erro,
Spalding sentiu-se mais seriamente ofendido pelo fato de Twain, em sua
retratação, haver inquirido ainda com maior pertinácia, em
nome de que lei ou de que moral o missionário coletou algo de pessoas
que não haviam causado qualquer dano a quem quer que fosse, indagando
também qual seria a diferença entre uma extorsão doze
vezes maior e uma um terço maior. Em claro apoio a Twain, o jornal
afirma que o Sr. Spalding poderia ter-lhes dado maior satisfação
em responder a essas perguntas do que ao denunciar Twain e acusá-lo de
indecente e mal-educado.
7. A idéia de "fardo" aqui remete ao poema "O fardo do
homem branco" ("White man's Burden"), de Rudyard Kipling,
publicado no McClure Magazine no dia 12 de fevereiro de 1899. A guerra
filipinoamericana havia começado oito dias antes e o Tratado de Paris
seria ratificado dois dias depois da publicação, o que o situa
num momento particularmente significativo da expansão imperialista e, ao
mesmo tempo, de atuação da Liga Antiimperialista nos Estados
Unidos. Embora no poema estivessem mescladas as louvações ao
império e as advertências acerca dos custos que ele implicava, os
próprios imperialistas interpretaram a expressão "fardo do
homem branco" como um eufemismo para o imperialismo e uma
justificação implícita da política imperialista
como uma empreitada nobre e altruísta. Rapidamente os antiimperialistas
responderam por meio de paródias do poema, tendo como foco o novo
conflito nas Filipinas e a hipocrisia dos que o defendiam e desejavam ocultar
os interesses econômicos, políticos e militares nele envolvidos.
Para os antiimperialistas, o "fardo" verdadeiro era o dos
trabalhadores dos Estados Unidos. Em 1901, após dois dias de
terríveis batalhas nas Filipinas, Twain indagava: "O fardo do homem
branco" foi cantado, mas quem cantará o do Homem de Cor?". O
conceito de "fardo do homem branco" se fez presente novamente em
período posterior, a propósito das intervenções
norte-americanas nas Américas e no decorrer da Primeira Guerra Mundial.
8. Joseph Chamberlain, 1836-1914. Político britânico reformista e
membro do Parlamento por Birmingham. Foi secretário de assuntos
coloniais durante o governo conservador de Salisbury, sendo responsável
pelas relações com as repúblicas bôeres na
época em que irrompeu a Guerra dos Bôeres, em 1899. Foi uma das
figuras mais representativas da política externa britânica desse
período.
9. Região localizada na porção nordeste da África
do Sul além do rio Vaal, atualmente faz fronteiras com a
Suazilândia, o Zimbábue e Botswana. No século XIX a
descoberta de ouro atraiu um grande número de exploradores e
aventureiros britânicos. Durante a Guerra dos Bôeres, a
estratégia de atear fogo às matas e fazendas difundiu-se como
meio de forçar os bôeres a deixar seus refúgios.
10. O comodoro George Dewey é considerado um herói da Guerra
Hispano-Americana, por ter derrotado a frota espanhola no Pacífico. Deu
início à Batalha de Manila às seis horas da manhã
do dia 1º de maio de 1898, e com uma frota de seis navios (onde se
incluía a nau capitânia Olympia) em seis horas pôs a pique
todos os navios da armada espanhola.
11. Militar inglês, foi comandante em chefe das tropas inglesas durante a
Guerra dos Bôeres. Entre suas táticas estava o incêndio de
fazendas e a transferência de mulheres e filhos dos bôeres para
campos de concentração infectados. (N. T.)
[*]
Mark Twain escreveu "Para aquele que vive nas trevas" em 1901.
A obra está contida no livro "Patriota e traidores:
anti-imperialismo, política e crítica social", Ed.
Fundação Perseu Abramo, S. Paulo, 2003, ISBN 85-86469-81-5.
Pode ser descarregada gratuitamente em
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