Por detrás do político, o homem de negócios:
A face oculta de Donald Rumsfeld
por Christophe Grauwin
É conhecido o secretário para a Defesa, aquele que hoje tem de
prestar contas pelas torturas no Iraque. Mas para compreender o personagem
e as actuais derivas do Pentágono , é preciso
mergulhar nos arquivos da Bolsa americana. É aí que se descobre
uma espantosa carreira de homem de negócios, feita de
ligações perigosas entre o público e o privado.
Desta vez, Donald Rumsfeld perdeu o seu sorrizinho. Ouvido a 7 de Maio pelo
Senado americano, o secretário para a Defesa da
administração Bush teve de reconhecer a sua
responsabilidade nas humilhações e torturas
infligidas aos detidos na prisão de Abou Ghraib. Mas o chefe dos
falcões que reina no Pentágono não se demitiu. Não
hesitando em desculpar-se com o seu estado-maior, o inflexível
Rummie escudou-se nas suas convicções. Não
é para admirar, já que este diplomado por Princeton, que ciranda
por Washington há 40 anos, é um dos pilares do campo
ultraconservador. Ele é a encarnação, até à
caricatura, desta doutrina: moralismo belicoso em política e
ultraliberalismo na economia. Com os seus derivativos: a começar pela
confusão entre a gestão dos assuntos do Estado e o negócio
privado.
Desde os seus começos na esteira do presidente Nixon, no fim dos anos de
1960, Rumsfeld prossegue uma dupla carreira: o homem político esconde
um homem de negócios. É o segredo de Don que os meios
de comunicação americanos, ocupados em incensar o cabo-de-guerra
que tomou o comando após os atentados de 11 de Setembro, evocam apenas
por meias palavras. Um estranho tabu, visto que um exame minucioso à
declaração de património entregue pelo secretário
para a Defesa aquando da sua tomada de posse em 2000 (um calhamaço de 50
páginas!) permite constatar que este multimilionário é
pura e simplesmente o chefe de fila de uma rede que navega, há 40 anos,
entre os conselhos de administração da corporate
America e os gabinetes governamentais. Os arquivos da SEC (o
polícia da Bolsa americana) e o estudo dos documentos desclassificados
da administração mostram, igualmente, que Rumsfeld e os seus
são peritos no manejo das revolving doors, essas portas
giratórias que permitem efectuar frutuosas idas e voltas entre o privado
e o público.
Ao obter modificações às leis ou influenciando nas
decisões da administração em nome de métodos e
comportamentos próprios do mundo dos negócios, Rumsfeld e os
republicanos de extrema direita o que fazem muitas vezes é satisfazer o
seu apetite financeiro. Da limpeza das fardas à formação
dos polícias iraquianos, da alimentação dos GI à
recolha de informações, raras são as funções
militares, com excepção da guerra propriamente dita, que
não foram entregues a empresas subcontratadas. E raras são
também as empresas que não contam no seu conselho de
administração com algumas eminentes figuras ultraconservadoras. O
último exemplo conhecido: segundo um inquérito interno conduzido
pelo exército americano, o Pentágono chegou ao ponto de contratar
uma empresa privada Caci International para os
interrogatórios dos presos de Abou Ghraib. Entre os administradores da
Caci encontra-se o general Larry Welch, antigo comandante da US Air Force e
velho conhecido de Donald Rumsfeld. Em Março de 2003, tinha-o designado
para fazer a avaliação de um plano de armamento futurista, dotado
de um orçamento de 15 biliões de dólares e de que a Caci
International é hoje um dos principais beneficiários. O facto de
o general Welch, auditor independente de um programa governamental,
ser também o administrador de uma companhia que lucra com este programa
não parece chocar o Sr. Rumsfeld. O que sabemos menos é que estas
ligações perigosas pontuaram toda a sua carreira.
1962-1977: OS COMEÇOS DE UM NIXON BOY
Donald Rumsfeld, conhecido por Rummie, nascido em Chicago em 1932 e
diplomado pela prestigiosa universidade de Princeton, começa em 1960
como consultor do banco de investimentos AG Becker. Dotado e ambicioso,
lança-se na política em 1962 quando se apresenta às
eleições legislativas pelo 13º distrito de Illinois, um
bairro abastado dos arredores de Chicago. A sua equipa de campanha é uma
espécie de Who's Who da economia local. Encontramos aí,
nomeadamente, Edgar Jannotta, um dos associados do banco de negócios
William Blair, que acompanhará Rummie em todas as suas
incursões empresariais; Dan Searle, herdeiro da firma farmacêutica
Searle ou, ainda, Jeb Stuart Magruder, antigo comerciante de pasta de papel e
que será, mais tarde, um dos especialistas em relações
públicas de Richard Nixon e um dos principais acusados no caso Watergate.
Donald Rumsfeld ganha as eleições, torna-se deputado aos 29 anos
e continua a sua ascensão política. Richard Nixon, vindo como ele
da média burguesia ligada aos negócios, nomeiao-o em 1969 chefe do
OEO (Office of Economic Opportunity), uma agência de luta contra a
pobreza, legada pelo anterior governo democrata. O seu papel aqui, a acreditar
no testemunho de um antigo dirigente do OEO, teria sido o de expurgar a
agência federal (encerrada por Nixon em 1973) dos
esquerdistas ou vistos como tal. Seja como for, ele passa, nesse
momento, a ser a armação de uma rede que não
deixará de se estender.
Os dois adjuntos de Rumsfeld no OEO têm como nome Dick Cheney, o actual
vice-presidente dos Estados Unidos, e Frank Carlucci, hoje o patrão do
grupo financeiro Carlyle, um dos principais beneficiários do aumento
actual dos créditos militares. Em 1970, Donald Rumsfeld deixa a
agência anti-pobreza para se tornar conselheiro especial do presidente
Nixon e, em seguida, depois do Watergate, secretário para a Defesa do
governo de Gerald Ford. A vitória de Jimmy Carter nas
eleições presidenciais de 1976 leva-o de volta à vida dos
negócios.
1977-1985: UMA FORTUNA COM O FALSO AÇÚCAR
Em Junho de 1977, os padrinhos da sua primeira campanha eleitoral, Dan Searle e
Edgar Jannotta, oferecem a Donald Rumsfeld a presidência do grupo Searle.
O fabricante farmacêutico encontra-se, nessa altura, em maus
lençóis. Há dez anos que a Food and Drug Administration
(FDA), que regulamenta o mercado dos alimentos e dos medicamentos, recusa
aprovar uma molécula, o aspartame (também se diz 'aspártamo'),
que a Searle quer vender como
substituto do açúcar. A FDA chega a pedir a abertura de um
processo penal depois de ter descoberto numerosos erros nos testes de
toxicidade apresentados pela Searle.
Mas a chegada de Rummie coincide com uma série de acasos felizes para a
companhia. Primeiro, Samuel Skinner, o procurador encarregado de dar andamento
ao inquérito penal, demite-se das suas funções e entra, em
Julho de 1977, para o gabinete de advogados da Searle. O inquérito
é abandonado. Depois, em 1981, Ronald Reagan, recentemente eleito
presidente dos Estados Unidos, põe à frente da FDA um quase
desconhecido, Arthur Hull Hayes, antigo investigador junto do Pentágono.
Donald Rumsfeld negou sempre ter interferido nesta nomeação. Um
elemento relatado pela agência United Press International poderia levar a
pensar o contrário. Segundo uma promotora comercial da Searle, Donald
Rumsfeld teria declarado à direcção de vendas, em Janeiro
de 1981, que se valeria das suas relações e trataria de fazer
aprovar o aspartame antes do fim do ano...
Que tenha sido ou não formulada, a promessa, em todo o caso, foi
cumprida. Em Julho de 1981, Arthur Hull Hayes autoriza a entrada no mercado do
aspartame, passando por cima da comissão científica mandatada
pela FDA, que considerara que o produto não deveria ser comercializado,
dados os casos de tumor cerebral aparecidos em ratos, no decurso dos testes
levados a cabo pela Searle. Mas isso pouco importa e, em Julho de 1983, Arthur
Hull Hayes alarga a autorização às bebidas e às
sodas... depois demite-se e consegue entrar para o gabinete de
relações públicas da Searle!
As vendas do aspartame, gabado pelas suas virtudes anticalóricas,
disparam. Em 1985, a Monsanto compra a Searle por 2,7 mil milhões de
dólares. O papel de intermediário pertenceu ao banco de
negócios William Blair, que Edgar Jannotta dirige desde então.
Donald Rumsfeld, por seu lado, mete ao bolso uma mais-valia de cerca de 5
milhões de dólares e vai para o William Blair com o posto de
conselheiro.
Em vinte anos, a FDA registou muitos milhares de queixas que atribuem ao
aspartame diversos problemas de saúde (enxaquecas, falhas de
memória, perturbações da visão...). E, na
Califórnia, três processos acabam de ser accionados por
associações de consumidores contra vários gigantes
agroalimentares. Por sua parte, a comunidade científica está
dividida, com um campo a advogar a sua inocuidade e um outro a
considerá-lo na categoria dos neurotóxicos.
O futuro dirá se as suspeitas relativamente ao aspartame são
fundadas. De qualquer modo, isto não impediu os seus promotores iniciais
de continuar a desenvolver os seus negócios: Samuel Skinner, o
procurador federal que, oportunamente, havia entrado para o gabinete de
advogados da Searle, tornou-se o director de gabinete de George Bush
sénior. E é hoje, entre outras coisas, administrador da Express
Scripts, uma sociedade de aconselhamento farmacêutico que obteve
recentemente do governo Bush (júnior) acesso a um lucrativo mercado de
corretagem de medicamentos. Arthur Hull Hayes, esse, passou a figurar entre os
100 maiores milionários da biotecnologia. É administrador de
várias sociedades farmacêuticas, destacando-se todas elas por uma
política agressiva de privatização do património
humano: a Myriad Genetics fez escândalo ao registar a patente de dois
genes humanos e a Napo Biotherapeutics (onde se encontra também Richard
Perle, um conselheiro próximo de Donald Rumsfeld) obteve da FDA o
direito de vender uma molécula elaborada em laboratórios estatais.
1983: CAIXEIRO-VIAJANTE EM BAGDAD
Ainda como administrador da Searle, Donald Rumsfeld efectua uma
missão diplomática por conta de George Shultz,
secretário de Estado do governo de Ronald Reagan. Em Dezembro de 1983,
ele é o enviado especial dos Estados Unidos a Bagdad, onde se encontra
com Sadam Hussein. Interrogado pela CNN, em Setembro de 2002, sobre a
razão desta visita, Rumsfeld respondeu que se tratava, entre outras
coisas, de desaconselhar a utilização de armas químicas na
guerra contra o Irão. No entanto, o relatório oficial do seu
encontro com o ditador não faz nenhuma menção a tal
advertência. Trata-se antes de um projecto de oleoduto que Donald
Rumsfeld defende junto do ditador. Este oleoduto é, na época, um
projecto da companhia Bechtel, o gigante americano das obras públicas,
de que George Shultz, o secretário de Estado a quem Rumsfeld deve a sua
viagem a Bagdad, era o administrador até à sua entrada para a
administração Reagan. Tornar-se-á, aliás, em 1989,
um dos seus principais dirigentes. Daí a pensar que Donald Rumsfeld
tenha representado os interesses da Bechtel junto de Sadam Hussein não
vai senão um passo. Seja como for, na altura, ele não via este
cliente de farda como um terrorista. A sua cumplicidade com George Shultz,
depois de se ter consolidado em diversos negócios, mantém-se
ainda hoje. Depois de se ter tornado secretário para a defesa, em 2001,
Donald Rumsfeld fê-lo entrar para a comissão de conselheiros do
Pentágono (Defense Policy Board) embora as regras excluam a
participação de pessoas que apresentam um possível
conflito de interesses. Ora, aos 84 anos, George Shultz continua a ser
administrador da Bechtel, um dos principais beneficiários das ajudas
para a reconstrução do Iraque. Sem passar pelo processo habitual
de lançamento a concurso, esta empresa obteve 1,8 biliões de
dólares de contratos, o equivalente a 15% do seu volume de
negócios em 2002.
1990-1993: OS DÓLARES DA ERA DIGITAL
Em Janeiro de 1989, George Bush, pai, entra na Casa Branca. Mas absteve-se de
chamar Rumsfeld, que se posicionou sempre como seu rival. Não importa...
Donald vai continuar a sua vida de homem de negócios. Em Outubro de
1990, passa a ser administrador geral da General Instrument, fabricante de
cabos de telecomunicações. Esta nomeação deve-a ele
a Theodore J. Forstmann, um financeiro nova-iorquino, fiel patrocinador das
campanhas eleitorais da família Bush, que acabara de comprar a empresa.
A General Instrument (GI) atravessa então momentos difíceis. A
empresa investiu largamente nas tecnologias de televisão digital. Ora a
FCC (Federal Communication Commission), a autoridade americana para a
regulação das telecomunicações, não
considerou, num concurso que visava definir o padrão da televisão
do futuro, senão candidatos que tivessem desenvolvido o formato
analógico. O mesmo é dizer que a GI se encontrava em risco de ser
excluída do mercado em benefício dos seus concorrentes,
nomeadamente os grupos japoneses. Que vem fazer nesta embrulhada um Donald
Rumsfeld sem nenhuma experiência na alta tecnologia? O seguimento da
história esclarece o seu papel.
Um mês depois da chegada de Don à
direcção da GI, as três companhias americanas em
competição perante a FCC convertem-se subitamente à
tecnologia digital, o que permite à GI, mediante uma aliança com
um dos candidatos, voltar a participar no jogo. Depois, a comissão de
selecção da FCC, para o seio da qual Donald Rumsfeld é
nomeado, a despeito de um evidente conflito de interesses, elimina o
consórcio japonês, com a alegação de que o
analógico é menos eficiente que o digital. Esta mesma
comissão recomendará seguidamente aos restantes candidatos que
formem uma grande aliança com vista a desenvolver um
padrão digital comum. A General Instrument encontra-se então em
posição de força. Em 1993, Ted Forstmann introduz a firma
na Bolsa, encaixando cinco vezes mais a sua entrada inicial, e Donald Rumsfeld
retira-se com uma mais-valia estimada em 7 milhões de dólares. Em
Março de 2000, numa entrevista, um antigo alto dirigente da GI, Frank
Drendel, lança uma luz crua sobre estas manobras: A General
Instrument era a única a propor o sistema digital, mas nós
tínhamos connosco Don Rumsfeld que gozava de relações em
Washington, na administração.
Dez anos mais tarde, este sistema é um fiasco. A revista
Business Week
classificou mesmo como o mais grosseiro erro político da
comunicação do século XX. Um erro que Donald
Rumsfeld atribui à FCC... Em Junho de 2001, durante uma
conferência de imprensa, onde ele alardeava a sua carreira de
empresário, explicava: Eu estava ma General Instrument quando a
firma desenvolveu a primeira televisão digital de alta
definição. A FCC chegou, apoderou-se do assunto e
bloqueou-o. Trata-se aqui de uma deturpação muito
característica do discurso ultraconservador: o que é, como tudo
leva a crer, um desvio de procedimento para fins privados passa a ser uma
tirania burocrática que abafa a liberdade de iniciativa. Como pormenor
curioso, assinalemos que a comissão da FCC a que a GI deve a sua
salvação era presidida, no momento, por Richard E. Wiley, um
advogado de negócios, guindado a político, como Rumsfeld, por
Richard Nixon e que se encontra hoje à frente de um dos principais
gabinetes de advogados especializados, entre outras coisas, no aconselhamento
às empresas que respondam às ofertas do Pentágono. Um
verdadeiro maná, com a política de compra e de
subcontratação dirigida por Donald Rumsfeld.
1993-1999: A BORDO DO GULFSTREAM
Em Março de 1990, Ted Forstmann tinha comprado uma outra empresa em
dificuldades, a Gulfstream, fabricante de aviões a jacto comerciais.
Cedo fez subir a bordo da Gulfstream algumas proeminentes figuras do partido
republicano: George Shultz em 1991, Donald Rumsfeld em 1993, Colin Powell em
1996 (adversário político dos ultraconservadores, este não
hesita na altura a juntar-se às suas caçadas financeiras) e,
finalmente, em 1997, Henry Kissinger, pilar dos governos de Nixon e de Ford,
entram no conselho de administração. Pela sua
participação em algumas reuniões por ano, recebem
vários milhares de acções. E, em Junho de 1999, quando Ted
Forstmann revende a Gulfstream à General Dynamics, o fabricante de
armas, eles encaixam uma mais-valia de cerca de 3 milhões de
dólares cada um. O advogado de negócios encarregado dos
interesses da General Dynamics, no momento da transacção, William
J. Haynes, é hoje um colaborador de Donald Rumsfeld. E não dos
menores: enquanto chefe do departamento jurídico do Pentágono,
foi ele que organizou o vazio legislativo, propício a todas as
derrapagens em que se encontram as prisões militares de Guantanamo
(Cuba), de Bagram (Afeganistão) ou Abou Ghraib (Iraque). Frente a uma
comissão do Senado, William J. Haynes, em Dezembro de 2001, reconhecia a
sua inexperiência em matéria de direito penal. Mas em Outubro de
2002, perante um congresso de magistrados de ultradireita, ele assumia, em nome
do seu chefe, a criação de zonas francas prisionais: O meu
patrão, Donald Rumsfeld, tem uma perspectiva semelhante e uma
determinação igual em não deixar que os dogmas de hoje se
atravessem no caminho de importantes objectivos da segurança
nacional. Também aqui, trata-se de uma deturpação
típica dos discursos ultraconservadores: a Constituição
americana e a Convenção de Genebra tornaram-se dogmas,
fetichismos burocráticos, entraves mesquinhos à
acção do homem responsável e realmente livre.
1998-2001: AS CONSEQUÊNCIAS DA LUTA ANTITERRORISTA
Em Janeiro de 1997, Donald Rumsfeld torna-se o administrador geral da Gilead,
uma sociedade criada dez anos antes na perspectiva de produzir medicamentos
contra doenças infecciosas. O nome de Gilead não é talvez
inocente. Num livro de sucesso, publicado em 1985, os Estados Unidos viam-se
apelidados com o nome de Gilead, depois de uma ditadura militar, apoiada por
uma população disposta a trocar os seus direitos pela
segurança, ter tomado o poder. Mas voltemos à empresa. Rumsfeld
conhece-a bem. Desde Julho de 1988, ele está instalado no seu conselho
de administração, onde figuram vários dos seus habituais
associados (George Shultz entrou em 1996). Nesta época, a Gilead procura
saída para o cidofovir, uma molécula antiviral cujos primeiros
testes não foram propriamente encorajadores: cancros e graves
lesões renais apareceram nos ratos após a ingestão de
algumas doses. O certo é que, em Junho de 1996, a FDA, mesmo assim, deu
a sua aprovação ao cidofovir, mas limitou a
autorização a um tipo bem preciso da infecção da
retina e acrescentou-lhe um aviso sobre a toxicidade do produto. Não era
coisa para sustentar uma cotação na Bolsa, tanto mais que, em
Agosto de 1998, a firma teve de avançar com uma carta aos médicos
americanos, explicando-lhes que, dados os numerosos casos de
insuficiência renal, alguns dos quais mortais, sobrevindos nos pacientes
tratados com cidofovir, era recomendável aplicar estritamente a
posologia.
A boa notícia virá de um investigador do Pentágono, John
Huggins, proveniente do mesmo estabelecimento que Arthur Hull Hayes, o homem
que legalizou o aspartame. Ele declara que o cidofovir é muito eficaz
contra o vírus da varíola. A partir de então, o
Pentágono integra a molécula da Gilead nas suas pesquisas sobre o
bioterrorismo. Em Março de 2002, quando Donald Rumsfeld passou a
secretário para a Defesa, John Huggins e Karl Hostetler, um
universitário, anunciam que aperfeiçoaram uma nova versão
do cidofovir, mais prática, que poderia ser ministrada à
população em caso de ataque terrorista com o vírus da
varíola. Karl Hostetler é, aliás, o administrador geral de
uma empresa farmacêutica que a Gilead compra em Dezembro de 2002 por 460
milhões de dólares. Ei-lo rico. E eis, também, assegurado
o futuro comercial do cidofovir, pois que, doravante, está
incluído no plano Bioshield Project, dotado com 6 mil milhões de
dólares por Bush em Fevereiro de 2003 e destinado a desenvolver
medicamentos e vacinas contra eventuais ataques bioquímicos.
Contudo, um membro da equipa Bush, Donald Henderson, antigo director da
Organização Mundial da Saúde (responsável, nos anos
de 1970, pelo programa de vacinação contra a varíola),
tinha levantado em Março de 2002, na revista científica
Nature
, uma questão interessante: porquê este interesse em desenvolver o
cidofovir, quando é visivelmente tóxico e nós dispomos,
por outro lado, de um método comprovado, que é a
vacinação? O doutor Henderson deixará bruscamente as suas
funções, dois meses após a publicação das
suas iconoclastas interrogações. Donald Rumsfeld é,
então, o todo-poderoso secretário para a Defesa. No seu gabinete
do Pentágono, prepara-se a argumentação sobre as pretensas
armas de destruição maciça na posse de Sadam Hussein, que
desembocará na guerra do Iraque. Rumsfeld já tem a sua palavra de
ordem. Será
shock and awe
. Vinte anos antes, era
sweet and low
para lançar o aspartame.
Falso açúcar, que faz dores de cabeça, um oleoduto para o
ditador, uma televisão que não funciona, um antivariólico
que destrói os rins... É a história de toda uma carreira
que, a coberto da ideologia, está marcada pela negociata.
27/Mai/04
O original encontra-se em
http://www.nouvelobs.com/articles/p2064/a242058.html
.
Tradução de MJS.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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