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							O declínio do império americano
						
								
									por Immanuel Wallerstein
									[*]
								
							 
							__________________ A ascensão dos Estados Unidos à hegemonia global foi um processo
							longo que começou de facto com a recessão mundial de 1873.  A
							partir daquela época, os Estados Unidos e a Alemanha começaram a
							controlar uma fatia cada vez maior dos mercados globais, graças
							sobretudo ao declínio contínuo da economia britânica. 
							Ambos os países haviam recentemente conquistado bases políticas
							estáveis:  os Estados Unidos com o fim da Guerra Civil e a Alemanha com
							a unificação após a derrota da França na Guerra
							Franco-Prussiana. 
 De 1873 a 1914, os Estados Unidos e a Alemanha tornaram-se os principais
							produtores em sectores chaves:  aço e depois automóveis nos
							Estados Unidos; química industrial na Alemanha.
 
 Os manuais de história registam que a Primeira Guerra Mundial eclodiu em
							1914 e terminou em 1918, e que a Segunda Guerra Mundial durou de 1939 a 1945. 
							No entanto, seria mais razoável considerar as duas como uma única
							e contínua "guerra de 30 anos" entre os Estados Unidos e a
							Alemanha, com tréguas e conflitos locais espalhados entre elas.
 
 A competição pela sucessão da hegemonia assumiu um teor
							ideológico a partir de 1933, quando os nazis chegaram ao poder na
							Alemanha e iniciaram sua tentativa de transcender o sistema global, não
							procurando competir pela hegemonia dentro do sistema vigente e sim pela
							construção de um império global.  Lembre-se do slogan nazi
							"ein tausendjähriges Reich" (um império de mil anos). 
							Por sua vez, os Estados Unidos assumiram o papel de defensores do liberalismo
							centrista mundial -- recordem-se as "quatro liberdades" do
							ex-presidente americano Franklin D. Roosevelt (liberdade de expressão,
							de religião, de necessidades materiais e do medo) -- e entraram numa
							aliança estratégica com a União Soviética,
							possibilitando a derrota da Alemanha e seus aliados.
 
 A Segunda Guerra Mundial resultou numa enorme destruição de
							infra-estruturas e de populações por toda a Eurásia, do
							Oceano Atlântico ao Pacífico, e poucos países escaparam
							às mesmas.  A única grande potência industrial do mundo a
							sair intacta e até reforçada, numa perspectiva económica,
							foram os Estados Unidos -- eles actuaram rapidamente para consolidar esta
							posição.
 
 Mas a aspiração à hegemonia teve de enfrentar alguns
							obstáculos políticos práticos. Durante a guerra, as
							potências aliadas concordaram em fundar as Nações Unidas e
							esta foi formada basicamente pelos países que participaram da
							coalizão contra as potências do Eixo.  A característica
							crucial da organização era o Conselho de Segurança, a
							única estrutura que poderia autorizar o uso da força.  Como a
							Carta da ONU deu o direito de veto a cinco potências, incluindo os
							Estados Unidos e a União Soviética, o Conselho de
							Segurança tornou-se inoperacional.  Assim, não foi a
							fundação das Nações Unidas em Abril de 1945 que
							determinou as limitações geopolíticas da segunda metade do
							século 20 e sim a Conferência de Ialta, dois meses antes, entre
							Roosevelt, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill e o
							líder soviético José Stalin.
 
 Os acordos formais de Ialta foram menos importantes do que os acordos informais
							tácitos, que só são perceptíveis se se observar o
							comportamento dos Estados Unidos e da União Soviética ao longo
							dos anos seguintes.  Quando a guerra terminou na Europa, em 8 de maio de 1945,
							tropas soviéticas e ocidentais (isto é, americanas,
							britânicas e francesas) situavam-se em determinados locais sobre o
							terreno, basicamente acompanhando uma linha no centro da Europa, que passou a
							ser chamada de Linha Oder-Neisse.  Excepto por alguns pequenos acertos, elas
							ali permaneceram.  Em retrospectiva, Ialta significou um acordo entre ambos os
							lados de que elas poderiam ali ficar e de que nenhum lado usaria a força
							para expulsar o outro.  Esse acordo tácito também se aplicava
							à Ásia, como provam a ocupação do Japão
							pelos Estados Unidos e a divisão da Coreia.  Politicamente, portanto,
							Ialta foi um acordo sobre o status quo em que a União Soviética
							passou a controlar cerca de um terço do mundo e os Estados Unidos o
							restante.
 
 Washington também enfrentou desafios militares mais sérios. A
							União Soviética tinha as maiores forças terrestres do
							mundo, ao passo que o governo americano enfrentava pressão interna para
							reduzir seu Exército, inclusive com a extinção do
							serviço militar obrigatório.
 
 Os Estados Unidos, portanto, decidiram afirmar seu poderio militar não
							por meio de forças terrestres, mas por meio do monopólio das
							armas nucleares (e uma força aérea capaz de
							transportá-las).  Esse monopólio teve curta dura:  desapareceu em
							1949, pois a União Soviética também desenvolveu armas
							nucleares.
 
 Desde então, os Estados Unidos ficaram reduzidos a tentar evitar a
							proliferação mundial de armas nucleares (e armas químicas
							e biológicas), uma iniciativa que não parece bem fadada no
							século XXI.
 
 Até 1991, os Estados Unidos e a União Soviética
							coexistiram no "equilíbrio do terror" da Guerra Fria.  Essa
							situação foi testada cegamente apenas três vezes:  no
							bloqueio de Berlim, em 1948-49, na Guerra da Coreia, em 1950-53, e na crise dos
							mísseis cubanos, em 1962.  O resultado em cada caso foi a
							restauração do status quo.  Além disso, sempre que a
							União Soviética enfrentou uma crise política em seus
							regimes satélites -- Alemanha Oriental em 1953, Hungria em 1956,
							Checoslováquia em 1968 e Polónia em 1981 --, os Estados Unidos
							efectuaram pouco mais que exercícios de propaganda, permitindo que a
							União Soviética agisse à sua vontade.
 
 É claro que essa passividade não se estendia à área
							económica.  Os Estados Unidos aproveitaram o ambiente da Guerra Fria
							para lançar iniciativas maciças de reconstrução
							económica, primeiro na Europa Ocidental e depois no Japão (assim
							como na Coreia do Sul e em Taiwan).  O raciocínio era óbvio:  de
							que servia ter uma superioridade produtiva tão esmagadora se no resto do
							mundo não houvesse procura efectiva?
 
 Além disso, a reconstrução económica ajudava a
							criar obrigações clientelistas por parte dos países que
							recebiam a ajuda americana; esse sentido de obrigação promovia a
							disposição para entrar em alianças militares e, mais
							ainda, à subserviência política.
 
 Finalmente, não se deve subestimar o componente ideológico e
							cultural da hegemonia americana. O período imediatamente posterior a
							1945 pode ter sido o auge histórico da popularidade da ideologia
							comunista. É fácil esquecer hoje as enormes
							votações obtidas por Partidos Comunistas em
							eleições livres em países como Bélgica,
							França, Itália, Checoslováquia e Finlândia, sem
							falar no apoio que os Partidos Comunistas obtiveram na Ásia -- Vietname,
							Índia, Japão -- e por toda a América Latina.  E isso ainda
							sem considerar áreas como China, Grécia e Irão, onde
							não houve eleições livres ou estas foram restritas, mas
							onde os Partidos Comunistas locais desfrutavam de um apoio generalizado. Em
							reacção, os Estados Unidos mantiveram uma maciça ofensiva
							ideológica anticomunista.
 
 Em retrospectiva, essa iniciativa parece amplamente bem sucedida:  Washington
							desempenhou seu papel como líder do "mundo livre" de modo pelo
							menos tão eficaz quanto a União Soviética desempenhava o
							seu como líder do campo "progressista" e
							"anti-imperialista".
 
 O êxito dos Estados Unidos como potência hegemónica no
							período do pós-guerra criou as condições para o
							colapso hegemónico do país. Esse processo é bem descrito
							por quatro eventos simbólicos:  a Guerra do Vietname, as
							revoluções de 1968, a queda do Muro de Berlim em 1989 e os
							atentados terroristas de setembro de 2001.  Cada evento ergueu-se sobre o
							anterior, culminando na situação em que os Estados Unidos hoje se
							encontram:  uma superpotência solitária, que carece de verdadeiro
							poder, um líder mundial que ninguém segue e poucos respeitam e um
							país que flutua perigosamente em meio ao caos global que não pode
							controlar.
 
 O que foi a Guerra do Vietname?  Foi sobretudo o esforço do povo
							vietnamita para acabar com o domínio colonial e estabelecer o seu
							próprio Estado.  Os vietnamitas combateram os franceses, os japoneses e
							os americanos e no final os vietnamitas venceram -- um grande feito, na
							verdade. Do ponto de vista geopolítico, contudo, a guerra representou a
							rejeição ao status quo de Ialta por populações
							então rotuladas como Terceiro Mundo. O Vietname tornou-se um
							símbolo muito poderoso, porque Washington foi suficientemente
							estúpida para investir todo o seu poderio militar naquela luta e, mesmo
							assim, os Estados Unidos perderam.  É verdade que os Estados Unidos
							não utilizaram armas nucleares (decisão que certos grupos
							míopes de direita muito criticaram), mas a sua utilização
							teria destruído os acordos de Ialta e poderia ter produzido um
							holocausto nuclear, resultado que os Estados Unidos simplesmente não
							poderiam arriscar.
 
 Mas o Vietname não foi simplesmente uma derrota militar ou uma
							maldição para o prestígio americano.  A guerra desferiu um
							grande golpe contra a capacidade de os Estados Unidos continuarem a ser a
							potência económica dominante no mundo.  O conflito saiu
							extremamente caro e praticamente esgotou as reservas de ouro dos Estados
							Unidos, que eram abundantes desde 1945.
 
 Além disso, os Estados Unidos enfrentaram essas despesas exactamente
							quando a Europa Ocidental e o Japão experimentavam grande crescimento
							económico.  Esse condicionamento pôs fim ao predomínio
							americano na economia global.
 
 Desde os fins da década de 60 os membros dessa tríade têm
							sido praticamente equivalentes em termos económicos, cada um a
							desempenhar-se melhor durante certos períodos, mas sem que nenhum se
							distancie demasiado dos outros.
 
 Quando as revoluções de 1968 irromperam por todo o mundo, o apoio
							aos vietnamitas tornou-se um importante componente retórico.  "Um,
							dois, muitos Vietnames" e "Ho, Ho, Ho Chi Minh" foram entoados
							em muitas ruas do mundo todo, inclusive nos Estados Unidos. Mas a
							geração de 68 não condenava apenas a hegemonia americana.
							Condenava a conivência soviética com os Estados Unidos, condenava
							Ialta e usou ou adaptou a linguagem da Revolução Cultural
							chinesa, que dividia o mundo em dois campos: as duas superpotências e o
							resto do mundo.
 
 A denúncia da conivência soviética levou logicamente
							à denúncia das forças nacionais intimamente aliadas
							à União Soviética, o que na maioria dos casos significava
							os partidos comunistas tradicionais. Mas os revolucionários de 1968
							também atacaram outros componentes da Velha Esquerda -- os movimentos de
							libertação nacional no Terceiro Mundo, os movimentos
							social-democratas na Europa e os democratas do New Deal nos Estados Unidos,
							acusando-os também de conivência com aquilo que os
							revolucionários chamavam genericamente de "imperialismo
							americano".
 
 O ataque à conivência soviética com Washington, mais o
							ataque contra a Velha Esquerda, enfraqueceu ainda mais a legitimidade dos
							acordos de Ialta sobre os quais os Estados Unidos haviam moldado a ordem
							mundial. Ele também minava a posição do liberalismo
							centrista como a única e legítima ideologia global.  As
							consequências políticas directas das revoluções
							mundiais de 68 foram mínimas, mas as repercussões
							geopolíticas e intelectuais foram enormes e irrevogáveis.  O
							liberalismo de centro caiu do trono que ocupara desde as
							revoluções europeias de 1848 e que lhe permitira incluir tanto
							conservadores quanto radicais. Tais ideologias retornaram e mais uma vez
							representaram um verdadeiro leque de opções. Os conservadores
							tornar-se-iam novamente conservadores, e os radicais, radicais. Os liberais de
							centro não desapareceram, mas foram reduzidos. Nesse processo, a
							posição ideológica oficial dos Estados Unidos
							--antifascista, anticomunista, anticolonialista -- parecia frágil e
							inconveniente para uma proporção cada vez maior das
							populações mundiais.
 
 O início da estagnação económica internacional na
							década de 70 teve duas consequências importantes para o poderio
							americano. Primeiro, a estagnação resultou no colapso do
							"desenvolvimentismo", a ideia de que cada país poderia
							avançar economicamente se o Estado tomasse medidas adequadas, que
							constituía a principal reivindicação ideológica dos
							movimentos da Velha Esquerda então no poder.
 
 Esses regimes enfrentaram distúrbios internos sucessivos, com o
							declínio doa padrões de vida, dívidas crescentes, a
							dependência em relação às instituições
							financeiras internacionais e a erosão de sua credibilidade. O que nos
							anos 60 parecia ser uma bem sucedida descolonização do Terceiro
							Mundo com o apoio dos Estados Unidos, minimizando rupturas e maximizando a
							suave transferência de poder para regimes desenvolvimentistas, mas muito
							pouco revolucionários, deu lugar à desintegração da
							ordem, ao descontentamento turbulento e a temperamentos radicais não
							canalizados.
 
 Nos lugares em que os Estados Unidos tentaram intervir, fracassaram. Em 1983, o
							presidente Ronald Reagan mandou tropas para o Líbano a fim de restaurar
							a ordem.  Na realidade as tropas foram praticamente expulsas dali.  Ele
							compensou invadindo Granada, um país sem tropas.
 
 O presidente George Bush invadiu o Panamá, outro país sem tropas.
							 Mas, depois, interveio na Somália para restaurar a ordem, e os Estados
							Unidos foram na verdade expulsos de um modo ignominioso.  Como havia pouco que
							o governo americano realmente pudesse fazer para inverter essa tendência
							de declínio da hegemonia, ele preferiu simplesmente ignorá-la
							tendência, uma política que prevaleceu desde a retirada do
							Vietname até 11 de Setembro de 2001.
 
 Uma hipótese para a impotência dos EUA
 
 Enquanto isso, os verdadeiros conservadores começaram a assumir o
							controle de países-chave e instituições internacionais.  A
							ofensiva neoliberal dos anos 80 foi marcada pelos regimes Thatcher e Reagan e
							pelo surgimento do FMI como um actor-chave no cenário mundial.  Antes
							(ao longo de mais de um século), as forças conservadoras tentavam
							auto-apresentar-se como liberais e sensatas.  Agora, os liberais de centro eram
							obrigados a argumentar que eram conservadores mais eficazes.
 
 Os programas conservadores eram claros.  No plano interno, os conservadores
							tentavam implementar políticas que reduzissem o custo do trabalho,
							minimizando as restrições ambientais aos produtores e cortando os
							benefícios do bem-estar estatal 
							
								(welfare state)
							
							.  Os êxitos verdadeiros foram modestos, por isso os conservadores
							passaram a actuar vigorosamente na arena internacional.
 
 As reuniões do Fórum Económico Mundial em Davos
							constituíram um campo de encontro para as elites e os media.  O FMI
							representava um clube para ministros das Finanças e banqueiros centrais.
							 E os Estados Unidos pressionaram pela criação da
							Organização Mundial do Comércio, destinada a promover
							fluxos comerciais livres através das fronteiras mundiais.
 
 Quando os Estados Unidos não estavam a olhar, a União
							Soviética desmoronou.  Sim, Ronald Reagan chamara a União
							Soviética de "império do mal" e usara a retórica
							bombástica de pedir a destruição do Muro de Berlim, mas os
							Estados Unidos realmente não pretendiam e certamente não foram
							responsáveis pela queda da União Soviética.  Na verdade, a
							União Soviética e sua zona imperial no Leste Europeu desabou
							devido à desilusão popular com a velha esquerda, em conjunto com
							iniciativas do líder soviético Mikhail Gorbatchov para salvar seu
							regime, liquidando Ialta e instituindo a liberalização interna
							(perestroika mais glasnost).  Gorbatchov conseguiu liquidar Ialta, mas
							não salvar a União Soviética (embora quase o tenha
							conseguido, deve-se dizer).
 
 Os Estados Unidos ficaram surpresos e atónitos com o colapso
							súbito, sem saber como enfrentar as consequências. O colapso do
							comunismo significou na verdade o colapso do liberalismo, removendo a
							única justificação ideológica que respaldava a
							hegemonia americana, uma justificativa tacitamente apoiada pelo
							adversário ideológico ostensivo do liberalismo.  Essa perda de
							legitimidade conduziu directamente à invasão do Kuwait pelo
							Iraque, que o líder iraquiano Saddam Hussein jamais teria ousado se os
							acordos de Ialta continuassem em vigor.
 
 Em retrospectiva, as iniciativas americanas na Guerra do Golfo obtiveram
							basicamente uma trégua na linha de partida.  Mas uma potência
							hegemónica pode-se satisfazer com um empate numa guerra com um poder
							regional mediano?  Saddam demonstrou que era possível entrar numa briga
							com os Estados Unidos e sair inteiro.  Ainda mais que a derrota no Vietname, o
							desafio ousado de Saddam revolveu as entranhas da direita americana,
							particularmente as dos chamados falcões, o que explica o fervor de seu
							actual desejo de invadir o Iraque e destruir seu regime.
 
 Entre a Guerra do Golfo e o 11 de setembro de 2001, as duas principais arenas
							de conflito mundial foram os Balcãs e o Oriente Médio.  Os
							Estados Unidos desempenharam importante papel diplomático em ambas as
							regiões. Olhando em retrospectiva, quão diferentes seriam os
							resultados se os Estados Unidos tivessem assumido uma posição
							totalmente isolacionista?  Nos Balcãs, um Estado multinacional
							economicamente bem sucedido (Jugoslávia) desmoronou, basicamente em suas
							partes componentes. Durante dez anos, a maioria dos Estados resultantes iniciou
							um processo de etnificação, experimentando uma violência
							brutal, amplas violações de direitos humanos e guerras.  A
							intervenção externa, em que os Estados Unidos actuaram de modo
							destacado, levou a uma trégua e pôs fim à violência
							mais evidente, mas essa intervenção de modo nenhum reverteu a
							etnificação, que hoje está consolidada e de certa forma
							legitimada.
 
 Esses conflitos teriam terminado de modo diferente sem o envolvimento
							americano?  A violência poderia ter continuado por mais tempo, mas os
							resultados básicos provavelmente não teriam sido muito
							diferentes.  O quadro é ainda mais grave no Oriente Médio, onde o
							envolvimento dos Estados Unidos foi mais profundo, e seus fracassos, mais
							espectaculares.  Nos Balcãs e no Oriente Médio igualmente, os
							Estados Unidos deixaram de exercer seu poder hegemónico com
							eficácia não por falta de vontade ou de esforço, mas por
							falta de verdadeiro poder.
 
 Então veio o 11 de Setembro, o choque e a reacção.  Sob o
							fogo dos legisladores americanos, a CIA hoje afirma que havia advertido o
							governo Bush sobre possíveis ameaças.  Mas, apesar do enfoque da
							CIA sobre a Al Qaeda e a perícia da inteligência do
							órgão, ela não pôde prever (e portanto evitar) a
							execução dos ataques terroristas.  Foi o que afirmou o director
							da CIA, Robert Tenet.  Esse depoimento dificilmente pode tranquilizar o governo
							ou o povo americanos.
 
 Seja o que for que os historiadores decidam, os atentados de 11 de Setembro de
							2001 representaram um grande desafio ao poderio americano.  Os
							indivíduos responsáveis não representavam uma grande
							potência militar.  Eram membros de uma força não estatal,
							com alto grau de determinação, algum dinheiro, um grupo de
							seguidores dedicados e uma forte base em um Estado fraco.  Em suma, não
							eram nada militarmente.  No entanto, tiveram êxito num ataque ousado ao
							solo americano.
 
 George W. Bush chegou ao poder criticando muito o trabalho do governo Clinton
							nos assuntos externos.  Bush e seus assessores não o admitiram, mas sem
							dúvida estavam conscientes de que o caminho de Clinton fora o de todo
							presidente americano desde Gerald Ford, incluindo os de Ronald Reagan e George
							Bush pai.  E tinha sido até o caminho do actual governo Bush antes do 11
							de Setembro. Basta ver como Bush tratou o caso do avião americano
							derrubado na China em Abril de 2001 para verificar que prudência era o
							nome do jogo.
 
 Depois dos atentados terroristas, Bush mudou de rumo, declarando guerra ao
							terrorismo, garantindo ao povo americano que "o resultado é
							certo" e informando ao mundo que "ou estão do nosso lado ou
							estão contra nós".
 
 Frustrados há muito, até mesmo pelos mais conservadores governos
							americanos, os falcões finalmente passaram a dominar a cena
							política americana.  Sua posição é clara:  os
							Estados Unidos detêm um poderio militar esmagador e, embora
							inúmeros líderes estrangeiros considerem insensato Washington
							aplicar sua força militar, esses mesmos líderes não podem
							fazer e não farão qualquer coisa se os Estados Unidos
							simplesmente impuserem sua vontade ao resto do mundo.  Os falcões
							acreditam que os Estados Unidos devem agir como uma potência imperial por
							dois motivos:  primeiro, os Estados Unidos podem fazer isso;  e, segundo, se
							Washington não exercer sua força, os Estados Unidos
							ficarão cada vez mais marginalizados.
 
 Hoje essa posição dos falcões tem três
							expressões:  o ataque militar ao Afeganistão, o apoio de facto
							à tentativa israelense de liquidar a Autoridade Palestina e a
							invasão do Iraque, que estaria em fase de preparativos militares.  Menos
							de um ano depois dos atentados terroristas de Setembro de 2001, talvez seja
							cedo demais para avaliar o resultado futuro dessas estratégias.
 
 Até agora, esses esquemas levaram à derrubada dos taliban no
							Afeganistão (sem o desmantelamento completo da Al Qaeda ou a captura de
							sua liderança); enorme destruição na Palestina (sem tornar
							"irrelevante" o líder palestino Iasser Arafat, como pretendia
							o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon); e a forte oposição
							dos aliados dos Estados Unidos na Europa e no Oriente Médio aos planos
							de invasão do Iraque.
 
 A leitura dos factos recentes pelos falcões enfatiza que a
							oposição às acções americanas, embora
							séria, continua principalmente verbal.  Nem a Europa Ocidental nem a
							Rússia, a China ou a Arábia Saudita parecem dispostas a romper
							seriamente os laços com os Estados Unidos.  Por outras palavras, os
							falcões acreditam que Washington realmente conseguiu desenvencilhar-se. 
							Os falcões supõem que um resultado semelhante virá a
							ocorrer quando os militares americanos realmente invadirem o Iraque e, depois,
							quando os Estados Unidos exercerem sua autoridade em outras partes do mundo,
							seja no Irão, na Coreia do Norte, na Colômbia ou talvez na
							Indonésia.
 
 Ironicamente, a leitura dos falcões tornou-se de modo geral a leitura da
							esquerda internacional, que vem gritando contra as políticas americanas
							principalmente por temer que as probabilidades de êxito dos EUA sejam
							elevadas.  Mas as interpretações dos falcões estão
							erradas e apenas contribuirão para o declínio dos EUA,
							transformando uma descida gradual numa queda muito mais rápida e
							turbulenta.  Especificamente, as abordagens dos falcões irão
							fracassar por motivos militares, económicos e ideológicos.
 
 Os militares continuam a ser, sem dúvida, a carta mais forte dos EUA; 
							na verdade, a única carta.  Hoje os Estados Unidos possuem a mais
							formidável máquina militar do mundo.  E, a acreditar-se nos
							anúncios de novas e incomparáveis tecnologias militares, a
							vantagem americana sobre o resto do mundo é consideravelmente maior hoje
							do que uma década atrás.  Mas significará isso que os EUA
							podem invadir o Iraque, conquistá-lo rapidamente e instalar um regime
							amigo e estável?  É improvável.  Tenha-se em mente que,
							das três guerras sérias que os EUA travaram desde 1945 (Coreia,
							Vietname e Golfo), uma terminou em derrota e duas em retirada após
							aquilo que poderia ser chamado de "empate" -- não é
							exactamente um registro glorioso.
 
 O Exército de Saddam não é o dos taliban e o controle
							interno dos seus militares é muito mais firme.  Uma invasão
							americana envolveria necessariamente uma importante força terrestre, que
							teria de abrir caminho até Bagdad e provavelmente sofreria baixas
							significativas.  Essa força também precisaria de bases como
							pontos de partida para os combates e a Arábia Saudita deixou claro que
							não ajudará nesse sentido.  O Kuwait ou a Turquia
							ajudarão?  Talvez, se Washington utilizar todas as suas fichas.
 
 Enquanto isso, pode-se esperar que Saddam utilize todas as armas à sua
							disposição e é exactamente o que inquieta o governo
							americano:  que essas armas possam ser muito malignas.  Os EUA podem torcer os
							braços dos regimes da região, mas o sentimento popular vê
							todo o assunto como o reflexo de um profundo viés anti-árabe nos
							EUA.  Esse conflito pode ser vencido?  O estado-maior britânico já
							informou ao primeiro-ministro Tony Blair que não acredita nisso.
 
 E sempre há a questão das "segundas frentes".  Depois
							da Guerra do Golfo, as Forças Armadas americanas tentaram preparar-se
							para a possibilidade de duas guerras regionais simultâneas.  Depois de
							algum tempo, o Pentágono abandonou silenciosamente a ideia, por ser
							impraticável e dispendiosa.  Mas quem pode ter certeza de que nenhum
							potencial inimigo atacará quando os EUA estiverem atolados no Iraque?
 
 Considere-se também a questão da tolerância popular
							americana às não-vitórias.  Os americanos oscilam entre um
							fervor patriótico que apoia todos os presidentes em tempo de guerra e um
							profundo sentimento isolacionista.  Desde 1945, o patriotismo chocou-se com um
							muro sempre que as baixas aumentaram.  Por que a reacção seria
							diferente hoje?  E, mesmo que os falcões (quase todos civis) se sintam
							impermeáveis à opinião pública, os generais
							americanos, queimados pelo Vietname, não se sentem.
 
 E a frente económica?  Nos anos 80, inúmeros analistas americanos
							ficaram histéricos quanto ao milagre económico japonês. 
							Eles acalmaram-se nos anos 90, diante das conhecidas dificuldades financeiras
							do Japão.  Mas, depois de exageradas declarações sobre o
							avanço rápido do Japão, as autoridades americanas hoje
							parecem tranquilas, confiantes em que o Japão está muito
							atrás.  Hoje em dia, Washington parece mais inclinada a mostrar aos
							decisores das políticas japonesas o que eles estão a fazer errado.
 
 Esse triunfalismo dificilmente parece garantido.  Considere a seguinte
							reportagem do 
							
								New York Times
							
							 de 20/Abril/2002:  "Um laboratório japonês construiu o
							computador mais rápido do mundo, uma máquina tão poderosa
							que se equipara ao poder de processamento dos 20 mais rápidos
							computadores americanos juntos e supera de longe o líder anterior, uma
							máquina construída pela IBM.  A conquista [...] "é a
							evidência de que a corrida tecnológica, que a maioria dos
							engenheiros americanos pensava vencer facilmente, está longe de
							terminar".
 
 A análise continua, comentando que há "prioridades
							científicas e tecnológicas contrastantes" nos dois
							países. A máquina japonesa foi construída para analisar
							mudanças climáticas, mas as máquinas americanas são
							desenhadas para simular armas.
 
 Esse contraste representa a história mais antiga na história das
							potências hegemónicas.  O poder dominante concentra-se nos
							militares (em seu detrimento); o candidato a sucessor concentra-se na economia.
							 A última opção sempre foi a mais vantajosa.  Foi o que
							aconteceu com os Estados Unidos.  Por que não deveria acontecer
							também com o Japão, talvez em aliança com a China?
 
 Finalmente, há a esfera ideológica.  Hoje, a economia americana
							parece relativamente fraca, ainda mais considerando-se as exorbitantes despesas
							militares associadas às estratégias dos falcões. 
							Além disso, Washington continua politicamente isolada; virtualmente
							ninguém (excepto Israel) acha que a posição do
							falcão faz sentido ou é digna de incentivo.  Outros países
							temem ou não estão dispostos a enfrentar Washington directamente,
							mas até sua indecisão está a prejudicar os Estados Unidos.
 
 Mas a reacção americana representa pouco mais que um arrogante
							braço de força.  A arrogância tem suas próprias
							negativas.  Usar as fichas significa deixar menos fichas para a próxima
							vez, e a aquiescência a contragosto provoca um ressentimento crescente. 
							Durante os últimos 200 anos, os EUA conquistaram uma quantidade
							considerável de crédito ideológico.  Mas, hoje em dia, os
							EUA estão a gastar esse crédito ainda mais depressa do que
							gastaram seus excedentes em ouro nos anos 60.  Os EUA enfrentam duas
							possibilidades nos próximos dez anos:  podem seguir o caminho dos
							falcões, com consequências negativas para todos, mas especialmente
							para o país.  Ou, em alternativa, podem perceber que as
							consequências negativas seriam demasiado grandes.
 
 Simon Tisdall, do "Guardian", argumentou recentemente que, mesmo sem
							considerar a opinião pública internacional, "os Estados
							Unidos não são capazes de ter êxito numa guerra no Iraque
							sozinhos sem incorrer em enormes danos, principalmente em termos de seus
							interesses económicos e seu abastecimento energético.  Bush
							está reduzido a falar com dureza e a parecer ineficaz".  E, se os
							EUA invadirem o Iraque e forem obrigados a recuar, ele parecerá ainda
							mais ineficaz.
 
 As opções do presidente Bush parecem extremamente limitadas e
							não há dúvida de que os EUA continuarão a declinar
							como força decisiva nos assuntos mundiais na próxima
							década.  A verdadeira questão não é se a hegemonia
							americana está a decair, mas se os EUA podem encontrar uma maneira de
							declinar graciosamente, com danos mínimos para o mundo e para si
							próprios.
 [*]
								Investigador na Universidade Yale.   Publicou recentemente 
								
									The End of the World As We Know It: Social Science for the Twenty-First Century
								
								 , Mineápolis, University of Minnesota Press, 1999.  Mais textos do autor
								no
								Fernand Braudel Center
								, dirigido por Wallerstein.
 
 Este artigo encontra-se em
								http://resistir.info
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