Pico petrolífero
Fausto e a armadilha do macaco
por John Michael Greer
Um dos factores que torna a crise da sociedade industrial tão
difícil de tratar é o facto de esta crise desdobrar-se fora das
suposições fundamentais que costumamos utilizar para dar sentido
ao mundo. A famosa máxima de Albert Einstein acerca de tentar resolver
um problema com a mesma espécie de pensamento que o criou raramente foi
tão relevante. Notavelmente, muitas das tentativas actuais de fazer
algo acerca do pico petrolífero repousam sobre a mesma lógica que
nos conduziu à nossa presente situação difícil, e
enfocam soluções que prometem tornar a nossa
situação ainda pior do que já é.
Das dúzias de bons exemplos no noticiário diário, um que
parece mais notável é a bomba relógio económica
posta em andamento pela tentativa do governo americano de sustentar sua
vacilante economia orientada pelo petróleo por meio do etanol. Quando o
milho e outros cereais forem desviados das mercearias para os
reservatórios de gasolina, os preços das
commodities
aumentarão, a inflação reflectir-se-á por toda a
cadeia económica alimentar, e a possibilidade da escassez real de
cereais assoma no horizonte de médio prazo. Mais de 20 anos
atrás, William Catton destacou no seu
Overshoot
, um clássico influente, que o declínio da sociedade industrial
forçaria os seres humanos a competirem contra as suas próprias
máquinas por stocks de recursos minguantes. A sua previsão
tornou-se hoje uma realidade.
Tudo isto recorda muito uma velha metáfora em psicologia cognitiva.
Muitos séculos atrás, no sudeste da Ásia, algumas almas
espertas descobriram como utilizar os padrões de pensamento dos macacos
para fabricar uma armadilha altamente eficaz. A armadilha é uma
abóbora com um buraco numa extremidade suficientemente grande para que
caiba a mão do macaco, e uma corda robusta ligada ao outro
extremo, ligada a uma estaca no chão. Dentro da abóbora
há um bocado de algum alimento local apreciado pelos macacos,
suficientemente grande e sólido para que não possa ser arrancado
da abóbora. Põe-se a armadilha num lugar frequentado por macacos
e espera-se.
Mais cedo ou mais tarde chega um macaco, cheira a comida e põe a
mão dentro da abóbora para apanhá-la. O buraco é
demasiado pequeno para que o macaco retire a mão e o alimento juntos, e
a corda e a estaca impedem o macaco de puxarem tudo para longe, de modo que o
macaco continua a tentar tirar para fora a comida na sua mão. Enquanto
isso, às escondidas, você aproxima-se do macaco com uma rede, se
houver um mercado para macacos vivos, ou com alguma coisa mais mortal se
não houver. Mais frequentemente do que não, ao invés de
abandonar a comida e correr para a segurança da árvore mais
próxima, o macaco manter-se-á freneticamente a tentar retirar a
comida da abóbora até que a rede o captura.
A armadilha funciona porque os macacos, tal como resto de nós, tendem a
tornar-se tão focalizados na busca de objectivos imediatos pelos meios
familiares que eles perdem a pista do contexto mais vasto de prioridades que
tornam aqueles meios e objectivos significativos. Uma vez cheirada a comida na
abóbora, ela define o problema de como extraí-la, e tenta
resolver este problema do modo habitual, pela manipulação da
comida e da abóbora. Quando o caçador aparece, isto simplesmente
acrescenta um toque de urgência, e faz com que o problema pareça
ser como conseguir extrair a comida antes que chegue o caçador. Dito
numa destas alternativas, o problema é de resolução
impossível. Só terá resolução se o macaco
recordar que a comida não tem qualquer valor para um macaco morto, e
redefinir o problema como basicamente uma questão de escapar do
caçador, abandonar a comida, retirar a sua mão da armadilha, e
correr para a árvore mais próxima.
A armadilha do macaco pode não parecer um bom tema para a grande
literatura, mas exactamente o mesmo dilema constitui a trama da peça
clássica
Doctor Faustus,
de
Christopher Marlowe
.
Na visão de Marlowe, Fausto é um intelectual frustrado
(manqué)
que domina toda a sabedoria do seu tempo e considera isto sem valor pois dela
não pode extrair dinheiro a fim de ter poder. Assim, apela ao diabo
Mefistófeles, que lhe oferece 24 anos de poder sobre o mundo das
aparências em troca da sua alma imortal. Fausto alegremente faz o
negócio e prossegue agindo loucamente na melhor parte dos nove actos,
com o obsequioso Mefistófeles sempre pronto a satisfazer todos os seus
caprichos excepto um. Finalmente, os 24 anos escoam-se e quando soam as
badaladas da meia-noite um grupo de diabos ataca Fausto e arrasta-o para o
inferno.
Tudo isto chegou a Marlowe através da literatura popular que lhe deu a
matéria-prima para a sua peça. O que faz da versão de
Marlowe da estória um do grande dramas da Inglaterra Elisabetana
é a sua percepção da psicologia da danação
de Fausto. Fausto passa quase toda a peça angustiado desejando
livrar-se do pacto que finalmente arrasta-o para a sua perdição.
Tudo o que ele tem a fazer é renunciar ao pacto e todos os poderes e
prazeres que ele lhe traz, e a salvação é sua mas
é exactamente isso que ele não pode fazer. Ele torna-se
tão focalizado nos seus poderes de bruxo, tão habituado a obter o
que quiser através de ordens a Mefistófeles, que a possibilidade
de qualquer outra coisa de outra forma escapa ao seu entendimento. Mesmo no
extremo final, quando os diabos o arrastam para longe, as últimas
palavras que brotam dos seus lábios são um grito para que
Mefistófeles venha salvá-lo.
A lógica da armadilha do macaco está subjacente em todo o
cenário, porque o macaco e Fausto armadilharam-se eles próprios
basicamente do mesmo modo. Ambos têm uma experiência de resolver
problemas utilizando um método específico o macaco, pela
manipulação de coisas com as suas mãos; Fausto, pedindo a
Mefistófeles e fazendo com que cuide disso. Ambos encontram um problema
que parece poder ser resolvido do mesmo modo, mas não pode. Ambos
continuam a tentar utilizar o seu conjunto habitual de ferramentas para
resolução de problemas mesmo quando elas evidentemente não
funcionam. Mesmo quando o feitio real do problema se torna claro e romper com
o antigo modo de pensamento torna-se uma questão de sobrevivência
imediata, eles mantêm-se a lutar para fazer com que o problema se ajuste
às suas soluções escolhidas, ao invés de ajustar a
sua solução ao problema real.
Mefistófeles e o caçador de macacos têm aqui um aliado
crucial, e o seu nome é stress. Uma coisa é recuar e inventariar
uma situação quando parece haver abundância de tempo e
nenhum sinal de perigo. É muito diferente fazer isso na presença
de uma ameaça real à sobrevivência. Uma vez surgido o
verdadeiro quadro da situação, as reacções de
stress embutidas nos sistemas nervosos dos homens e dos macacos actuam, e
tornam na verdade muito difícil reavaliar a situação e
considerar meios alternativos de tratar dela. A cena final do drama de
Marlowe, quando Fausto espera pelas badaladas da meia-noite e tenta por todos
os meios escapar excepto por aquele que pode realmente salvá-lo, exprime
este dilema com intensidade demolidora.
O mesmo dilema numa escala mais vasta subjaz aos actuais esforços para
tratar do declínio iminente da produção mundial de
petróleo através da descoberta de alguma outra coisa para
despejar dentro dos nossos reservatórios de combustível: etanol,
biodiesel, hidrogénio, pode poder o nome que quiser. Os nossos
veículos movidos a petróleo não só os carros,
mas os camiões, comboios, navios e aviões que tornam
possível o nosso modo de vida actual são a comida na
mão do macaco e o pacto que ata Mefistófeles ao
serviço de Fausto. O problema do pico petrolífero, tal como
muitas pessoas mesmo na comunidade do pico petrolífero o encaram,
é como descobrir algum outro modo de manter os reservatórios de
combustível atestados. Isto parece de senso comum, mas também
é isto o que pensa o macaco acerca de conseguir extrair o alimento para
fora da abóbora.
Abordado como uma questão de descobrir alguma coisa que preencha o nosso
apetite de glutões por energia altamente concentrada, o problema do pico
petrolífero é exactamente tão insolúvel quanto a
armadilha do macaco quando abordada como uma questão de obter alimento.
A descoberta e exploração das reservas de petróleo da
terra proporcionou aos seres humanos uma fantástica herança
inesperada de energia quase gratuita, e nós disparámos a
queimá-la a um ritmo espantoso. Agora que a oferta de petróleo
começa a escassear, a questão perante nós não
é como continuar a queimar alguma outra coisa ao mesmo ritmo, ou como
descobrir algum outro para movimentar uma civilização de uma
espécie que só pode sobreviver pela queima de quantidades
extravagantes de energia, mas sim como desescalar nossas expectativas e a nossa
tecnologia de forma suficientemente drástica para faze-la ajustar-se
às muito mais modestas ofertas de energia que nos são
disponíveis a partir de fontes renováveis.
Esperar que algum outro recurso energético proporcione energia na mesma
escala e nível de concentração do petróleo,
só porque queremos assim, é um pouco como responder a um enorme
prémio da lotaria com a suposição de que quando aquele
dinheiro começar a acabar um outro prémio igualmente grande pode
ser obtido só pelo custo de mais uns poucos bilhetes. Isto está
bastante próximo da psicologia do consumidor de hoje, de que é
fácil imaginar alguém nesta posição a despejar todo
o dinheiro que lhe resta em bilhete da lotaria, e a jogar fora suas
possibilidades de evitar a bancarrota porque a única
solução que ele pode imaginar é ganhar outra vez a
lotaria. E isto, mais uma vez, é exactamente a mentalidade das actuais
tentativas de abastecer a sociedade industrial despejando a nossa oferta
alimentar em reservatórios de gasolina.
Fausto pode também ser um melhor modelo do que o macaco porque a
situação difícil que enfrentamos, como a sua, é
precisamente o resultado de sermos os melhores. Fausto tornou-se tão
dependente do seus diabos serventes que perdeu o rastro da possibilidade de
poder fazer algo sem eles. Substitua diabos por máquinas e o paralelo
é exacto. Tornámo-nos tão habituados a resolver problemas
lançando-lhes tecnologias intensivas em energia que quando a
próprias tecnologias se tornarem o centro de uma situação
difícil não temos qualquer ideia do que fazer. Se qualquer das
façanhas das últimas três centenas de anos tiver de ser
salva da
espiral de crises que se aproxima, precisamos repensar isto agora, antes que
as tensões sociais, económicas e políticas se tornem
tão prementes que o pensamento claro se torne impossível e os
nossos espíritos familiares movidos a fósseis apareçam, na
data marcada, para arrastar-nos rumo a um equivalente
razoavelmente próximo do Inferno na peça de Marlowe.
27/Março/2007
O original encontra-se em
http://thearchdruidreport.blogspot.com/search?q=Fausto
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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