O anteprojeto de reforma do IRS do PSD/CDS
– não respeita a Constituição da República
– agrava as desigualdades e a injustiça fiscal
– não reduz a carga fiscal global

por Eugénio Rosa [*]

Nos media têm-se multiplicado os elogios, quer de jornalistas quer de comentadores com acesso fácil aos media, ao "Anteprojeto da reforma do IRS" ("muito bom" afirma Miguel Reis da sociedade de advogados PLMJ à Lusa, Bagão Félix na SIC Noticias e Manuela Ferreira Leite na TVI repetem o mesmo, só é pena, dizem os mesmos, que o governo não o possa aplicar devido à necessidade de continuar a consolidação orçamental), anteprojeto esse apresentado por uma comissão que, tal como sucedeu com a do IRC, é constituída apenas por "técnicos" da confiança do governo. Interessa por isso analisar com objetividade o essencial deste extenso estudo constituído por 156 páginas.

O QUE ESTABELECE A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA SOBRE O IRS

Para contextualizar a análise e compreender os objetivos e significado do "Anteprojeto" é importante recordar o que dispõe a Constituição da República sobre o IRS, pois os autores do "Anteprojeto" parecem que desconheciam ou então ignoraram deliberadamente.

O nº1 do artº 104 da Constituição da República dispõe textualmente o seguinte: "O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo , tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar ". Portanto, o IRS, que é o imposto pessoal, para respeitar a Constituição terá, pelo menos, de satisfazer três condições: (a) Reduzir as desigualdades; (b) Ser único; (c) Ser progressivo. Analisemos então à luz destes três princípios constitucionais o Anteprojeto apresentado pela comissão.

A DESTRUIÇÃO DA UNICIDADE E DA PROGRESSIVIDADE DO IRS E O AUMENTO DA INJUSTIÇA FISCAL

Como a própria comissão refere na pág. 10 do "Anteprojeto" nele "foi aceite e reforçada a já existente semi-dualização: tributação diferenciada por categorias de rendimento". O reforço da dualização do IRS, como defende a comissão, significa na prática que o IRS foi dividido em dois subgrupos: um englobando os rendimentos do trabalho e as pensões; e o outro englobando os rendimentos do capital (juros, lucros, mais-valias, rendimentos prediais; etc.). Ao primeiro subconjunto, ou seja, aos rendimentos do trabalho e às pensões aplicam-se taxas de IRS progressivas (quanto mais elevado é o rendimento maior é a taxa, embora tenham sofrido uma forte regressividade com a reforma do IRS feita pelo governo PSD/CDS) que variam entre 14,5% e 48%, enquanto ao segundo subgrupo que engloba todos os rendimentos do capital (juros, lucros, rendas de prédios, mais-valias) as taxas aplicadas são proporcionais, isto é, são sempre iguais seja qual for o montante dos rendimentos, sendo muito inferiores às taxas máximas aplicadas aos rendimentos do trabalho e às pensões. As que incidem sobre os rendimentos de capital são 25% e 28% (artº 71 e 72º do Anteprojeto ). Só às entidades domiciliadas em paraísos fiscais é que é aplicada a taxa de 35% (nº12 do artº 72). Por outras palavras, os trabalhadores e pensionistas são penalizados com taxas de IRS que podem atingir 48%, enquanto aos rendimentos de capital aplica-se a taxa de 25% ou 28%. Esta dualização do IRS em dois subconjuntos com tributação diferenciada como afirma a própria comissão significará, se for para a frente, a destruição do IRS (a machadada final no IRS) como imposto único e progressivo , ou seja, como estabelece a Constituição, e agravará a injustiça fiscal pois para ser um imposto progressivo, portanto mais justo, teria de se aplicar taxas mais elevadas aos rendimentos mais elevados, e não uma taxa fixa de 25% ou 28% a todos os rendimentos do capital, seja qual for o seu montante.

A COMISSÃO DO IRS PRETENDE TAMBÉM ACABAR COM A REGRESSIVIDADE NAS DEDUÇÕES

Observe-se o quadro 1 com as deduções máximas atualmente em vigor e as do Anteprojeto.

Quadro 1- Deduções ao IRS (coleta) atualmente em vigor e as do Anteprojeto (inclui deduções por sujeito passivo, por dependente, despesas de saúde, educação, habitação, etc.)
Escalão de rendimento coletável
Atualmente em vigor: Dedução máxima majorada em 10% por cada dependente
Proposta da Comissão Constante do Anteprojecto
Deduções máximas por agregado familiar (dois adultos e uma criança)
Por cada sujeito passivo
Por cada dependente
Atualmente em vigor (que depende da apresentação de documentos de despesa)
Anteprojecto da Comissão (fixa por pessoa)
Até 7000€ Sem limite 272,32€ 265,37€ Sem limite 810,01€
De mais de 7000€ até 20 000€ 1 250€ 272,32€ 265,37€ 1 375,00€ 810,01€
De mais de 20 000€ até 40 000€ 1 000€ 272,32€ 265,37€ 1 100,00€ 810,01€
De mais de 40 000€ até 80 000€ 500€ 272,32€ 265,37€ 550,00€ 810,01€
Superior a 80 000€ 0€ 272,32€ 265,37€ 0,00€ 810,01€

Embora a comissão do IRS tenha apresentado três valores de dedução (330,95€, 301,63€ e 272,32 para o sujeito passivo, e 321,95€, 293,56€ e 263,37€ por dependente - artº 78 do Anteprojeto) consideramos o valor mais baixo porque a própria comissão defende que, " por razões orçamentais", a introdução do coeficiente familiar, " seja compensado com uma diminuição do montante das deduções pessoalizantes" (pág. 62 do Anteprojeto).

Como consta do quadro 1, a comissão defende que se substitua a atual dedução regressiva (quanto maior é o rendimento, menor é a dedução, variando entre "sem limite" e ZERO de dedução para rendimentos coletáveis superiores a 80.000€/ano) , por uma dedução no IRS fixa e igual para todos os agregados (dedução no IRS de 272,23€ por sujeito passivo e 265,37€ por dependente tenha-se um rendimento coletável inferior a 7.000€ ou superior a 80.000 € por ano) . Embora tal proposta possa representar um benefício para aqueles que até aqui não podiam deduzir nada devido aos seus elevados rendimentos, ou que deduziam um valor muito baixo ou mesmo nulo por não apresentarem documentos de despesa (de saúde, educação, de habitação, etc.) , no entanto vai determinar para a maioria dos contribuintes uma diminuição na dedução, o que significa um aumento do IRS a pagar, contribuindo assim para reduzir ainda mais a progressividade deste imposto e aumentando, por essa razão, a injustiça fiscal existente. É uma igualdade ilusória que só poderá agravar as desigualdades existentes porque tem como base rendimentos familiares muito desiguais. Para se ter uma ideia dos efeitos da proposta da comissão de IRS interessa referir o seguinte. Em 2012, e são os últimos dados divulgados pelo governo, 3,5 milhões de agregados familiares apresentaram despesas de saúde o que resultou uma redução média de 58€ no IRS pago por cada um deles; em relação às despesas de habitação, 1,099 milhões de agregados apresentaram documentos de despesa dando origem a uma redução de IRS média por agregado de 209€; e 839.304 agregados apresentaram documentos de despesa com educação dando origem a uma redução média de IRS de 276€ por agregado. Se somarmos estas deduções no IRS às resultantes por "sujeitos passivos" (em média 333€ por agregado de que beneficiaram 4.598.114 agregados) e às de "dependente" (em média 264€ por agregado que beneficiou 1.249.000 agregados) obtém-se 1.193€. A comissão de IRS defende que os 2.571 milhões € de deduções no IRS sejam repartidos igualmente por todos os agregados incluindo aqueles, que devido aos elevados rendimentos que auferem, não podiam descontar nada por despesas de saúde, educação, habitação, etc., o que fará aumentar o IRS a pagar para muitos, agravando a injustiça fiscal. Sob uma aparente igualdade esconde-se um profundo tratamento desigual pois os agregados têm rendimentos muito desiguais.

A LEGALIZAÇÃO DO PLANEAMENTO FISCAL ABUSIVO PARA OS RENDIMENTOS DE CAPITAL

E como se tudo isto já não fosse suficiente, a comissão do IRS defende no seu Anteprojeto a legalização do planeamento fiscal abusivo por parte dos detentores de rendimentos de capital. E como faz isso? Dando a estes (e só a estes), conforme consta do artº 22º do Anteprojeto a possibilidade ou de englobarem todos os seus rendimentos, e assim ficarem sujeitos à tabela geral de IRS cujas taxas variam entre 14,5% e 48%, ou de optarem por uma tributação separada por categorias, e nesta situação a taxa de imposto que lhe é aplicável é 25% (taxa especial) ou 28% (taxa liberatória). O que acontecerá naturalmente é que o detentor de rendimentos de capital escolherá a opção que lhe é mais favorável, ou seja, que determine o pagamento de um imposto mais reduzido. Assim se o englobamento determinar a aplicação de uma taxa média de IRS superior a 28% ele naturalmente não englobará e optará pela tributação separada dos seus rendimentos pagando apenas 28%, pois se englobasse poderia determinar uma taxa média de IRS de 36,5% ou mesmo 48% para uma parcela dos seus rendimentos. E inversamente, se o englobamento determinar uma taxa inferior a 28% (por ex. 24,5% ou 23,6%) ele então optará pelo englobamento do rendimento. Embora esta opção já existisse na lei atual, no entanto a comissão do IRS reforça-a ainda mais para tornar o planeamento fiscal por parte dos detentores de rendimentos de capital mais fácil e eficaz. Atualmente, se o contribuinte fizesse o englobamento de um rendimento, teria de fazer de todos os rendimentos. A comissão propõe a alteração de tal norma (nº 5 do artº 22º do Anteprojeto) , de forma que o contribuinte detentor de rendimentos de capital possa optar pelo englobamento de um rendimento de capital ficando só obrigado a fazer o englobamento dos rendimentos da mesma categoria (ex. prediais), não sendo obrigado a fazer o englobamento de rendimentos de outras categorias (ex. lucros), o que possibilitará aos detentores de rendimentos de capital optar em fazer o englobamento em relação a certos rendimentos, e não fazer relativamente a outros, para pagar taxas de imposto mais baixas, o que não é permitido em relação aos rendimentos de trabalho e a pensões. E todo este planeamento fiscal abusivo extenso passaria a ser "legal" se a proposta da comissão de IRS do governo for para a frente.

O COEFICIENTE FAMILIAR E A ANULAÇÃO DOS EFEITOS POSITIVOS PELA COMISSÃO DO IRS

A comissão propõe a substituição do coeficiente conjugal que vigora atualmente por um coeficiente familiar que, se fosse corretamente aplicado, teria efeitos positivos para os agregados com filhos, que são anulados depois por outra medida. Mas antes expliquemos o que é o coeficiente conjugal atualmente em vigor para tornar mais claro o que vamos dizer.

Suponha-se uma família (2 adultos e 1 filho) com um rendimento de 2000€ por mês, sendo o seu rendimento anual ilíquido (bruto) de 28.000€. Se estes rendimentos tiverem como origem o trabalho, e se os dois trabalharem, eles têm direito, cada um deles, a uma dedução específica de 4.104€ (72% de 12 vezes o salário mínimo nacional), o que para os dois dá 8.208€. Subtraindo este valor ao rendimento anual bruto obtém-se a matéria coletável que é neste caso 19.792€ (28.000€ – 8.208€). E é à matéria coletável que se aplica a taxa de IRS para calcular o imposto (a coleta). No entanto, para selecionar a taxa a aplicar tem-se antes de dividir os 19.792€ pelo chamado coeficiente conjugal, que é 2, pois os sujeitos passivos de IRS são dois. Fazendo a divisão obtém-se 9.896€. E só agora é que se vai à tabela de IRS escolher a taxa que se aplica. Neste caso é do escalão entre os 7.000€ e os 20.000€ cuja taxa média atual é 23,6% e a do escalão é 28%. Fazendo os cálculos necessários obtém-se 1.840,36€. Mas este é o IRS por cada sujeito passivo, para obter o valor do IRS para o agregado familiar tem-se agora de multiplicar por 2 (operação inversa à feita anterior), obtendo-se 3680,72€. E é sobre este valor que depois são feitas as deduções à coleta constantes do quadro 1.

A comissão defende a substituição do coeficiente conjugal por um coeficiente familiar em que se considera também os filhos, correspondendo a cada filho o valor de 0,3 (na condição de recurso para a concessão do RSI cada filho vale 0,5% e para a concessão de bolsas de estudo cada filho é equivalente a 1). Como a família do nosso exemplo tem um filho, o coeficiente familiar seria 2,3 (cada adulto equivale a 1, o que dá 2, mais 0,3 do filho). Dividindo a matéria coletável obtida anteriormente – 19.792€ – por este coeficiente familiar obtém-se 8.605,2€. Fazendo cálculos semelhantes obtém-se 1.472,4€, que depois terá de ser multiplicado por 2,3 (a operação inversa da aplicação do coeficiente familiar) obtendo-se a coleta de 3.386,7€, que significa menos 294€ que o valor de imposto que se obtém pela aplicação do coeficiente conjugal que era 3.680,72€. A proposta da comissão introduz limites na descida do IRS causada pela aplicação do coeficiente familiar conforme consta do nº4 do artº 22º, pois a diminuição de IRS não pode ser superior a 1.500€ por agregado familiar Como a diferença é menor este limite não se aplica. E é sobre este valor que depois se fariam as deduções à coleta. No entanto, a comissão defende que a aplicação do coeficiente familiar não deve causar uma baixa de receita para o Estado. E como se fará isso? Reduzindo as atuais deduções à coleta como mostramos anteriormente (ver quadro 1). E desta forma anula os efeitos positivos que poderia ter a introdução do coeficiente familiar pois serão os contribuintes que não têm filhos (pensionistas e outros) a suportarem, através do aumento do IRS que pagam, a eventual redução dos agregados com filhos. O quadro 2 com 3 exemplos concretos mostra as consequências das propostas da comissão do IRS provando que ela agrava as desigualdades.

Quadro 2- IRS a pagar pelos agregados familiares no regime atual e no proposto pela comissão (Um agregado com um dependente e não inclui a sobretaxa extraordinária de IRS de 3,5% que não altera a diferença no IRS)
Remunerações mensais dos membros do agregado familiar
Remuneração média do agregado (ganho médio líquido)
Dedução específica
Matéria coletável
COLETA (Imposto)
DEDUÇÕES À COLETA
IRS a pagar pelo agregado familiar
Diferença IRS
Mensal
Anual
Anual
Anual
Regime atual
Proposta comissão
Atual em vigor
Proposta comissão
Regime actual
Proposta Comissão
Homem: 900€: Mulher: 600€ 1.500 21.000 8.208 12.792 1.855 1.855 1.109 810 746 1.045 299
Homem: 1250€; Mulher: 950€ 2.200 30.800 8.208 22.592 4.479 4.185 1.375 810 3.104 3.375 271
Homem e Mulher: 1600€ cada 3.200 44.800 8.208 36.592 8.469 8.175 1.375 810 7.094 7.365 271
Homem e Mulher: 5000€ cada 10.000 140.000 8.208 131.792 46.546 45.782 550 810 46.996 44.972 -2.024

Como mostra o quadro 2, a aplicação da proposta da comissão determina que os rendimentos familiares mais baixos sofram um aumento de IRS (no nosso ex., 1500€, 2200€ 3200€ por mês têm um aumento de IRS de 299€ e 271€) , e os rendimentos familiares elevados têm uma redução no IRS (no nosso exemplo rendimentos familiares de 10.000€ /mês têm uma redução de 2.024€ no IRS) . Apesar do "Anteprojeto" conter outros pontos que merecem reflexão (ex.: aumenta a dificuldade na utilização dos sinais exteriores de riqueza no combate à evasão e fraude fiscal) isso vai ficar para outro estudo devido já à extensão deste.

27/Julho/2014
[*] edr2@netcabo.pt

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
30/Jul/14