Cuba: os próximos 45 anos?
por István Mészáros
Dia 1º de Janeiro Cuba celebrou o quadragésimo
quinto aniversário de sua vitoriosa revolução: uma grande
conquista histórica. E quando nos lembramos de que a
revolução cubana a ação duradoura de uma
nação de apenas onze milhões de pessoas sobreviveu
ao longo de quarenta e cinco anos contra todos os riscos, confrontando a
inimizade declarada, o cerco e bloqueio internacionais determinados pelos
Estados Unidos, assim como as tentativas de subverter e derrubar a ordem
pós-revolucionária pela mais preponderante potência
econômica e militar, até mesmo esse simples acontecimento
põe em relevo a magnitude e a significância da atual
intervenção cubana no processo histórico de nosso tempo.
Somos todos contemporâneos de uma vitória cujas
reverberações chegam bem além dos limites do
tendenciosamente propagandeado Hemisfério Americano,
oferecendo sua mensagem de esperança também para o resto do mundo.
Em 1999, três anos antes de o governo americano ter ominosamente
decretado que Cuba fazia parte do eixo do mal, visando eliminar o
círculo vicioso
[1]
numa fase inicial do agressivamente promovido novo século
americano, escrevi no prefácio de
Socialismo ou Barbárie
:
Chegou ao fim o século XX, descrito pelos apologistas mais entusiasmados
como o século americano. Essas opiniões se manifestam
como se não houvesse ocorrido a Revolução de Outubro de
1917, nem as revoluções Chinesa e Cubana, nem as lutas pela
libertação colonial das décadas seguintes, isso sem
mencionar a humilhante derrota dos Estados Unidos no Vietnã. De fato, os
defensores acríticos da ordem estabelecida antecipam confidencialmente
que não apenas o século XXI, mas todo o próximo
milênio, está destinado a se conformar às regras
incontestáveis da Pax Americana.
[2]
Evidentemente, todos os que se engajam na tentativa fútil de reescrever
a história se recusam a reconhecer até o mais óbvio: ou
seja, que os grandes eventos históricos, como os que acabei de
mencionar, não podem ser desfeitos para se ajustar às
contingências políticas do momento. Esses eventos resultam de
contradições sociais absolutamente fundamentais, e não
perdem a relevância histórica e ardente realidade enquanto
determinações arraigadas não forem atendidas de forma
positiva e duradoura por um estágio mais avançado de
desenvolvimento. Nem quando pensamos no tipo de reversão
capitulacionista que vimos na antiga União Soviética.
Teremos coragem de pensar nos próximos quarenta e cinco anos? A resposta
é simplesmente que isso é necessário. Pois as
mudanças históricas da magnitude da que consideramos aqui, embora
tenham impacto dramático imediato, só realizam todo o seu
potencial numa perspectiva mais longa. Tanto mais porque o adversário
histórico entrincheirado sempre ajusta suas próprias
estratégias restringidas apenas pelos limites últimos de
suas determinações sistêmicas para anular todo
movimento do adversário progressista. É assim quando os ajustes
signifiquem algumas concessões reformistas temporárias, ou
quando, pelo contrário, signifiquem a adoção
implacável das ações mais destrutivas. E por isso a
noção de Kruschev de uma competição
pacífica com a produção capitalista, como o juiz
mutuamente aceito de objetivos rivais, foi tão ingênua, para
não dizer coisa mais grave, quando a verdadeira aposta histórica
era nada menos que a instituição de uma alternativa radical
hegemônica à ordem social do capital. O antagonista capitalista
firmemente estabelecido nunca teve a espécie de ilusão que cobra
o pagamento de alto preço.
Nesse contexto não devemos nos esquecer de que se existe uma
interrogação acerca dos próximos quarenta e cinco anos de
Cuba, a mesma interrogação paira sobre o futuro de toda a
humanidade. Pois na atual fase do desenvolvimento histórico do capital,
em resultado do aprofundamento da crise estrutural do sistema, não
somente as concessões reformistas do passado terão de ser
retomadas como já estão sendo até mesmo nos
países capitalistas mais avançados, mas, dada a
insuficiência crônica dos remédios produtivamente
disponíveis, surge claramente no horizonte a
mortal irracionalidade
da adoção do curso de ação mais destrutivo em
escala global, tentando se impor como
solução racional
de todos os nossos problemas.
Cuba está ao lado dos Estados Unidos e pode ser atingida militarmente
com a maior facilidade. Mas, é claro, a mesma facilidade de ataque
está em preparação ativa tanto para fins de
chantagem, inclusive a nuclear, quanto para disparar uma ação
militar devastadora para atingir os cantos mais remotos do mundo. O
projeto Guerra nas Estrelas de ontem ainda podia ser apresentado
como um escudo defensivo, mesmo que na verdade não fosse nada dessa
espécie. Mas o sucessor altamente aperfeiçoado, cujo nome de
código é Falcão (sigla em inglês para
Aplicação e Lançamento de Força a partir dos
Estados Unidos Continentais) não pode ser considerado outra coisa que
não um sistema de armamentos escandalosamente ofensivo, a ser
lançado contra o mundo inteiro. A primeira fase operacional desse
sistema estará completa em meados de 2006, e os testes iniciais
começarão em 2004. Completamente desenvolvidos, os
veículos não tripulados serão capazes de atingir
alvos a 9.000 milhas marítimas (16679,25 km) de distância em não
mais que
duas horas. Além disso, levarão uma carga de até
12.000 libras (5436 kg) e voarão a velocidades de até 10 vezes a
velocidade
do som. O objetivo dessa máquina de guerra infernal é
permitir que os Estados Unidos ataquem sozinhos qualquer país que
queiram dominar ou destruir, no seu projeto de conquistar a
dominação do mundo como indiscutível e inatacável
governante do imperialismo hegemônico global. Como comentou John Pike,
chefe do
think tank
globalsecurity.org, sobre o novo sistema de armas:
Trata-se de explodir povos do outro lado do mundo, mesmo que nenhum país
do mundo nos permita usar seu território
.
[3]
2
O fracasso da persistente política do governo americano contra Cuba
é amplamente reconhecido. Mesmo um antigo ministro do governo
conservador de Margatet Thatcher tem grandes reservas acerca dessa postura
anticubana dos americanos e de sua adoção pelos governos da
Europa, como deixou claro num artigo recente:
É extremamente ingênuo quem pensa que na era pós-Castro
Cuba vá se tornar efetivamente o 51º
estado dos Estados Unidos. Ainda assim, é exatamente nisso que muitos
na administração americana, e até desse lado do
Atlântico, parecem acreditar. Na verdade, é mais provável
que ocorra exatamente o contrário. ... É preciso evitar o perigo
de tomar emprestado o instrumento cego que é a marreta política
dos Estados Unidos [e de ver Cuba] através dos binóculos
desfocados dos desejos americanos.
[4]
Desnecessário dizer, visões críticas, ainda quando
não possam ser acusadas de tendenciosamente esquerdistas,
não fazem qualquer diferença para os reacionários
formuladores de política da administração dos Estados
Unidos. Um de seus subsecretários de estado, John Bolton, acusou Cuba de
ser o fornecedor de armas biológicas para os inimigos dos Estados
Unidos, tomando por base o fato de os cubanos terem uma
indústria farmacêutica avançada. Foi uma das primeiras
tentativas de caracterizar Cuba como alvo moralmente
justificável para um ataque militar dos Estados Unidos. Eu mesmo
comentei sarcasticamente à época (junho de 2002), num programa de
entrevistas da TV brasileira, Roda Viva, que esses homens
não têm moral nem qualquer respeito pela verdade. Não causa
surpresa que tentativas dessa espécie de acusar Cuba de crimes
anti-americanos fictícios sejam constantemente renovadas. Fidel
Castro relatou no seu discurso de Primeiro de Maio um caso muito recente e
ameaçador:
A política do governo dos Estados Unidos é de tão
escandalosamente provocadora que no dia 25 de abril o sr Kevin Whitaker, chefe
do Birô Cubano do Departamento de Estado, informou ao chefe da
Seção que cuida dos nossos interesses em Washington que o
Departamento de Segurança Interna do Conselho de Segurança
Nacional considerava os constantes seqüestros a partir de Cuba uma
ameaça grave à segurança nacional dos Estados Unidos, e
exigiu que o governo cubano adote todas as medidas necessárias para
evitar essas ações. Disse isso como se não fossem eles
quem provocava e incentivava esses seqüestros, como se não
fôssemos nós que adotávamos medidas drásticas para
evitá-los.
A controvérsia internacional acerca da condenação dos
seqüestradores teve muito a ver com o desprezo pela ameaça militar
direta a que o país estava e ainda está submetido
por esse motivo.
A continuação cínica de atos de provocação e
a hipócrita justificação mentirosa nos meios de
comunicação de massa permanecem como as características
definidoras da política americana com que Cuba está condenada a
conviver no futuro previsível, ainda que não pelos
próximos quarenta e cinco anos. Certamente não pelos
próximos quarenta e cinco anos! Pois é inconcebível que a
fase atual, extremamente agressiva do imperialismo hegemônico global
que agora tenta absurdamente compensar o perdularismo
incurável de seu sistema de
produção destrutiva
por meio dos gastos astronômicos em armamentos e aventuras militares
associadas, financiados pelo buraco negro do endividamento americano
seja capaz de durar tanto tempo, exterminando toda a humanidade se não
for interrompido bem antes de decorrido esse tempo.
Por muito tempo, Cuba foi forçada a viver em estado de emergência.
As grandes privações que tiveram de ser vencidas sob tais
circunstâncias não se limitam às conseqüências
do bloqueio americano. Depois do desmoronamento do sistema soviético a
situação se agravou ainda mais, não somente através
do endurecimento do bloqueio americano, na vã esperança de
precipitar um colapso imediato, mas também devido à perda pelo
país de seus principais mercados e fontes de suprimentos. Por isso, a
absorção de calorias e proteínas pela
população caiu praticamente à metade, e os anos dolorosos
do período especial foram necessários para restaurar
os requisitos nutricionais da população ao nível anterior.
Desnecessário dizer, as condições do estado de
emergência são desfavoráveis à conquista de muitos
objetivos desejáveis, tanto no plano político-cultural, quanto no
econômico. Mas não se pode simplesmente esperar que elas deixem de
existir, nem elas devem ser prolongadas além do historicamente
justificável, uma vez que as condições se alterem para
melhor.
Nesse ponto vemos um grande contraste com a experiência soviética.
Como sabemos, durante alguns anos depois da Revolução de Outubro
o país teve de enfrentar a extrema privação de um
autêntico estado de emergência. Mais tarde, entretanto, Stalin
prolongou artificialmente durante décadas o estado de emergência
antes plenamente justificável, pois essa continuação lhe
ofereceu uma opção mais fácil para implementar suas
políticas autoritárias. Mas seguir assim a linha de
resistência mínima já que, na visão de
Stalin, todo questionamento das políticas decretadas poderia ser
facilmente esmagado resultou na instituição dos campos de
trabalho forçado, com terríveis conseqüências para a
produtividade do trabalho, trazendo consigo a violação brutal da
legalidade que em 1956 Kruschev condenou com toda razão. Ademais, quando
foi forçado em 1952 a admitir que a produtividade do trabalho
soviético era seriamente problemática, Stalin tentou resolver a
situação pela estipulação de mais uma
solução autoritária, propondo a imposição
pela administração da disciplina do trabalho. Em seu
último texto importante sobre os Problemas Econômicos
do Socialismo na URSS ele decretou a validade eterna da lei
do valor, a permanência da divisão
não-essencial entre o trabalho físico e o mental, e a
separação justificável da sociedade entre o pessoal
executivo socialista (nossos executivos empresariais) bem
remunerado, e a força de trabalho físico firmemente
controlada não apenas politicamente, mas também por
práticas institucionais racionais sucedâneas do
mercado. Insistiu na necessidade de produção e
circulação adequada de mercadorias, a ser regulada com base
na contabilidade de custos e na lucratividade, deixando para o
futuro um perigoso legado e também conferindo legitimidade
socialista ao autoritarismo tradicional do mercado
disciplinador cujas fatídicas conseqüências todos
conhecemos bem.
[5]
Evidentemente, não existe nada de artificial no dolorosamente longo
estado de emergência de Cuba diante das ameaças militares
constantemente renovadas e intensificadas de seu adversário
preponderante. No entanto, ninguém poderá negar que todo o
potencial da revolução cubana só será fruído
num futuro em que, em resultado de uma mudança fundamental das
circunstâncias e da relação global de forças,
será possível dizer que a obrigação quase
proibitiva de enfrentar as forças destrutivas do capital pertence
irremediavelmente ao passado.
3
A vitoriosa revolução cubana é única e tem
significância universal. É única no sentido de ter
resultado de duzentos anos de luta ressurgente, inicialmente contra o
colonialismo espanhol, e mais tarde contra a dominação
imperialista pelos Estados Unidos. A grande figura histórica de
José Marti que mais de cem anos depois de sua morte continua
sendo uma tremenda inspiração para o presente com sua
visão de longo alcance ligou diretamente as duas fases, antecipando
claramente, muito antes da conclusão da luta contra a Espanha, que Cuba
só conquistaria sua emancipação quando conseguisse
derrotar a nova dominação americana.
Mas a revolução cubana também é única no
sentido de que a derrubada do regime servil de Batista foi precedido por
três anos de luta armada, sustentada por um número sempre
crescente da população do país. A isso se acrescenta o
fato de que à época da tomada do poder o governo americano ainda
acalentava a ilusão de que seria capaz de dominar o país a seu
bel prazer também sob as novas circunstâncias, ainda que de forma
ligeiramente alterada. Ademais, dado o esmagador apoio popular à
derrubada do regime cliente dos Estados Unidos, ele foi forçado a
produzir ruídos favoráveis à mudança.
Quando fracassaram as tentativas de voltar a impor a antiga
dominação por outros meios, ele imediatamente adotou uma atitude
abertamente hostil. É por isso que se vê claramente que o
adversário histórico ajusta inevitavelmente suas
estratégias quando é forçado a enfrentar um desfio
significativo, o que ele faz para reverter a situação, ou pelo
menos para evitar novas ocorrências daquilo que o
surpreendeu, ou melhor, a que foi submetido. Dessa forma, as
políticas americanas não somente para Cuba, mas para toda a
América Latina (e não somente para ela) sob a forma de
derrubada violenta de regimes democraticamente eleitos (cinicamente em nome da
democracia e liberdade) e imposição de ditaduras
brutais acentua fortemente esse ponto. A revolução cubana
é assim única também sob o aspecto de que na sua esteira
até mesmo os primeiros sinais de qualquer luta armada anti-imperialista
em potencial tiveram de ser esmagados pela intervenção direta ou
indireta dos Estados Unidos, como o demonstra também o destino
trágico de Che Guevara.
Entretanto, se a unicidade da revolução cubana se afirma dessa
forma por várias razões importantes, inclusive a
constituição histórica de sua liderança, de
José Marti até o presente ela não pode ser imitada
ou repetida, muito menos transformada no modelo compulsório de
transformação revolucionária, assim como não se
pode dar toda a ênfase necessária à sua significância
universal. A tentativas passadas de imposição do modelo
soviético, sob Stalin e seus sucessores, causaram prejuízo imenso
ao movimento socialista em toda parte. Não se pode permitir que isso se
repita no futuro, por maiores que sejam as tentações.
Ninguém o afirma com mais clareza que o próprio Fidel Castro.
Falando de nossos problemas, ele diz:
Surgem movimentos de massa que se formam com tremenda força, e eu creio
que esses movimentos desempenharão papel fundamental nas lutas futuras.
Serão outras táticas, já não será a
tática no estilo bolchevique, nem mesmo ao nosso estilo, porque
pertenceram a um mundo diferente. Nesse de agora devem surgir novas
táticas, sem que isso signifique desânimo para ninguém, em
lugar algum, e fazê-lo da forma que se considere conveniente. Mas
tratemos de ver e analisar com a maior objetividade possível o quadro
atual e o desenvolvimento da luta sob o domínio unipolar de uma
superpotência: Estados Unidos. Serão outros caminhos e outras vias
pelos quais irão se criando as condições para que esse
mundo global se transforme em outro mundo.
[5]
Os apologistas do capital geralmente tentam racionalizar e explicam para
longe suas próprias contradições e problemas como se
fossem o resultado de terem sido exportadas de um território
estrangeiro por uma força subversiva, e conspiratoriamente
impostas a eles. Como claramente indicam as linhas citadas acima, nada poderia
estar mais longe de uma estratégia genuína de
transformação socialista. Pois uma estratégia bem
fundamentada deve sempre advogar o acionamento das verdadeiras alavancas
transformadoras pelos movimentos sociais existentes sob as
condições sociais predominantes e alterar dinamicamente as
circunstâncias históricas.
O significado universal da revolução cubana reside na sua grande
afinidade com as aspirações de todos aqueles que pretendem se
libertar das restrições paralisantes da ordem social do capital.
Embora, num sentido geral, essa aspiração se aplique a todos que
participam da causa da emancipação humana, é
compreensível que os ecos gerados pela revolução cubana
tenham sido os maiores na América Latina. Pois os países daquele
continente foram, e ainda são, todos dominados pela mesma potência
imperialista, e seus esforços para remediar sua situação
foram constantemente frustrados e afinal anulados, tanto por razões
internas quanto externas, pelo mesmo sistema social sob o qual eles tiveram que
reproduzir suas condições de existência. A mensagem da
revolução cubana para eles é portanto dupla.
Primeiro, ela focaliza a questão da recuperação de sua
soberania dos Estados Unidos, e do seu poder de decisão, libertando-se
assim da dominação militar, política e econômica de
seu vizinho avassalador.
E, segundo, ao mesmo tempo as questões fundamentais do sistema
reprodutivo socioeconômico em seu conjunto teriam de ser submetidas a uma
crítica radical, tanto por causa da insuportável
dominação da ordem capitalista pelos Estados Unidos, quanto, o
que é mais importante, por causa do anacronismo histórico e
perdularismo das determinações metabólicas do capital em
geral no atual estágio da história. Noutras palavras, todos os
países da América Latina (e não somente eles) tiveram de
lutar para sair de seu próprio
círculo vicioso
de tentar resolver seus imensos problemas na cinicamente inflada margem
mínima da ajuda econômica americana, quando na
realidade é a economia dos Estados Unidos quem permanece
maciçamente dependente dos recursos que deve transferir do resto do
mundo, de muitas formas diferentes, para sua própria esfera de
produção e consumo. E a desanimadora verdade é que o
verdadeiro círculo vicioso deve ser operado não como uma
questão de política iníqua, mas de uma política que
se pode corrigir por uma visão esclarecida, como advoga a
teoria do desenvolvimento modernizador, mas, pelo contrário
como a imposição fundamentalmente inalterável de um
sistema historicamente anacrônico e estruturalmente restrito
para o qual não existe alternativa (como os
políticos do sistema não se cansam de repetir), com os Estados
Unidos no seu ponto alto.
Desde o início, a mensagem da revolução cubana focalizava
esses dois conjuntos de problemas que afetam profundamente
todos
os países da América Latina. Assim, não importando quando
ou com que sucesso os países interessados possam agir no interesse da
realização dos objetivos profundamente interligados que têm
diante de si, a mensagem dupla da revolução cubana
convocando não apenas para a luta anti-imperialista, mas também
para uma mudança
estrutural e sistêmica
da sociedade como a condição última do sucesso daquela
luta está destinada a ressoar com crescente intensidade,
até nas circunstâncias mais difíceis, por todo o continente.
4
Quanto ao tempo que nos resta, não pode haver dúvida de que os
desafios e perigos continuarão enormes, apesar de todas as conquistas. A
ameaça militar dos Estados Unidos contra Cuba foi intensificada nos
últimos anos, paralelamente à crescente agressividade da
política americana em todo o mundo. De fato, como já mencionamos
antes, Cuba foi apontada como um dos estados que constituem o eixo do
mal, com todas as sinistras implicações de tal
caracterização. Mas os formuladores da política americana
devem também se lembrar de seu humilhante fiasco na Baía
dos Porcos. Devem entender que a afirmação de Fidel Castro
no discurso do dia primeiro de maio de 2003 não é uma
ameaça vazia, quando ele insiste que caso Cuba seja atacada, como o foi
o Iraque,
os agressores não estariam apenas enfrentando um exército, mas
milhares de exércitos que constantemente se reproduziriam e fariam o
inimigo pagar preço tão alto em baixas que excederia em muito o
custo em vidas de seus filhos e filhas que o povo americano estaria disposto a
pagar pelas aventuras e idéias do Presidente Bush.
Na verdade, o projeto americano de dominação imperialista global
não tem futuro melhor que as variedades anteriores do imperialismo
que no final sempre fracassaram. Mais cedo ou mais tarde, a
sobre-extensão dos agressores os levará à derrota, mesmo
que na estrada que leva ao fracasso final eles possam destruir as
condições de existência humana neste planeta. E nesse
sentido literalmente vital, superar a ameaça militar a que Cuba
está submetida é a causa comum de toda a humanidade.
Naturalmente, os perigos não estão confinados ao plano militar.
Sua outra dimensão crucialmente importante é a guerra
econômica e política a que Cuba foi submetida nos últimos
quarenta e cinco anos, constantemente intensificada e que assumiu formas novas
e mais perigosas. Hoje ela assume a forma de um enorme pressão pela
marketização, que se torna mais problemática
diante do fato de que a aceitação de uma ideologia de mercado
contribuiu significativamente para a desintegração do sistema
soviético no governo de Gorbachev e seus colaboradores.
Quando Stalin formulou em 1952 a sua primeira versão da disciplina de
mercado pela qual se compensaria com bens de consumo
lucrativamente produzidos a força de trabalho por sua
aceitação de tal disciplina muito do que ele decretou era
completamente infundado e teve de permanecer no reino da fantasia. Pois o
sistema soviético não poderia operar na base da
produção e circulação de mercadorias, sob a lei do
valor, principalmente pela razão simples de não ter um mercado
adequado, muito menos um mercado de trabalho. E muitas coisas podem ser
reguladas numa economia com confiabilidade tolerável com a ajuda de um
pseudomercado, que de fato existiu na União Soviética, mas
evidentemente não existiu um mercado para a alocação e o
controle firme da força de trabalho. Até mesmo Kruschev resistiu
à tentação de ampliar as mudanças inspiradas por
Stalin nesse campo perigoso. Somente com Gorbachev se deu o passo
crítico de estabelecer um verdadeiro mercado de trabalho, trazendo
consigo conseqüências catastróficas para a economia e
sociedade soviéticas em geral, sem conseguir realizar as expectativas
irreais dos formuladores dessa política.
É nesse ponto que encontramos a
linha crucial de demarcação
. Naturalmente, falar de marketização pode cobrir muitas coisas,
e freqüentemente não implica nada além do melhor uso dos
recursos materiais e humanos. É uma preocupação
perfeitamente legítima em qualquer circunstância. Na verdade, ela
é grosseiramente violada, apesar de todas as fantasias em
contrário, exatamente na atual fase de
produção e consumo irremediavelmente perdulários
do capital: o inimigo jurado de toda e qualquer preocupação com
a economia e com a correspondente alocação racional de recursos.
A questão que exige resposta é: quem detém o controle
efetivo dos recursos combinados da sociedade, os produtores
associados ou uma força externa de formulação de
decisões, ainda que esta seja ideologicamente adornada com o nome da
imaginária e benevolente mão invisível de Adam
Smith? Uma vez que o trabalho seja transformado em mercadoria como qualquer
outra, manipulado de acordo com as exigências
fetichísticas e mistificadoras
tudo menos
objetivas
do mercado de trabalho, fecham-se firmemente todas as portas para as
aspirações à realização dos tão
necessários objetivos socialistas do povo. Em seu lugar, tudo é
lançado no remoinho da restauração capitalista, como nos
informa a amarga experiência histórica. Somente a forma mais
ansiosa de doce ilusão
há de esperar a capitulação de Cuba nessa questão
de vital importância.
A revolução cubana demonstrou sua solidariedade, da forma mais
tangível, com a causa da emancipação humana em muitas
ocasiões. Mas solidariedade é uma rua de duas mãos. A
solidariedade internacional tem condições de dar uma
contribuição significativa para os próximos quarenta e
cinco anos da revolução cubana.
__________
Notas
1- Lincoln Diaz-Ballart, amigo íntimo e assessor do Presidente
Bush, fez essa declaração enigmática a uma
estação de TV de Miami: 'não posso entrar em detalhes, mas
estamos tentando quebrar esse
círculo vicioso
.' Que métodos eles estarão considerando para lidar com esse
círculo vicioso? Minha eliminação com os recursos
sofisticados que desenvolveram, como prometeu Mr. Bush no Texas antes das
eleições? Ou pelo ataque a Cuba tal como atacaram o Iraque?
Do discurso do Presidente Fidel Castro pronunciado no dia Primeiro de Maio de
2003.
2- István Mészáros,
O Século XXI: Socialismo ou Barbárie,
Boitempo Editorial, São Paulo, 2003, p. 15/16.
3- Julian Borger, US-based missiles to have global reach,
The Guardian
, 1 de julho de 2003.
4- Colin Moynihan, Cuba has been left out for too long: Britain and
Europe must break with 40 years of failed US policy,
The Guardian
, 1 de julho de 2003
5- Os leitores interessados encontrarão uma discussão
documentada dessas questões no capítulo 17 de
Beyond Capital
(Merlin Press, Londres, e Monthly Review Press, Nova Iorque, 1995; em
português,
Para além do capital
, Boitempo Editorial, São Paulo, 2002), especialmente na
seção 17.3, que trata de O fracasso da
desestalinização e o colapso do 'socialismo realmente
existente'.
6- Fidel Castro Ruz, El mundo caótico al que conduce la
globalización neoliberal no puede sobrevivir,
Granma
, 25 de jungho de 1998, p. 6. Citado em Gilberto Valdés
Gutiérrrez, El sistema de dominación múltiple.
Manuscrito.
Outros artigos de István Mészáros publicados por
resistir.info:
O militarismo e as guerras vindouras
, 07/Jul/03
Desemprego e precarização: Um grande desafio para a esquerda
, 27/Jun/03
O desafio do desenvolvimento sustentável e a cultura da igualdade substantiva
, 28/Nov/02
O original em português encontra-se no nº 2, Nov/03-Mai/04, da
revista
Margem esquerda
, publicada em S. Paulo pela
Editora Boitempo
. resistir.info agradece a autorização para republicar o artigo.
O original em inglês encontra-se no nº 8, vol. 55, Jan/04, da
Monthly Review
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
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