Abrindo o caminho para uma ascensão dos trabalhadores?

Sindicalização geral

por Mike Whitney [*]

Cartoon de Poderiu. Apesar de a Reserva Federal ser agora o maior participante do sistema financeiro, o mito do "mercado livre" ainda sobrevive. É avassalador. O Fed expandiu os seus balanços em US$ 2 milhões de milhões, garantiu US$ 8,3 milhões de milhões de papeis manhosos apoiados por hipotecas, forneceu garantias para os depósitos bancários, mercados monetários, papel comercial e criou oito instituições de crédito para garantir que as instituições financeiras a afogarem-se pareçam ter solvência. Todo o sistema é uma operação subsidiada pelo governo, alicerçada num aparelho de financiamento com dinheiro dos contribuintes, que em nada se assemelha à mão invisível. Mais espantoso é a tomada de poder massiva engendrada pelo Fed que se concretiza sem o mínimo protesto de 535 congressistas e senadores em estado de choque. Os representantes eleitos ou mantiveram o seu dedo no ar para ver em que direcção o vento político se deslocava ou timidamente cederam a todas as exigências multimilionárias do Tesouro. É uma chantagem flagrante e toda a gente o sabe. A supervisão do Congresso é um oximoro.

Quem quer que tenha seguido a crise financeira desde as suas origens sabe que as impressões digitais sangrentas do Fed estão por todo o local do crime. Mesmo assim, isto não evitou que bem-intencionados economistas liberais (Krugman, Stiglitz, Reich) apoiassem as tentativas crescentemente heterodoxas de Bernanke de inundar o sistema financeiro com liquidez ("facilitação quantitativa") e de invocar quaisquer estratégias radicais que lhe viessem à cabeça. Na verdade, muitos dos especialistas acreditam que Bernanke devia fazer ainda mais, dada a dimensão aguda do colapso. Há um apoio crescente a um pacote de estímulo gigante (US$ 700 mil milhões) que se focará em construções de estradas, infra-estruturas, apoio estatal, extensão de benefícios de desemprego e tecnologias verdes. Do lado de Obama espera-se que os programas governamentais e gastos deficitários compensem as perdas gigantes na procura agregada que ameaça baixar preços cada vez mais num ciclo deflacionário retroalimentado. Mesmo assim, é natural que se questione a sabedoria de dar cada vez maior poder às próprias pessoas que criaram a confusão e que parecem mais interessadas em provar as suas teorias de combate à depressão que em atirar um salva-vidas a proprietários que se debatem, consumidores ou trabalhadores da indústria automóvel. Ou talvez seja tempo de experimentar algo diferente.

Até agora, a abordagem monetarista de Bernanke nada conseguiu. Os índices das acções caíram 45 por ncento e os preços de imóveis continuam em queda livre. As baixas taxas de juro do Fed e as instituições de crédito criadas evitaram que o sistema bancário entrasse em colapso, mas não conseguiram fazer com que consumidores ou negócios começassem a gastar novamente. A economia está a afundar-se rapidamente. Paul L. Kasriel, director de pesquisa económica na The Northern Trust Company sumarizou o dilema de Bernanke do seguinte modo:

"Numa queda habitacional sustentada que provoca grandes danos ao capital dos bancos (baixas taxas de juros) [isto] simplesmente não importará. Foi isto no essencial o que aconteceu recentemente no Japão e também nos EUA durante a Grande Depressão. A maioria das pessoas não está consciente das medidas que o Fed tomou durante a Grande Depressão. Bernanke afirma que o Fed não agiu de modo suficientemente forte durante a Grande Depressão. Isto simplesmente não é verdade. O Fed cortou as taxas de juro e injectou enormes somas na base monetária, mas isto não funcionou. Mais recentemente o Japão fez a mesma coisa. Também não funcionou. Se as taxas de incumprimento se tornarem muito elevadas, os bancos simplesmente não se disporão a emprestar, o que limitará severamente a criação de dinheiro e de crédito". (Entrevista com Paul Karsiel; Mish's Global Economic Trend Analysis)

De facto, os bancos são apenas uma parte do problema. Outra parte é a escassez de tomadores de crédito confiáveis, agora que a situação líquida da habitação está a secar e os padrões para empréstimos se tornaram mais restritos. A maioria das pessoas viu a sua riqueza pessoal desaparecer quando os preços das casas caem e os seus 401-Ks (plano de poupança para a reforma) encolhem para o tamanho de uma ervilha. O presidente do Fed enfrenta enormes obstáculos ao tentar reiniciar o motor do crédito e fazer com que consumidores massacrados por dívidas comecem a gastar novamente.

Bernanke expandiu a oferta monetária a um ritmo recorde, mas com poucos efeitos. O dinheiro está a estagnar em bolsões porque a canalização financeira ainda está entupida com problemas no sistema bancário. O sistema de transmissão de crédito rompeu-se, causando uma contracção generalizada de toda a economia. A actividade de negócios caiu num precipício e a confiança dos consumidores está num mínimo de 40 anos. No seu artigo na Forbes "O que faria Keynes?", o antigo economista do departamento do Tesouro, Bruce Bartlett, lança algumas luzes numa parte do problema que muitos entendidos não vislumbram:

"Outro problema que os decisores da altura não percebiam é que a eficiência da oferta monetária depende de quão rápido as pessoas o gastam; algo a que os economistas chama velocidade. Se a velocidade cai porque as pessoas começam a guardar o dinheiro, pode ser necessário muito mais dinheiro para manter a economia em funcionamento.

Pensemos do seguinte modo: a velocidade é o rácio da oferta monetária para o produto nacional bruto. Se o PNB é de US$ 10 milhões de milhões e o dinheiro gira 10 vezes por ano, então US$ 1 milhão de milhões em oferta monetária será suficiente. Mas se a velocidade cair para 9, uma oferta de US$ 1 milhão de milhões apenas apoiará um PNB de US$ 9 milhões de milhões. Se o Fed não quiser que o PNB encolha 10%, terá então de aumentar a oferta monetária em 10%.

É este essencialmente o problema que temos hoje. Ao contrário do que se passava nos anos 30, o Fed não está a permitir que a oferta monetária diminua. Além disso, temos programas como o seguro de depósito federal que impede que os depósitos bancários diminuam. Mas a velocidade está a entrar em colapso. Os bancos, empresas e famílias estão todos a entesourar dinheiro, gastando apenas nos bem essenciais. Isto está a provocar a deflação que manieta a economia."

Foi por isso que Bernanke lançou a sua intervenção radical, comprando títulos, acções e tudo o que evite que os preços dos bens caiam. É uma tentativa de reiniciar o consumo estimulando o mercado. Quando as empresas e consumidores não conseguem suster a procura, o governo tem de agir e tomar o seu lugar. De outra maneira, as empresas têm de cortar custos ainda mais dramaticamente, fazendo com que o desemprego aumente enquanto os preços continuam em queda livre.

A verdadeira preocupação é que a teoria de estimação de Bernanke é meramente um sonho académico que está a fazer mais mal que bem. Senão vejamos: a sua estratégia baseia-se numa leitura histórica controversa da História, que apenas é aceite pelos discípulos de Milton Friedman. A ideia que uma recessão normal sofreu uma metamorfose e tornou-se na Grande Depressão porque a oferta monetária decresceu em um terço entre 1929 e 1932 é provavelmente uma simplificação excessiva de uma situação muito complexa. Se os cálculos de Bernanke estiverem correctos, então mostrem-nos os resultados! Porque é que taxas de juro de zero por cento e as instituições de empréstimos não estimularam a procura? Em vez disso, os mercados de acções continuam em queda, os lucros corporativos descem, as execuções de hipotecas estão em ascensão, as mercadorias em queda e as filas de desemprego estão a aumentar por todo o continente (O desemprego durante a Grande Depressão só chegou aos 25 por cento passados três anos. Na verdade está a acelerar mais rápido em 2008 do que ocorreu em 1929). Então, onde está a melhoria, Ben?

A actual lista de medidas de remediação não aborda a podridão no próprio sistema. É esse o problema. Não há dúvidas que Timothy Geithner e Larry Summers terão melhor sorte a mitigar os efeitos da economia em declínio, mas com que objectivo? Para coser um sistema que leva fatias crescentes da riqueza nacional para grupos cada vez menores de empresários e banqueiros? É essa a medida do sucesso?

(Nota: Redistribuição US style: Nos Estados Unidos os 1% mais ricos em 2001 juntos possuíam mais do dobro dos 80% mais pobres; se isto fosse medido simplesmente em termos de riqueza financeira, isto é, excluindo a situação líquida dos proprietários de casas, os 1% mais ricos possuíam mais de 4 vezes o que 80% mais pobres possuíam!)

Não, obrigado. Além disso, a crise financeira não é um acidente da natureza, como um tornado ou avalanche. É uma ferida auto-inflingida cuja origem pode ser descoberta em políticas particulares que foram postas em prática para desviar a riqueza de uma classe para outra. As baixas taxas de juros, a alavancagem massiva, as instituições sub-capitalizadas, as operações fora dos balanços das empresas, foram todos congeminados com os mesmos objectivos em mente. O repertório do Fed pode mudar, mas os resultados são sempre os mesmos; estes reflectem o profundamente enraizado viés de classe que ordena a economia de acordo com os interesses dos ricos e poderosos.

Além disso, há razões para crer que Bernanke não percebe inteiramente o problema fundamental, que o crescimento económico dos últimos anos foi baseado num modelo enviesado que não pode ser restaurado. Os consumidores foram capazes de gastar além dos seus meios porque os seus activos pessoais estavam grandemente inflacionados pela disponibilidade de crédito fácil e padrões de empréstimos pouco exigentes. Agora que o risco está a ser reavaliado, a deflação da dívida instalou-se e os preços estão em queda por toda a parte. Os proprietários de imóveis estão a sentir o aperto porque não podem utilizar a sua situação líquida imobiliária, que ascendia aos US$800 mil milhões em 2006. O processo de reduzir as taxas de juro através da difusão do risco pelo sistema (securitização) foi congelado, fazendo com que os investidores dos mercados de acções fujam para a segurança dos títulos de tesouro dos EUA e do dinheiro vivo. As tentativas de Bernanke de reinflacionar a bolha através da compra dos títulos financeiros apoiados por hipotecas (MBS) da Fannie e da Freddie e da dívida empacotada de cartões de crédito de companhias financeiras é um sinal de absoluto desespero. Ele é como um homem a encher um pneu furado, a bombear ar furiosamente por um lado enquanto este escapa pelo outro.

A economia está em contracção porque os gastos excessivos se basearam em baixas taxas de juro artificiais e alavancagem de dívida. Em O fim da prosperidade, Fred Magdoff e Paul Sweezy escreveram:

"Na ausência de uma depressão severa durante a qual as dívidas são forçosamente eliminadas ou drasticamente reduzidas, as medidas de salvamento dos governos para impedir o colapso do sistema financeiro meramente preparam o terreno para ainda maiores camadas de dívida e maiores tensões durante o avanço económico seguinte". Como diz Minsky, "Sem uma crise e um processo de deflação de dívida para abalar crenças no êxito de aventuras especulativas, são induzidos tanto uma tendência altista de preços como camadas financeiras sempre crescentes".

É este o modelo de mercados que Bernanke e Paulson estão a tentar ressuscitar, mas sem grande êxito. O crédito que antes fluía abundantemente de hedge funds e bancos de investimentos reduziu-se a umas gotinhas. Não é mais possível pegar complexos instrumentos de dívida e amplificar o seu valor 30 ou 40 vezes. Os investidores detectaram a fraude e boicotaram o mercado da dívida empacotada sob a forma de títulos financeiros (securities). Enquanto a execução das hipotecas aumenta, os balanços dos bancos continuarão em hemorragia, forçando-os a pedidos adicionais de fundos (margin calls) que empurrarão mais e mais instituições financeiras para a bancarrota. Não pode ser parado. É isto que acontece quando a economia subjacente não pode mais suportar um sistema financeiro desmesurado, onde os salários estagnaram e os trabalhadores são incapazes de cumprir os pagamentos dos seus empréstimos. Todo o sistema começa a preparar-se. John Bellamy Foster e Fred Magdoff explicam as origens da "financeirização" no seu artigo da Monthly Review, "Financial Implosion and Stagnation" .

"Foi a realidade da estagnação económica principiada nos anos 70, como os economistas heterodoxos Riccardo Bellofiore e Joseph Halevi recentemente enfatizaram, que levou à emergência do "novo regime capitalista financeirizado", uma espécie de "keynesianismo financeiro paradoxal" através do qual a procura na economia era primariamente estimulada "graças a bolhas de activos". Além disso, foi o papel preponderante dos EUA na geração dessas bolhas – apesar do (e também devido ao) enfraquecimento da adequada acumulação de capital – juntamente com o estatuto do dólar como moeda de reserva, que fez o capital monopolista-financeiro dos EUA o "catalisador da procura efectiva mundial".

A teoria de Magdoff e Foster confirma que havia um plano para expandir os mercados financeiros para áreas mais arriscadas a fim de compensar a estagnação que ocorre inevitavelmente em economias capitalistas. O problema real tem raiz na hostilidade dos patrões das empresas em relação aos trabalhadores, que se traduz em salários que não se mantêm a par da produção. Quando os salários reduzem-se, numa economia que se baseia em 70 por cento nos gastos de consumidores, a única maneira de aumentar o PIB é expandindo o crédito. E isso foi exactamente o que se passou. Os ideólogos do gotejamento (trickle down), como Henry Paulson, fizeram todos os esforços para estender crédito a qualquer um com pulsação e uma temperatura corporal de 36ºC, mas lutam com unhas e dentes para esmagar os sindicatos ou qualquer tentativa de aumentar salários. E Paulson, claro, não está sozinho nesta luta de classes; ele é apenas um exemplo extremo.

O ponto final é que a financiarização, que assenta nos pilares gémeos do crédito fácil e do inchaço da dívida, cria um sistema inerentemente instável que é atreito a oscilações selvagens e explosões frequentes. Bernanke está a tentar restaurar este sistema ignorando que os trabalhadores – cujos balanços pessoais já estão em sangria desatada – não podem mais sustentá-lo. Quantidade alguma de remendos nos mercados de crédito reduzirá a sobrecapacidade excessiva que atravessa o sistema ou adicionará um cêntimo à conta bancária de um homem pobre. Há um desajuste histórico entre oferta e procura que não pode ser reconciliado pela intromissão de Bernanke nos mercados. Os trabalhadores precisam aumentos, é assim que se cria procura.

A mesma mensagem vai também para a equipa económica de Obama. O pacote de estímulos pode funcionar como penso rápido de curto prazo para a economia, mas se os salários não aumentarem, a economia continuará a ter um fraco desempenho. É por isso que o novo comandante-em-chefe seria bem avisado se aprovasse rapidamente o Employee Free Choice Act (Acto de escolha livre do empregado), também conhecido com "Card Check" [NT] , que acabaria com a votação secreta nas eleições sindicais. Pode ser a mais importante legislação a ser aprovada numa década. A sua aprovação facilitaria a organização de sindicatos e ajudaria a aumentar o número de membros de sindicatos, que actualmente apenas representa 10 por cento da força de trabalho.

Esqueçamos as falsas diferenças entre os dois partidos políticos. Não existem. A única esperança de uma mudança estrutural profunda é fortalecer os sindicatos e dar aos trabalhadores um lugar na definição das políticas. É a única maneira pacífica de desmantelar o regime financeiro parasitário e trazer uma mais equitativa distribuição de riqueza.

09/Dezembro/2008

[NT] O Card check é um método de organização de empregados em sindicatos, no qual os patrões entram em acordo com os empregados, reconhecendo a sindicalização destes se uma maioria assinar impressos de autorização, ou "cards".

[*] fergiewhitney@msn.com

O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/whitney12092008.html . Traduzido por João Camargo.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
18/Dez/08