Para entender também a situação portuguesa

Predadores financeiros contra o trabalho, a indústria e a democracia

– A crise da dívida soberana na Europa em perspectiva histórica

por Michael Hudson [*]

  • O euro invalidado desde o início, financeira e fiscalmente
  • Sob as presentes condições, o colapso da Eurozona é inevitável
  • O encargo das poupanças é o problema, porque é sinónimo de encargo de dívida
  • Como a inflação do preço de activos leva à deflação da dívida
  • Atar as mãos do governo privando-o de um banco central para criar dinheiro
  • Por que os ganhos de produtividade dos últimos 50 anos não nos tornaram todos ricos?
  • Os banqueiros são os novos planeadores centrais – e o seu plano é pela austeridade
  • Um recomeço: Pensar acerca do impensável
  • Um realinhamento político europeu?
  • O desafio neoliberal
  • Capitalismo financeiro versus capitalismo industrial
  • A tradição de banca central da Europa comparada com a da banca mercantil anglo-americana

    Prof. Michael Hudson. Falta à Eurozona um banco central para fazer o que se supõe que faça a maior parte dos bancos centrais:   financiar défices do governo. Para tornar as coisas pior, o Acordo de Lisboa limita estes défices a 3% – demasiado pouco para retirar economias da depressão compensando a deflação da dívida do sector privado.

    Mesmo se os bancos centrais pudessem monetizar níveis mais altos de gastos deficitários, há boas razões não para subsidiar sistemas fiscais injustos e cortes fiscais sobre o imobiliário e inesperados “almoços grátis” financeiros que os economistas clássicos instavam a que fosse a base fiscal. Sob uma política fiscal clássica, a Europa não teria tido uma bolha do preço da terra em primeiro plano. A renda económica do "almoço grátis" ter-se-ia tornado a base fiscal, não capitalizada em empréstimos bancários a serem pagos como juros. Os orçamentos governamentais teriam sido financiados de um modo que manteria baixos os preços da propriedade.

    Mas os lobistas bancários impediram a Eurozona de criar um verdadeiro banco central para financiar os défices dos orçamentos públicos. Eles também viraram do avesso a política fiscal clássica ao desonerar fiscalmente o imobiliário e as finanças enquanto colocavam o fardo sobre o trabalho, os lucros corporativos e os consumidores através do imposto sobre as transacções (IVA). Estas políticas gémeas, financeiras e fiscais, fortaleceram os sectores errados e tornaram a actual crise de dívida soberana inevitável, transformando-a numa crise económica e política geral.

    Tendo criado esta crise, os interesses rentistas procuram agora utilizá-la como uma oportunidade para desmantelar os gastos sociais (social welfare spending), romper o poder dos sindicatos de trabalhadores e transferir as suas perdas para o sector público. A privatização dos lucros e a "socialização" das perdas ameaçam mergulhar a Eurozona na austeridade e contracção económica – a menos que a má dívida e os maus empréstimos sejam parcialmente reduzidos ou totalmente cancelados.

    Dívidas que não podem ser pagas, não o serão. A questão é se o seu não pagamento assumirá a forma de reduções parciais (writedowns) para o nível em que possam ser pagos ou se a Europa será sujeita a uma onda de execuções, privatizações e cortes na despesa pública em infraestruturas e programas sociais. Na discussão de alternativas, pode ser uma ajuda recordar que o Milagre Económico da Alemanha teve por base a Reforma Monetária Aliada de 1947, a qual foi um cancelamento de dívida de extremo alcance. Um cancelamento de dívida semelhante é necessário para permitir à Europa que recomece com uma posição limpa (Clean Slate, Schuldenstreichung) e um sistema financeiro e fiscal mais sadio. Esta necessidade tornou-se agora urgente.

    Tal reforma financeira precisa ser acompanhada por uma reforma fiscal para arrecadar renda da terra, renda de recursos naturais e restabelecer os monopólios da infraestrutura básica no sector público ao invés de deixá-los como um ganho inesperado ou "gratuito" a ser capitalizado numa nova onda de empréstimos bancários.

    Quero começar por dizer quão chocado fiquei uns poucos anos atrás ao descobrir que os alemães estão a receber propaganda de uma história travestida quanto à hiper-inflação de Weimar na década de 1920. Quando estudei – e depois ensinei – teoria económica na década de 1960, o problema era entendido claramente. Os estudantes aprendiam como a Alemanha estava sobrecarregada com reparações da I Guerra Mundial muito além da sua capacidade de pagar. Já em 1919, John Maynard Keynes, em Economic Consequences of the Peace, advertia que estabelecer estas reparações em níveis tão altos provocaria um colapso dos pagamentos internacionais. Durante a década de 1920 ele definiu os limites de quanta dívida externa ou outras "transferências de capital" podiam ser pagas ao estrangeiro.

    Seguido por alguns economistas como Harold Moulton e Allyn Young nos Estados Unidos, a análise "estrutural" da balança de pagamentos elaborada por Keynes foi ensinada a uma geração de estudantes e analistas de crédito. Tornou-se conhecimento corrente que o que governos podem tributar em moeda nacional não estava necessariamente disponível para ser pago em divisas estrangeiras. A Alemanha só podia pagar dólares ou ouro exportando mais – ou pela venda de propriedade, ou tomando de empréstimo divisas fortes. O que levou ao colapso sua taxa de câmbio e inflacionou os seus preços foi a tentiva desesperada de pagar dívida externa, não imprimindo dinheiro para gastos internos. Percebo que os alemães estejam traumatizados pela inflação. Mas, ao invés de serem arrastados pelas emoções, agora é tempo de darem um passo atrás e reconhecerem as razões reais que provocaram o trauma.

    Keynes e os seus colegas não conseguiram os convencer governos a rejeitar os argumentos de Jacques Rueff em França, Bertil Ohlin nos Estados Unidos e outros economistas orientados para os credores que afirmavam não haver limites para a quantidade de dinheiro que podia ser extorquido simplesmente através da imposição de austeridade financeira e fiscal. As suas visões tacanhas receberam um apoio poderoso dos interesses dos credores, apoiados por uma diplomacia americana nacionalista. A sua lógica de vingança não constituiu um guia responsável para a política. Mas isto sobreviveu em pouco emotivos mas igualmente frios, na forma calculada de programas de austeridade racionalizados pelo Fundo Monetário Internacional, impostos à América Latina e outros devedores do Terceiro Mundo desde a década de 1960.

    O que é notável é que a consciência do lado empiricamente válido do debate alemão das reparações alemãs da década de 1920 desapareceu da discussão de hoje. Os perdedores naquele debate – os advogados da austeridade – inundaram os media populares, os governos e mesmo as universidades com aquilo a que os psicólogos chamam uma memória implantada: uma condição na qual o paciente é convencido de que sofreu um trauma que parece real, mas que na realidade não existe. Ao povo alemão foi dada uma falsa memória da sua traumática hiper-inflação. O fingimento é que esta resultou do financiamento pelo Reichsbank da despesa doméstica. A verdadeira explicação deve ser encontrada no colapso das divisas externas – ao tentar pagar dívidas externas muito para além da sua capacidade.

    Toda a hiper-inflação na história foi provocada pelo serviço da dívida externa que provocou o colapso da taxa de câmbio. O problema quase sempre resultou de tensões na divisa externa geradas em tempo da guerra, não na despesa doméstica. A dinâmica da hiper-inflação investigada em clássicos como The Reichsbank and Economic Germany (1931), de Salomon Flink, foi confirmada por estudos da inflação chilena e de outras inflações do Terceiro Mundo. Primeiro a taxa de câmbio afunda quando as economias pagam gastos militares externos durante a guerra e depois – no caso da Alemanha – com as reparações depois de a guerra terminar. Estes pagamentos levam à queda da taxa de câmbio, aumentando o preço em moeda doméstica das importações com preços em divisas fortes Esta ascensão de preços para bens importados cria um preço protector para os preços internos fazerem o mesmo. Mais dinheiro doméstico é necessário para financiar a actividade económica com um nível de preço mais elevado. Esta experiência alemã proporciona o exemplo clássico.

    Em 1919 os Aliados impuseram à Alemanha elevadas reparações impagáveis – em grande parte para pagar as dívidas Inter-Aliadas de armas que o governo dos EUA insistia em cobrar da Grã-Bretanha e da França por fornecimento de armas antes de os Estados Unidos entrarem na guerra. Tais dívidas tradicionalmente eram dadas como esquecidas entre os aliados depois de alcançada a vitória. Mas o governo dos EUA recusou-se a fazer isso, de modo que os clientes do tempo da guerra viraram-se para a Alemanha a fim de pagá-las.

    A sua responsabilidade era ilimitada à luz do Tratado de Versalhes. Para começar, a Alemanha foi despojada das suas reservas de carvão, siderurgias e outros activos valiosos. Isto deixava pouca alternativa para o Reichsbank criar marcos alemães para lançar nos mercados de divisas a fim de obter divisas externas para pagar as reparações. Isto fez elevar o preço das importações e, portanto, o nível de preços interno. Era preciso mais dinheiro para transaccionar compras e vendas com um nível de preços mais alto. Assim, a linha causal foi da balança de pagamentos e depreciação da moeda para o aumento dos preços das importações. Bens importados caros fizeram também elevar os preços internos. Foi isto que criou a necessidade de uma oferta monetária mais alta, não foi o dinheiro doméstico que forçou preços mais altos. [1]

    O marco alemão foi estabilizado e as reparações da Alemanha foram pagas tomando empréstimos no exterior, não pela tributação do rendimento interno. As suas cidades tomavam empréstimos em dólares em Nova York e o Reichsbank convertia-nos em moeda nacional (cujo gasto não causava inflação nos preços domésticos). O Reichsbank pagava estes dólares aos Aliados – estes faziam-nos circular e pagavam ao governo dos EUA pelas suas dívidas de armas numa circulação triangular.

    A Reserva Federal inundou Wall Street com bastante crédito a fim de manter as taxas de juro baixas o suficiente para encorajar a concessão de empréstimos externos a obter taxas de juro mais altas no exterior. Isto parecia fazer o sistema funcionar – pelo financiamento de serviço da dívida com novos empréstimos. Os economistas chamam a isto esquema Ponzi (Schneeballsystem). Aquilo que promete ser o "milagre do juro composto" não pode perdurar muito sem auto-destruição. As baixas taxas dos EUA que tornavam os empréstimo ao estrangeiro lucrativos alimentaram uma bolha interna do mercado imobiliário e de títulos que em 1929 entrou em crash.

    Pode parecer estranho para um americano como eu ser convidado para vir à Alemanha falar-vos acerca da vossa própria história. Mas isto é o que acontece quando os lobistas da banca exploram habilmente um trauma colectivo para despojarem um país do conhecimento da sua história e substituí-la com um travestido da realidade. Esta distorção da história é uma pré condição para propagar a ideologia orientada para o credor, advogada pela Comissão da UE, pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Esta "troika", capturada e enjaulada pela ideologia neoliberal, está a utilizar uma visão histórica falsa para mergulhar a Europa na austeridade e pobreza desnecessárias.

    A decisão mais imediata foi fazer à Grécia o que o Tratado de Versalhes fez à Alemanha: impor o serviço da dívida externa muito para além da sua capacidade de pagar. Politicamente, isto exige a suspenção da democracia e a aceitação da possibilidade de a Grécia deslizar outra vez para a ditadura militar, pela insistência de que às populações não seja uma oportunidade de aprovação do compromisso do governo em pagar. O verdadeiro golpe de estado é culminado pela substituição de governos eleitos na Grécia e na Itália por "tecnocratas", o termo europeu para aquilo a que nós americanos chamamos lobistas de bancos de investimentos ou seus serventes (factotums).

    Quando temos ideologia económica errada promovida ano após ano como uma ladainha, há sempre um interesse especial a actuar. Hoje, o mais poderoso interesse especial é o sector financeiro. Ele procura extrair ganhos mesmo ao custo de impor a austeridade e a bancarrota final a economias nacionais inteiras. O lobing pró credor ganhou suficiente subsídio e poder para despojar do curriculum académico a história do pensamento económico, ao ponto de suprimir a memória de debates monetários que remontam a dois séculos. A insistência monetarista actual sustentando que dívidas externas podem ser pagas sem limites está, por exemplo, enraizada na lógica Bulionista de David Ricardo apresentada na década de 1820. Ela foi controvertida pelos anti-Bulionistas, contudo universidades ainda ensinam pontos cegos da Escola de Chicago de Milton Friedman, e bancos centrais por todo o mundo impõem seus erros de omissão e comissão.

    Esta censura da história intelectual passada não é ciência, nem tem base empírica. É ideologia que reflecte o auto-interesse selvagem dos credores. Mas a sua racionalização nas restrições da Eurozona contra bancos centrais financiarem despesa pública é utilizada para lavar o cérebro de economistas profissionais e colocar os banqueiros centrais submissos aos banqueiros de investimento. Há mesmo uma ideologia de que orçamentos governamentais deveriam ser equilibrados em vez de proporcionarem à economia dinheiro e poder de compra para crescer. A conclusão política revela a motivação porque este erro tem sido popularizado com tanto êxito: Se bancos centrais não proporcionarem dinheiro à economia (na forma de dinheiro-dívida que ninguém realmente espera que seja pago ao logo do tempo, ao contrário do crédito bancário comercial), então isto deixa os bancos do sector privado como a única fonte de moeda e crédito – e cobrança de juros. O seu objectivo é manterem para si próprios o monopólio da criação de moeda que governos poderiam fazer muito bem por si próprios nos seus próprios teclados de computador.

    Os bancos demonstraram ser irresponsáveis ao financiar a forma característica de inflação dos preços do mundo de hoje: uma bolha financeira alimentada pelo crédito em condições mais fáceis e mais folgadas para a compra de imobiliário, acções e obrigações, para comprar empresas inteiras. Dificilmente se poderia esperar que governos alimentassem a inflação de preços de activos. O seu interesse é tributar os "almoços grátis" inesperados proporcionados pela ascensão do valor da terra e dos recursos naturais, e providenciar serviços básicos de infraestrutura a preços subsidiados ou gratuitos, assim como oferecem estradas sem encargos de acesso ou portagem. Os bancos procuraram fazer com que os devedores hipotecários e os atacantes (raiders) de empresas pudessem pagar os seus juros através de reduções de impostos, deixando mais renda da terra e rendimento corporativo "liberto" para ser pago a banqueiros e possuidores de títulos em vez do colector de impostos.

    O resultado é elevar preços de duas formas. A primeira delas, "renda é para pagar juros", e assim o fluxo de caixa corporativo no mundo de hoje das compras alavancadas por dívida (debt-leveraged buyouts), compras por fundos de risco (hedge funds takeovers), fusões e aquisições. Tudo o que o colector de impostos renuncia fica “livre” para ser capitalizado em empréstimos bancários, elevando o preço dos activos. Isto eleva preços da habitação, das fábricas e outros meios de produção. As economias polarizam-se entre credores no topo de uma pirâmide cada vez mais íngreme e devedores na base a afundarem na servidão da dívida (debt peonage). A classe média desaparece.

    Os cortes fiscais sobre a renda da terra, os recursos naturais e os escalões com mais altos rendimentos forçam governos a transferir o fardo fiscal para o trabalho, a indústria e os consumidores. Isto eleva o ponto de equilíbrio entre o custo de viver e o de empregar trabalho. Isto põe fora dos mercados mundiais economias tributadas regressivamente e com preços infestados pela dívida.. O efeito deve ser a contracção económica – a menos que todo o mundo adira a esta corrida para o fundo.

    O mito de que a hiper-inflação da Alemanha na década de 1920 foi provocado pelo Reichsbank a utilizar a impressora de papel-moeda para financiar o défice do orçamento público alemão sobreviveu para justificar o Tratado de Lisboa a impedir o Banco Central Europeu de criar moeda para emprestar a governos. Os bancos levaram uma geração inteira a plantar esta história falsa para forçar governos a tomarem empréstimos em condições comerciais, com juros, presumivelmente livres de risco. O BCE foi sequestrado para servir a banca comercial, não o interesse público. Os bancos querem forçar os governos a contraírem empréstimos comercialmente, a juros, presumivelmente em condições livres de risco. O objectivo é monopolizar a criação de dinheiro que governos puderiam criar simplesmente a teclar nos seus próprios computadores.

    Já no século XVIII, economistas britânicos tais como Sir James Steuart, Rev. Josiah Tucker e mesmo David Hume reconheceram que moeda adicional e despesa normal (desde que o desemprego existisse) ajudavam mais a aumentar a produção do que os preços. O corolário é que a deflação monetária em condições de desemprego tende a restringir a produção mais do que as importações – sem falar na transferência da propriedade dos credores via execuções. Assim, a moeda é muito mais do que um "véu". Ela é dívida, não meramente um conjunto de "guichets". A austeridade desencoraja novo investimento de capital, levando a mais profunda dependência de importações, piorando a balança de pagamentos bem como o défice orçamental.

    Ao privar a economia dos fundos para aumentar o emprego e a produção – enquanto apoia bancos que passaram a geração passada a inflacionar preços imobiliários e a bolha financeira – a política do BCE promoveu a inflação de preços de activos para a habitação, o custo de vida e portanto os custos do emprego. Isto dificilmente constitui uma recomendação para o deixar com o poder do planeamento central que ele procura para impor austeridade para extorquir pagamentos de dívida pela sua anterior política de crédito irresponsável.

    Alguma coisa tem de ceder. Se as dívidas não forem reduzidas – e, de facto, canceladas – então as economias terão de utilizar o seu excedente para pagar aos credores do passado e seus herdeiros, em vez de o investir no crescimento económico e na elevação dos padrões de vida. O plano financeiro é desmantelar gastos sociais e o investimento em infraestruturas governamentais, privatizando isto – a crédito, embutindo os pesados encargos do serviço de dívida nos preços dos serviços públicos até agora proporcionados a taxas subsidiadas ou gratuitamente, pagos por uma combinação de tributação progressiva do rendimento e da riqueza e pela criação de dinheiro novo pelo governo. O efeito será aumentar estrutura nacional de preços, enquanto torna se tornam credores e privatizadores ricos mesmo quando a economia geral se afunda.

    Um golpe de estado (coup d'état) político e ideológico está a substituir a democracia pela oligarquia financeira, transferindo poder do governo para bancos e possuidores de títulos. A nova política não é para os governos tributarem a riqueza, mas sim para tomarem dela empréstimos – a juros, os quais devem ser pagos por ainda mais tributação sobre o trabalho, os consumidores e a indústria. Prosseguir neste caminho contrariaria o Iluminismo da Europa e os últimos três séculos de economia. Chamam a isto economia clássica – e mesmo "economia do mercado livre" – mas é um travestismo impor esta política em nome dos santos patronos da economia política clássica. Os fisiocratas, Adam Smith, John Stuart Mill, Wilhelm Roscher, Friedrich List e reformadores da Era Progressista instavam exactamente ao caminho oposto daquele que está agora a ser tomado, e na verdade aquele que o mundo parecia estar a seguir até a I Guerra Mundial e durante umas poucas décadas após a II Guerra Mundial.

    O euro foi invalidado desde o início, financeira e fiscalmente

    A União Europeia foi criada em grande medida como um projecto para pôr fim à guerra, mas o modo como a Eurozona foi moldada abriu uma forma inesperada de campanha militar e de busca de tributos: uma conquista empreendida por banqueiros e seus grandes clientes rentistas a fim de criar uma oligarquia financeira dominando através de "tecnocratas" instalados mais como procônsules usados para servir o Império Romano. A actuarem sob a directiva primária de que todas as dívidas devem ser pagas, quer se queira quer não, esta classe administrativa está desejosa de mergulhar as economias em austeridade e depressão para criar a oportunidade de quebrar o poder dos sindicatos de trabalhadores e reverter os gastos sociais na condição de force majeure. Ao reverter os últimos dois séculos de Iluminismo Europeu, os interesses financeiros estão a lutar para reverter as reformas da Era Progressista de um século atrás e a democracia social que se seguiu à II Guerra Mundial.

    A Europa está a ser empurrada para a depressão, mas não se trata de uma recessão cíclica dos negócios ou um resultado de fenómenos naturais. Ela não é economicamente necessária e certamente não resulta de o trabalho estar a ser pago em demasia – excepto na medida em que é pago mais para cobrir os seus pagamentos aos bancos. A crise de dívida soberana está a ser utilizada como uma oportunidade para forçar a privatização em liquidações e desmantelar o poder de governos para regulamentarem e tributarem a riqueza. Défices orçamentais estão a ser utilizados não para ressuscitar o emprego, em estilo keynesiano, mas para salvar bancos e possuidores de títulos de terem de assumir perdas.

    A primeira dimensão do problema da Eurozona é financeira. Lobistas da banca invalidaram (crippled) o euro desde o seu nascimento. Ao contrário da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, falta à Eurozona um banco central para fazer o que supõe que façam bancos centrais: criar dinheiro para financiar défices governamentais. O dinheiro e o crédito necessários para alimentar a economia estão a ser criados por bancos comerciais, a juros. Aqui simplesmente não está a ideia de um banco central continental europeu a emprestar directamente a governos.

    Eis porque George Soros recentemente descreveu o próprio euro como uma bolha – uma reacção positiva à crença de que ele funcionaria foi seguida por uma súbita percepção da sua deficiência estrutural. "A principal fonte de perturbação", explicou ele, "é que os estados membros do euro capitularam diante do Banco Central Europeu nos seus direitos de criar moeda fiduciária (fiat money) [2] Impedido de emprestar a governos, o BCE na sua forma actual estava destinado a falhar no momento em que governos precisassem resgatar economias da deflação da dívida.

    O euro foi criado sem um organismo capaz de monetizar despesa pública independentemente de bancos comerciais. Mas os bancos não perderam demasiado [tempo] para retomar os empréstimos. Desregulamentação, supervisão laxista e rematada prática fraudulenta tornaram-se tão comuns, especialmente a que vinha de bancos estado-unidenses e britânicos e seus correspondentes, que a confiança foi rompida. Sem fé, o crédito desaparece, porque a palavra crédito significa, literalmente, "eu acredito [que serei reembolsado]". Os banqueiros, correctamente, receiam estender crédito a outros bancos.

    Isto é o resultado final do facto de o plano de negócio do sistema bancário não ter sido para financiar nova formação de capital para criar fluxos futuros de rendimento a partir da economia real, mas sim encontrar activos e fluxos de rendimento para servirem como colateral de novos empréstimos. Quando bancos competem para emprestar contra o imobiliário (o qual representa uns 80 por cento dos novos empréstimos bancários nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha), para o controle corporativo ou para acções e obrigações, o efeito é carregar estes activos e seus fluxos de rendimento com mais dívida, sugando capital para longe do investimento produtivo para pagar juros e amortização aos bancos. Isto é predatório, mas basicamente um plano de negócio preguiçoso.

    Ao invés de financiar défice público, a banca comercial incha os preços – preços de activos. Os bancos emprestam principalmente contra activos que extraem rendas, a começar pelo imobiliário, petróleo e gás, indústria mineira e extracção de renda de monopólio – precisamente a renda de "almoços grátis" que os economistas clássicos instavam a que fosse a base fiscal. As terras ancestrais já não pertencem à nobreza hereditária, elas foram democratizadas, mas com o endividamento dos novos proprietários (a crédito). Reconhecendo que as quantias libertas pelo fisco ficam "livres" para pagar aos bancos sob a forma de juros, a banca apoiou a política de não tributação das terras, dos combustíveis e dos minerais.

    A dimensão fiscal é a segunda carga de profundidade na má estruturação económica da Europa. Um preço de propriedade acaba por ser em grande medida o quanto um banco emprestará. Como os bancos procuram emprestar tanto quanto os mutuários puderem, eles aliviam as condições, emprestando uma proporção crescente do preço de compra dos imóveis ou de outras propriedades. Isto eleva os preços dos activos – o resultado da alavancagem de maior dívida, realmente não de maior rendimento ou de mais produção. Assim mais tomadores de crédito compram propriedades simplesmente à espera de fazer uma mais-valia com o preço do activo ("capital"). Eis porque banqueiros comerciais gostam da inflação no preço dos activos. Ela amplia o mercado para a sua criação de crédito.

    Ao considerar o juro como fiscalmente dedutível, como se fosse uma despesa necessária do negócio (e mesmo sobre o imobiliário residencial ocupado pelo proprietário na maior parte dos países de língua inglesa), a tendência pró divida de hoje, o código fiscal pró banco, subsidia uma proporção crescente da economia a ser excedente pago como juros aos banqueiros. Isto provoca uma perda não só para o colector fiscal como também para a economia como um todo. Novos compradores de casas ou de propriedade comercial, por exemplo, concorrem com outros compradores potenciais para verem quem comprometerá o maior rendimento após impostos a fim de obter um empréstimo bancário. O resultado é que embora os governos não alimentem bolhas imobiliárias e financeiras através de empréstimos ou da criação de dinheiro pelo banco central, eles ajudam a inflacionar preços de activos ao garantir que os empréstimos hipotecários e as rendas não tributadas paguem hipotecas mais elevadas.

    Para tornar as coisas pior, os governos devem completar a perda da receita fiscal sobre a propriedade pela tributação de salários e lucros, ou pelas vendas via Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA). Estes impostos aumentam o custo de vida e de fazer negócio na economia, pela elevação do preço de oferta do trabalho e do capital tangível e pela elevação dos preços de venda no montante do imposto de consumo. Assim, o que inflaciona preços de activos é o favoritismo fiscal para a alavancagem de dívida, não a criação de dinheiro pelo banco central.

    Isto significa que se as economias tiverem de ser mais competitivas, elas precisam de minimizar o grau em que os preços da habitação, educação e serviços de utilidade pública são alavancados por dívida e portanto forjar encargos de juros dentro dos seus preços. Ao longo de mais de dois séculos, economistas instaram a tributar rendimento "não ganho" que não tivesse contrapartida em custos reais de produção ("renda económica") e a manter monopólios naturais no domínio público ou pelo menos a regular os seus preços para os manter alinhados com os custos de produção tecnologicamente necessários.

    Explicar esta lógica era que o tratava a economia política clássica do livre mercado – e que não está mais a ser ensinada nos curricula académicos de hoje dirigidos pelo travestismo financeirizado da ideologia do "mercado livre" actual. O primeiro acto dos Chicago Boys no Chile depois de a junta militar de Pinochet tomar o poder em 1973, por exemplo, foi encerrar todos os departamentos de teoria económica do país, excepto na Universidade Católica onde monetaristas da Escola de Chicago dominavam. O ensino da teoria económica tornou-se um exercício de censura e lavagem cerebral, não um esforço científico ou empírico. A economia do Chile tornou-se "livre" para ser saqueada no resto da década de 1970, com quase todos os fundos de pensões sendo esvaziados quando companhias iam à falência pelo lucro.

    Os romancistas franceses Honoré de Balzac (Le Père Goriot) e Émile Zola (L'Argent) entenderam a dimensão disfuncional da procura de riqueza melhor do que os manuais de teoria económica de hoje. E a maior parte das pessoas de hoje intuitivamente sentem que a banca e a alta finança se tornou predatória. Bill Blac (da UMKC) descreveu o "controle de fraude" como uma combinação de contabilidade tortuosa, compra de políticos, calúnia de quem quer que revele a fraude e apoio a economistas de "livre mercado" para assegurar ao público de que Wall Street regular-se-á a si própria sem qualquer necessidade de supervisão regulamentar. Mas isto não era politicamente correcto dizer até que George Ackerlof ganhou o Prémio Nobel da Economia de 2001 em grande medida pelo seu artigo de 1993 com Paul Romer sobre "Saqueio: O submundo económico da bancarrota pelo lucro" ("Looting: The Economic Underworld of Bankruptcy for Profit"). A sua tese era cristalina: "A bancarrota pelo lucro ocorrerá se má contabilidade, regulação laxista ou penalidades baixas por abuso derem aos proprietários um incentivo para obterem mais do que as suas firmas valem e então incumprirem as suas obrigações devedoras. A bancarrota pela obtenção de lucro ocorre mais habitualmente quando um governo garante obrigações de dívida de uma firma".

    Os manuais de teoria económica tratam isto como uma anomalia – como se não devesse existir e, portanto, possa ser ignorada como uma falha acidental no sistema, não a sua intenção, foco e na verdade a sua própria essência. Nenhum manual explica como foram feitas as fortunas mais recentes através da apropriação (grabbing) das poupanças de outras pessoas – poupanças de fundos de pensões e especialmente aquelas de instituições financeiras rivais. Mas a corrupção da Arthur Andersen pela Enron revelou-se sintomática das Cinco Grandes (Big Five) firmas de contabilidade, seguida pelas agências de notação financeira (rating) quando todas deram notações de crédito AAA para aquilo que se revelou serem hipotecas subprime tóxicas. Os textos de teoria económica nem mesmo explicam (ou defendem a ideia) de que o modo de ficar rico é tomar dinheiro emprestado para comprar uma propriedade que está a subir de preço – e porquê a inflação de preços de activos alavancados pela dívida devem necessariamente entrar em colapso numa onda de falências.

    O plano de negócios do sector financeiro é impor por toda a Europa o que o Banco Central Europeu e seus parceiros das "troikas" estão a fazer à Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha. Eles dizem: "Dêem-nos vossos portos e vossa terra, os vossos sítios turísticos e vossos sistemas de águas e esgotos. Vamos colocar portagens nestas privatizações para arrecadar rendas". Os compradores vão voltar-se e utilizar as receitas para pagarem aos seus banqueiros – enquanto os governos que recebem o pagamento da venda destas propriedades dão uma volta e pagam aos possuidores de títulos de obrigações, incluindo os banqueiros que possuem estes títulos como reservas.

    Actuando por conta destes banqueiros e possuidores de obrigações, os apparatchiks do banco central dizem, com efeito: "Desculpem o nosso conselho anterior para desregulamentar mercados financeiros e desonerar fiscalmente a riqueza não terem resultado melhor. Mas vocês devem assumir a responsabilidade pelas consequências das suas decisões políticas".

    Em tempos passados esta espécie de tomada de activos impondo um tributo rentista exigia um exército para impô-la. O que torna a situação de hoje tão notável é que isto é alcançado sem necessidade de intervenção militar – na medida em que as populações permanecem passivas e acreditam que o mundo funciona do modo como os bancos descrevem. A sua promessa é que a "Austeridade irá torná-lo rico", como se a auto-privação o tornasse sagrado. O corolário é que para se tornar rico – ou mesmo para manter a economia a funcionar – os bancos têm de ser salvos de assumirem uma perda. E a inferência não declarada é que os governos devem absorver a perda e passá-la aos "contribuintes".

    A realidade é que as perdas são inevitáveis quando dívidas apodrecem e conduzem uma parte vasta da economia à situação líquida negativa (dívida em excesso face aos activos). Isto é inerente à matemática do juro composto e o resultado do constante afrouxamento dos padrões de empréstimo para elevar o grau de alavancagem da dívida. Desactivar a opinião popular da percepção deste facto faz parte da "armamentização" (weaponization) da teoria económica, transformando-a numa combinação de distracção, diversão e completo logro.

    As coisas ficam ainda piores pelo lobing do sector financeiro para desonerar fiscalmente o sector das finanças, dos seguros e do imobiliário, bem como desonerar os ganhos por mais-valias em preços de activos ("capital") e os escalões mais altos de rendimento. Tomando tudo em conjunto, estas políticas dirigiram o crédito bancário para financiar uma bolha imobiliária e do mercado de acções, não para a criação de novo capital industrial, infraestruturas ou outras actividades produtivas.

    Posso entender a relutância alemã em financiar défices orçamentais de governos tais como o da Grécia que são incapazes ou não desejosos de tributar a riqueza e cujos privilegiados (insiders) controlam a despesa pública e os contratos. Isto meramente subsidiaria a evasão fiscal e a política fiscal errada com o crédito do BCE – proporcionado em última análise pelos contribuintes europeus. O problema profundo – o qual pouco tem sido discutido – é que a política fiscal da Eurozona é o oposto do que economistas clássicos definiram como mercados livres – mercados livres de rendimento não ganho, a começar pelo valor da terra oriundo do que é proporcionado pela natureza e cada vez mais valorizado pelos gastos em infraestruturas públicas (ex.: em serviços de transportes, águas e esgotos) e o nível geral de prosperidade. A renda económica é independente do próprio investimento ou dos custos do proprietário da terra, da habitação ou da mina. O que torna isto um almoço grátis é que, por definição, ele não tem contrapartida nos desembolsos do próprio beneficiário – excepto para financiar a compra de um privilégio ou activo com extracção de renda.

    Ao invés da tributação progressiva da terra, dos recursos naturais e do "rendimento não ganho" (renda económica), o sistema fiscal subsidia a criação de dívida e promove a inflação do preço de activos ao favorecer ganhos de preços por dívida alavancada e tornar os pagamentos de juros isentos de tributos. Isto significa que a reforma fiscal é necessária para avançar com a reforma financeira. O problema com a Grécia não é meramente a sua evasão fiscal generalizada pela camada mais rica da economia, a qual normalmente pagaria a maior parte dos impostos (como por muito tempo foi o caso nos principais países industriais). Governos estão a tributar as fontes erradas de rendimento: salários e lucros, em vez de renda.

    Sob as presentes condições, o colapso da Eurozona é inevitável

    O colapso económico da Eurozona não é acidental. Os lobistas bancários que capturaram a política financeira e fiscal do continente plantaram as raízes dos problemas da dívida da Grécia, Irlanda, Espanha, Itália e Portugal no momento da criação do euro,

    1. ao não permitir à União Europeia criar um banco central adequado para monetarizar défices governamentais. Isto obriga governos a tomarem empréstimos de bancos a juros para criar um crédito que os bancos centrais públicos poderiam fazer muito facilmente nos seus próprios teclados de computador. Os credores utilizam a necessidade do governo para rolar (roll over) a dívida pública como uma alavanca para impor austeridade, eufemizada como "confiança". Ao invés de estimular confiança, a subida das taxas de juro e as crises políticas estimulam fugas de capitais e corridas bancárias (ex.: Grécia e Espanha). 2.

    2. ao forçar governos a minimizarem estes défices para apenas 3% do PIB – demasiado baixo para estimular a recuperação face à deflação da dívida de hoje.

    3. ao promover uma mudança fiscal anti-progressisva afastando-a do imobiliário e das finanças (e em geral dos escalões mais altos de rendimento) para salários e lucros. Isto eleva o custo de vida e de fazer negócio – enquanto impostos mais baixo sobre a propriedade deixam mais renda a ser capitalizada em empréstimos bancários. 4.

    4. ao desonerar fiscalmente ganhos de capital e considerar pagamentos de juros como fiscalmente dedutíveis. Isto encoraja a alavancagem de dívida para fazer aumentar os preços da habitação e outros activos. Desviar poupanças para a especulação torna as economias rentistas menos competitivas, e também menos justas. 5.

    5. ao afrouxar regulamentações bancárias para permitir que empréstimos bancários improdutivos inchem preços de activos ao invés de financiar novos meios de produção. Uma corrida para a base comutou o centro financeiro para Londres, onde a desregulamentação levou a uma competição plena de irresponsabilidade (ex: a derrocada do Icesave), enquanto nos Estados Unidos a fraude financeira foi efectivamente descriminalizada. 6.

    6. ao salvar bancos e possuidores de títulos quando chegou o momento de finalmente os governos criarem nova dívida em resposta à crise financeira. Ao invés de aumentar a despesa social ou reduzir a dívida e empréstimos podres, os governos (por pressão do BCE) assumiram as dívidas podres nos balanços públicos, deixando o encargo da dívida no lugar. Isto exacerba a deflação da dívida, contraindo ainda mais as economias, reembolsando os 1% a custas do empobrecimento dos 99%. Isto coloca o sector financeiro não só contra o trabalho como também contra a economia produtiva em geral.

    As instituições financeiras tornaram-se mais extractivas do que produtivas, não só directamente como credores e administradores do dinheiro mas também como lobistas por regras fiscais que subsidiam dívida ao invés do investimento directo. Uma vez iniciado, o encargo da dívida cresce exponencialmente até um ponto em que contrai a capacidade da economia para pagar e investir produtivamente, provocando incumprimentos e execuções. A resposta política dos bancos é insistir em que os governos substituam empréstimos podres do sector privado por dívida pública.

    Isto significa criar dinheiro só para beneficiar os bancos e outros credores, não para ajudar a economia produtiva não financeira. Quase sem que os eleitores percebam, o papel tradicional do governo foi invertido para servir credores, não a economia "real". Em princípio (pelo menos tal como é entendido popularmente), supõe-se que bancos centrais gastem para promover crescimento económico e pleno emprego, não para ganhar retornos financeiros carregando economias com dívida. Mas desde 2008 a Reserva Federal dos EUA quis inchar outra vez a bolha financeira, não estimular a economia "real". Aos governos da UE, tendo as suas mãos monetárias amarradas enquanto os bancos comerciais inchavam os preços dos activos muito para além da capacidade dos devedores pagarem, é-lhes agora dito para assumir dívidas podres nos suas contas (ex.: Irlanda, Grécia, Portugal e Espanha) e extorquir bastante receita fiscal adicional a fim de pagar juros aos felizes possuidores de títulos que obtiveram "dinheiro por lixo" ("cash for trash"). A ficção que opera aqui é que austeridade pode extorquir mais dinheiro, ao invés de piorar o défice. O ultraje moral é que os 99% devem ser tributados para fazer os 1% íntegros – na sua fatia de riqueza, a qual duplicou durante a bolha financeira, como se esta estivesse construída dentro da estrutura moral da própria natureza! Isto é ultrajante.

    A magnitude impagavelmente elevada das dívidas não é acidental e não pode ser sanada meramente por reformas marginais sem cancelamento do encargo da dívida. Não é possível preservar a actual estrutura financeira e deixar o encargo da dívida no seu lugar. Isto significa que os salvamentos bancários são em vão – excepto para permitir aos especuladores existentes, depositantes e investidores apanharem o seu dinheiro e fugirem. Em contraste com a história contada como cobertura política de que salvá-los "restaurará a confiança", banqueiros estão a utilizar subsídios do banco central para abandonarem o navio económico. Analistas financeiros refinados sabem que no fim o encargo da dívida deve tornar-se incobrável. Esta é a realidade que os bancos desejam expurgar do curriculum académico e, ainda mais importante, da consciência pública – porque mostra que em última análise os salvamentos serão vãos.

    A ilusão de restaurar a estabilidade pode ser sustentada só pela criação de nova dívida governamental e salvamentos para alimentar o crescimento exponencial do encargo da dívida. O BCE está a proporcionar bastante liquidez a bancos para emprestarem a governos devedores o suficiente para mantê-los a pagar seus detentores de títulos e salvar banqueiros. Isto cria uma câmara de eco financeira. Bancos financiam governos, os quais financiam os bancos. A Reserva Federal dos EUA abriu o caminho ao inundar os mercados de dinheiro com liquidez de modo a que banqueiros pudessem emprestar a devedores hipotecários o suficiente para pagarem suas dívidas vencidas, mesmo para a propriedade em situação líquida negativa (com hipotecas que excedem o preço de mercado).

    O objectivo é manter viva a ilusão de que dívidas podem ser pagas ao ajudar a economia a "tomar emprestada a sua saída da dívida". Enquanto isso, a deflação da dívida impede a economia de "ganhar a sua saída da dívida". Em economias infestadas de austeridade, a concessão de empréstimo dificilmente pode ser produtiva, porque há pouco motivo para investir quando as vendas caem, as lojas de retalho fecham e mais devedores entram em incumprimento.

    Portanto parece absurdo pensar que propagandistas da banca possam progredir muito com a sua afirmação de que o sistema financeiro entrará em colapso a menos que governos os salvem. O que eles realmente querem é simplesmente salvar seus accionistas e possuidores de títulos de perderem os ganhos descomunais que obtiveram ao longo da última década. Cenários assustadores são pintados acerca de como liquidar reservas bancárias porá em perigo poupanças de depositantes, porque poupanças de uma parte são a dívida da outra afinal de contas. Assim, os 1% devem ser salvos como se isto fosse para o bem dos 99% – as proverbiais viúvas e órfãos e, especialmente, aposentados e seus fundos de pensões, todos os quais são conceptualizados como a viverem de depósitos investidos em títulos bancários e fundos de risco (hedge funds).

    O que é preciso reconhecer é que mesmo se os governos financiarem mais gastos deficitários a este ponto, é difícil ver como isto pode ascender a uma magnitude suficiente para compensar o impacto da deflação da dívida – isto é, os juros e amortizações para arcar com dívidas do passado, cujos pagamentos deixam menos rendimento disponível para gastar em bens e serviços.

    O encargo das poupanças é o problema, porque é sinónimo de encargo de dívida

    É tempo de perguntar se é desejável que as economias poupem, pelo menos que poupem de acordo com as linhas actuais – mesmo poupar para aposentadoria. O problema é que poupanças tendem a concentrar riqueza no topo da pirâmide económica e fazem isto parasitariamente quando são emprestadas para se tornarem dívidas de outras partes. Reestruturar o sistema financeiro é especialmente importante para financiar pensões e a Segurança Social, para reorganizá-los mais de acordo com as linhas do sistema alemão do pagamento imediato (pay-as-you-go) a invés daquele financeirizado por fazer dinheiro através do empréstimo e especulação como nos Estados Unidos.

    O problema com o nosso sistema actual é que quase todas as poupanças financeiras de hoje são emprestadas, ao invés de tomarem a forma de novo investimento directo para aumentar os meios de produção ou elevar padrões de vida. A maior parte do investimento corporativo é feito com ganhos retidos. Empréstimos bancários afectam o sector corporativo principalmente pela alimentação de aquisições ( takeovers) e aquisições alavancadas ( leveraged buyouts) de companhias já existentes – e maduras para o despojamento de activos.

    Este não é o quadro feliz pintado pelos manuais de teoria económica, com bancos a emprestarem poupanças para fábricas com chaminés e fumo a delas saírem e trabalhadores a andarem com as suas marmitas do almoço, presumivelmente para receberem os cheques de pagamento. Tais diagramas enganosos (pelo menos nos manuais americanos) são destinados a lavar o cérebro de estudantes levando-os a acreditar que as finanças desempenham um inerente papel simbiótico com a indústria e a economia em geral, ao invés de ser uma intrusão externa – algo que se assemelha mais ao relacionamento entre gafanhotos e quinta agrícola do que a um sistema mutuamente benéfico. Quando devedores pagam aos seus banqueiros, eles têm menos para gastar na economia real da produção e do consumo. E quando banqueiros fazem os empréstimos que extraem este rendimento, o crédito não é o que as pessoas pouparam, mas sim o que os banqueiros criaram nos seus próprios teclados. "Empréstimos criam depósitos", não ao contrário. E a vasta maioria destes empréstimos são para comprar activos já existentes: para transferir a propriedade de imóveis, acções e títulos com crédito, elevando os seus preços no processo – enquanto deflacionam a "economia real". Eis porque a inflação de preços de activos encontra o seu complemento natural na deflação da dívida da economia em geral.

    O que os manuais deveriam explicar é que sob o sistema financeiro de hoje, quanto mais uma economia poupa, mais ela deve. Isto não seria um problema se as poupanças fossem emprestadas produtivamente, de maneira que permitissem ao tomador do empréstimo ganhar o rendimento para reembolsar a dívida com o seu juro. Mas o plano de negócios do sistema bancário é convencer os tomadores de empréstimos de que podem pagar dívidas pela compra de activos cujo preço está a ser elevado pelo aumento exponencial do crédito bancário. A ideia é emprestar mais contra todo o activo e fluxo de rendimento, exigindo entradas mais pequenas e amortização mais lenta do saldo em dívida. O truque é convencer tomadores de empréstimos que estão a ficar mais ricos na medida em que os preços das casas, acções e títulos estão a subir mais depressa do que a dívida está a aumentar.

    Esta ascensão de preços de activos aumenta o rácio da propriedade em relação ao nível salarial do trabalho. E quando os preços afundam, as dívidas permanecem intactas. Isto é o que a ortodoxia económica e seus manuais deixam de fora da história. Mas é o modelo paradigmático das bolhas financeiras.

    O que é necessário – depois de deixar a bolha actual explodir e com isso liquidar o encargo das dívidas podres – é impedir a recorrência da Economia da Bolha, através da reestruturação do sistema financeiro de acordo com linhas mais produtivas. Mas os bancos estão a combater com unhas e dentes contra uma tal reestruturação, porque ela significa rejeitar a época Thatcher-Reagan do neoliberalismo da Escola de Chicago patrocinado pelos bancos a expensas da economia como um todo.

    De modo mais imediato, este entendimento da dinâmica da dívida sugere uma necessidade de os governos proporcionarem uma "opção pública" para a poupança bem como para a criação de dinheiro, cartões de crédito e outra infraestrutura financeira que na verdade é necessária para a economia quotidiana funcionar eficientemente. O objectivo deveria ser promover a formação de capital tangível e minimizar o custo de vida e de fazer negócio, não o crédito improdutivo baseado na inflação do preços de activos e em bolhas imobiliárias financeirizadas, assim como em bolhas do mercado do mercado de acções.

    As políticas da Quantitative Easing rebaixaram as taxas de juro para apenas 1% nos Estados Unidos e Grã-Bretanha. Isto levou planos de pensão e companhias de seguros a procurarem desesperadamente taxas de retorno mais elevadas – e eles assim o fizeram através de jogos arriscados em derivativos. Tipicamente estes têm perdido dinheiro, não dando os ganhos esperados, pois vivaços de Wall Street impingiram seus clientes com maus swaps de taxas de juro e outros negócios com mau resultado. A desculpa habitual é que "Ninguém podia ter antecipado estes problemas. Ninguém podia ter previsto o crash". Mas grandes porções dos fundos de pensões e sector dos seguros foram deixados com situação líquida negativa – enquanto os seus administradores pagaram a si próprios enormes bónus e os seus accionistas receberam enormes dividendos durante a corrida.

    Como a inflação do preço de activos leva à deflação da dívida

    As dívidas devem ser pagas com rendimentos ganhos algures. E como o volume da dívida aumenta, os pagamentos de juros e outros encargos desvia rendimento pessoal e corporativo afastando-o do gasto em bens e serviços. (Estes pagamentos também reduzem receitas fiscais, porque foi definido os juros serem uma despesa fiscalmente dedutível). Os mercados contraem-se, o investimento e o emprego desaceleram e os devedores têm menos capacidade para pagar o seu serviço da dívida (ou os impostos). A deflação da dívida acontece, juntamente com um esmagamento fiscal – e isto é considerado uma crise.

    O que é exactamente esta crise? Da perspectiva privilegiada dos credores de riqueza no topo da pirâmide económica, o problema é simplesmente de como os 1% mais ricos da população – os quais duplicaram sua fatia de riqueza ao longo da última geração – podem evitar ter de abandonar os seus ganhos notáveis. Estes ganhos foram obtidos devido ao endividamento dos 99% da base e recebendo a fatia do leão dos ganhos de preços de activos alavancados por dívida. Para evitar a recessão aparentemente normal destes ganhos, os governos e a população como um todo deve suportar a perda. Famílias devem perder, negócios devem ir abaixo, governos locais e nacional podem entrar em colapso e sociedades devem sofrer níveis salariais mais baixos, de modo a que bancos e outros credores não percam nem um cêntimo.

    O narcisismo da riqueza induz os credores a pretenderem que a fluorescência da Bolha da Economia era normal, não uma distorção. Os ricos e as suas instituições financeiras querem duplicar outra vez a sua fatia do rendimento e da propriedade, e depois continuar a aumentar mesmo até ao ponto em que o resto da sociedade esteja mergulhada na miséria, o trabalho emigre, as taxas de natalidade caiam e a economia morra.

    Este é o resultado do "crescimento" do sistema financeiro a aumentar preços de activos pela alavancagem da dívida. Isto não é realmente novidade no mundo. Isaías [NT 1] descreveu credores e latifundiários que obtinham casa a casa e terreno a terreno até que já não havia espaço restante para o povo na terra.

    Atar as mãos do governo privando-o de um banco central para criar dinheiro

    A Era Progressista anterior à I Guerra Mundial, e mesmo a democracia económica após a II Guerra, imaginavam uma economia mista público/privada na qual os governos proporcionariam infraestrutura básica numa base subsidiada e regulava mercados para orientar poupanças e dinheiro fresco ou criação de crédito de acordo com linhas produtivas. Mas o Artigo 123 do Tratado de Lisboa assinala este papel a bancos comerciais – incluindo o de financiar défices orçamentais do governo, ao impedir bancos centrais de emprestarem a governos.

    Este constrangimento impede governos de monetizarem o gasto necessário para puxarem as economias de hoje para fora da depressão pós 2008. Ele impõe uma mudança da criação pública de dinheiro para a do crédito da banca comercial – e como foi observado acima, este crédito bancário assume a forma de irresponsavelmente inchar preços de activos e fazer soçobrar o crédito. Nesta nova abordagem "neoliberal", o papel do governo não é fornecer a economia com dinheiro, mas deixa isto aos bancos – e então actuar como fiadores (guarantors) da dívida mesmo quando os bancos emprestam mais do que os seus devedores são capazes de pagar.

    Os lobistas da banca defendem estas algemas monetárias com a afirmação obscena e historicamente falsa de que o financiamento público é inerentemente inflacionário, mesmo hiper-inflacionário. A implicação é que bancos comerciais são mais responsáveis do que bancos centrais e que a sua criação de crédito nos seus próprios teclados é menos inflacionista do que quando os governos fazem isto para despesas sociais ou investimento em infraestruturas. Porém os bancos comerciais alimentaram a mais rápida e maior inflação de preços de activos na história! Ao afrouxarem os termos do crédito hipotecário e mesmo obtendo garantias públicas para empréstimos irresponsáveis – e nos Estados Unidos, fazem lobing para descriminalizar a fraude financeira ou pelo menos para desregulamentá-la e para insistir na nomeação de responsáveis legais que se recusam a processá-los – obrigaram compradores de casa a pagar mais por habitação alavancada por dívida e os investidores a pagarem mais por activos que vão desde edifícios de escritórios até acções e títulos, elevando dessa forma o preço de aquisição de um rendimento para a aposentação ou, para fundos de pensões, de pagar uma pensão.

    O objectivo deste jogo financeiro é transferir o excedente económico para as mãos de uma neo-oligarquia emergente composta por banqueiros, possuidores de títulos e outros credores. A sua estratégia é emprestar contra o imobiliário e activos corporativos e fluxos de rendimento, enquanto fazem lobing para fazer com que os códigos fiscais sirvam interesses rentistas ao favorecer a extracção de renda ao invés de investimento novo. A especulação com ganhos nos preços dos activos obtém preferência fiscal em relação ao financiamento produtivo. Os tomadores dos empréstimos são capazes de reembolsar o seu empréstimo com juros principalmente pela contracção de mais empréstimos contra o imobiliário, acções ou títulos cujo preço está a ser inflacionado pela criação de crédito da banca comercial.

    Enquanto isso, a economia como um todo perde quando o produto e o emprego afundam – enquanto sobem os preços para o consumidor de bens e serviços. Esta é a fase pós crash do ciclo da dívida. Assim, exactamente como eles receberam o rendimento que foi transmutado em pagamentos de juros sobre empréstimos bancários durante a fase de ascensão, eles arrestam propriedade durante a fase de declínio. A crise decorrente também se torna uma oportunidade para credores talharem activos públicos, em programas de privatização ditados pelo FMI, Banco Mundial e burocracias da UE a actuarem por conta dos credores globais.

    Sob tais condições o grande problema é saber como a economia pode evitar a contracção, se o serviço da dívida está a retirar mais receita do que o défice do sector público está a proporcionar para o sector privado. Mas nenhum governo calcula esta escolha (tradeoff) entre a retirada de rendimento da produção e dos mercados de consumo em comparação com o défice fiscal necessário para restaurar o poder de compra geral que está a ser drenado. Os interesses financeiros consideram qualquer tentativa de análise a sugerir que o seu comportamento é extractivo ao invés de produtivo como um ataque potencial e mesmo uma "guerra de classe". Lobistas bancários preferem popularizar o mito de que as economias podem ficar ricas com o aumento dos preços do imobiliário, das acções e dos títulos a crédito mais rápido do que o crescimento da dívida – como se pagar juros não contraísse o mercado para bens e serviços e, portanto, o emprego.

    A falha em tratar esta dinâmica da dívida – a tendência do crédito bancário para inchar preços de activos e dos juros para drenarem poder de compra da economia – é a razão principal porque investidores globais, bem como os gregos e outros eleitores perderam a fé na Eurozona. Ela foi sequestrada por planeadores centrais retirados do sector financeiro. Eles têm-se mostrado incompetentes no melhor dos casos e, no pior, deliberadamente enganosos quando impedem bancos centrais de criarem dinheiro para emprestarem a governos – ao atribuírem as culpas da hiper-inflação alemã à impressão de dinheiro pelo Reichsbank para gastos internos ao invés da sua tentativa de pagar dívidas com divisas estrangeiras ao exterior.

    Levar a divisa ao colapso pela tentativa de pagar credores estrangeiros é o que países do Terceiro Mundo foram obrigados a fazer durante muitas década sob a tutela do FMI. Isto é o destino que confronta a Grécia se não houver anulação da dívida e o país reverter ao dracma. Isto tornaria dívidas em euros ou outra moeda estrangeira mais caros para pagar em moeda interna, elevando preços de importação proporcionalmente – pouco importando o ritmo da criação de moeda interna ou os défices do governo.

    Porquê os ganhos de produtividade dos últimos 50 anos não nos tornaram todos ricos?

    A austeridade de hoje não é o resultado de tecnologia, rendimentos decrescentes ou esgotamento de recursos. O que impede ganhos de produtividade de serem traduzidos em padrões de vida ascendentes é o sector financeiro anexar dívida aos activos e fluxos de rendimento da economia a uma taxa em expansão exponencial. Isto desvia a renda da terra, a renda de recursos, lucros industriais, rendimento pessoal disponível e receita fiscal para um fluxo de juros a pagar a banqueiros e portadores de títulos – cujos empréstimos elevam preços de activos, de modo que comprar uma casa, por exemplo, exige afundar ainda mais em dívida.

    O plano de negócios dos banqueiros é criar crédito até ao ponto em que todas as receitas disponíveis "livres" estejam comprometidas no pagamento de juros. O objectivo não é ajudar economias a crescerem ou financiar nova formação de capital. Isso é incidental para o objectivo de capitalizar renda, lucro e rendimento pessoal disponível para dentro de empréstimos bancários. O problema é que isto é destrutivo para a economia como um todo e, portanto, para a própria viabilidade do sistema bancário. Sugar financeiramente do excedente leva a arrestos de propriedades, incluindo privatizações de empresas públicas e infraestruturas a crédito, permitindo aos seus compradores evitar pagarem impostos, graças à dedutibilidade fiscal de pagamentos de juros observada acima. A partir de então, aos serviços gratuitos ou subsidiados devem ser impostas portagens para extracção de rendas.

    Nunca desde a Idade Média e a colonização do Novo Mundo, da África e da Ásia o mundo assistiu a uma guerra económica tão agressiva. O plano concebido em 2011 para a Grécia tornar-se uma pagadora de tributos confronta os eleitores com uma condição para permanecer como parte da Eurozona que ninguém esperava há uma década atrás: substituir a democracia por uma oligarquia rentista administrada por tecnocratas financeiros. O governo é para servir banqueiros e possuidores de títulos pela actuação como seu colector de dívida.

    A conquista de hoje, portanto, é financeira e não militar. E o que é tão notável é que está a ser travada na arena ideológica, como se fosse tudo para o bem! A ilusão de que ela abre caminho para melhor crescimento envolve o expurgo da memória da teoria económica clássica. Rentistas reconhecem que a maior defesa contra o seu ataque é restaurar a distinção clássica entre rendimento ganho e rendimento não ganho, e entre crédito produtivo e improdutivo. Estas são as ferramentas analíticas mais eficazes para guiar a reforma fiscal e financeira e a economia equilibrada entre público/privado imaginada na Era Progressista a fim de conter os interesses especiais e suas garras privatizadoras.

    Os banqueiros são os novos planeadores centrais – e o seu plano é a austeridade

    Quando a Grécia, Itália e Espanha aderiram à Eurozona, muitos eleitores esperavam que além do objectivo óbvio de acabar com muitos séculos de guerra, o projecto europeu criaria uma economia mais justa pelo saneamento da corrupção política local e travagem da evasão fiscal notoriamente generalizada por parte dos ricos. Tenho ouvido italianos a dizerem que um controle mais activo da UE deveria tê-los salvo de Berlusconi, ao passo que em Espanha os bascos esperavam que o pan-europeísmo tornaria as suas tensões regionais com o governo nacional uma coisa do passado.

    Tal optimismo não era justificado, porque a constituição da UE não proporciona limpeza da corrupção ou cobrança eficiente de impostos – nem mesmo um código fiscal uniforme. Mesmo assim, poucos eleitores anteciparam que neoliberais sequestrariam a governação da UE para proteger banqueiros de perdas, a expensas públicas com um aprofundamento da austeridade sendo a "solução" para uma década de empréstimos irresponsáveis dos bancos.

    Porque é que os eleitores deveriam aprovar uma União Europeia assim estruturada? Se ela não pode limpar corrupção local e promover rendimento justo e tributação sobre a propriedade, e se não pode criar um banco central ajudar a retirar economias da depressão, então qual é o seu apelo? O que é que uma Europa unida tem para oferecer aos consumidores ou aos negócios se ela sujeita o continente à austeridade financeira e fiscal até países inteiros tais como a Irlanda?

    A Grécia e outros países da "orla Sul" não estão a rejeitar a sua identidade europeia como tal. Estão a rejeitar a austeridade. A Eurozona está em perigo de romper porque se tornou um meio de banqueiros fazerem planeamento central, ou pelo menos por sua conta. Neoliberais acusam o planeamento governamental de ser ineficiente, mas o planeamento central por banqueiros ameaça resolver a crise actual pela imposição da depressão. Isto é o que a Eurozona acabou por significar quando os 1% no topo da pirâmide económica procuram aumentar o seu poder sobre uma força de trabalho, indústria e governos cada vez mais endividados.

    Parece inevitável que a Europa continental acabe por alterar a política do seu banco central para monetizar défices orçamentais de acordo com as linhas que a Grã-Bretanha, os Estados Unidos, a Coreia e outras economias industriais têm estado a praticar. Mas mesmo assim, não é desejável imprimir dinheiro simplesmente para financiar défices orçamentais que decorrem da não tributação da terra, de monopólios, das finanças e outros actividades extractivas de renda. Também é insensato criar bastante dinheiro para emprestar ao público para pagar o encargo de uma dívida insolvente pela contracção de mais empréstimo.

    Um modelo a ser evitado é a política do Reserva Federal dos EUA de levar as hipotecas lixo dos bancos para dentro do seu balanço – sem reduzir as dívidas dos proprietários de casas em situação líquida negativa. Quando o financiamento de salvação do governo excede o valor líquido das reservas da banca, então o governo tornou-se efectivamente o seu proprietário. Os accionistas são eliminados, o que dá ao governo uma oportunidade para possuir e operar o sistema financeiro como uma opção pública.

    Um recomeço: Pensar acerca do impensável

    A austeridade financeira pode ser evitada através do corte da sua raiz principal: dívidas que foram criados pela (1) não tributação do "almoço grátis" da renda económica da terra, recursos minerais e monopólios para capitalizá-la em empréstimos bancários; e (2) não tributação da riqueza herdada, dos escalões mais altos de rendimento e dos ganhos de capital. A "libertação" do rendimento rentista da tributação permitiu aos bancos capitalizá-la em empréstimos maiores para aumentar preços da propriedade, ao passo que cortes fiscais levaram a défices do governo tão grandes quanto uma guerra costumava provocar. Os défices orçamentais resultantes são utilizados como uma oportunidade para credores exigirem a privatização da infraestrutura pública.

    Recuperar confiança fiscal sobre a terra e outros activos que proporcionam renda – e recuperar infraestrutura básica para o domínio público ou, pelo menos, regular seus preços para alinhá-los com os custos de produção tecnologicamente necessários – é tornado problemático pelo facto de que a sua renda já ter sido comprometida pelos bancos como serviço da dívida. Assim, a política de livre mercado de hoje implica incumprimentos, reduções de dívida e mais profunda insolvência da banca. O raio de esperança é que esta situação abre o caminho para fazer do sistema financeiro um serviço de utilidade pública tal como originalmente pretendido!

    Os benefícios que a Alemanha recebeu da sua Reforma Monetária de 1947 proporcionam uma lição objectiva. Permitir à Alemanha começar livre de dívida permitiu à sua indústria começar sem encargos financeiros, acelerando a sua recuperação económica – e servir de baluarte contra o comunismo. Foi fácil para os Aliados anular dívidas alemãs em 1947 porque eram devidas principalmente a antigos nazis. É mais difícil cancelar dívidas devidas aos que hoje têm direitos adquiridos (vested interests), especialmente a fundos de pensões e poupanças populares. Eis como o profundo alavancamento de dívida se tornou entrelaçado com a economia da produção-e-consumo para tornar um Recomeço (Clean Slate) mais politicamente radical hoje do que um século atrás.

    Todos os países emergiram da II Guerra Mundial com relativamente pouca dívida do sector privado. Porém cada recuperação desde aquele tempo começou de um nível mais elevado de dívida. Isto tem actuado como um travão, fazendo cada nova recuperação mais fraca do que a anterior – como a tentar conduzir um carro com o travão cada vez mais pressionado e mais rente ao chão.

    O que torna o cancelamento de dívida politicamente problemático é que ele implica cancelar poupanças num lado do balanço. A dívida de uma parte é a poupança de outra. Mais especificamente, as dívidas dos 99% são as poupanças dos 1% – e apesar dos enfeites democráticos de hoje, os 1% controlam o governo. Bancos e outros credores agora estão muito mais fortemente posicionados para se oporem a reduções das suas pretensões (claims) sobre a economia não financeira. E eles estão desejosos de impor a depressão na Europa a fim de colectá-las plenamente. Mas em última análise devem perder quando economias caem na depressão. Isto é que é tão auto-destrutivo na sua posição. Reservas bancárias são liquidadas quando o fardo da dívida cede e as dívidas ficam por pagar.

    Isto não precisa ser uma tragédia para a sociedade como um todo. Alguém deve arcar com a perda e é preferível para o sector financeiro renunciar aos seus enormes ganhos recentes do que para a economia parar de labutar. As economias podem recuperar quando os bancos reabrirem sob administração pública nos seus mesmo gabinetes físicos, ao passo que o governo deixa os depositantes assegurados com um mínimo de fundos operacionais.

    Assim como o seu Milagre Económico começou com um cancelamento de dívida, um Euro viável começaria melhor com um Recomeço (Clean Slate) semelhante para ressuscitar hoje a economia. Tal como em 1947, o governo poderia reembolsar depositantes para fundos operacionais básicos. Ao tornar a sua economia livre de dívida como foi o caso após a II Guerra Mundial, a Europa pode tornar a criar o boom de setenta anos atrás. O papel de um Recomeço, afinal de contas, é restaurar a normalidade do status quo ante. Ela não distorce tanto pois revertem recentes distorções financeiras. Sob este aspecto é mais conservadora do que radical.

    Um Recomeço tem o efeito positivo de eliminar a explosiva alavancagem de dívida que conduziu governos europeus, negócios, imobiliário e famílias ao seu buraco actual. "Desalavancagem" – pagar à vista uma dívida a partir do rendimento actual – teria um efeito semelhante à poupança keynesiana na forma de "entesouramento". Impediria o rendimento de ser gasto na produção actual, exacerbando com isso a deflação da dívida e a depressão. Uma redução organizada de dívidas é menos destruidor do que não cancelá-las. Apesar dos uivos do sector financeiro de que liquidá-las é desestabilizar (um eufemismo para fazê-los assumir uma perda numa sistema financeiro que foi mal estruturado desde o princípio), a realidade é que deixar estas dívidas na contabilidade é ainda mais desestabilizador – porque o encargo da dívida simplesmente não pode ser pago. Tentar hoje manter dívidas do sector público e privado na contabilidade provocará perdas ainda mais drásticas e polarização económica entre credores e devedores.

    Um realinhamento político europeu?

    Bancos repetem a afirmação censórea de Margaret Thatcher de que "Não há alternativa" ao seu plano de negócios de anexar dívida ao todo o excedente económico. O objectivo – conclusão lógica da inexorável matemática do juro composto – é para que todo fluxo de caixa corporativo, renda imobiliária além dos custos de equilíbrio e rendimento pessoal disponível além da subsistência básica seja pago como juros. Quando estas dívidas se acumulam para além da capacidade de serem pagas, a "troika" do BCE, UE e FMI insistem em que o trabalho deve reduzir o seu consumo e abandonar direitos e privilégios que conquistou ao longo do século passado. Os consumidores devem ser tributados mais pesadamente e os gastos públicos devem ser reduzidos para extorquir mais excedente fiscal para pagar aos banqueiros e possuidores de títulos. Em suma, a Europa deve ser sujeita à mesma espécie de austeridade que arruinou devedores latino-americanos e outros devedores do Terceiro Mundo durante tantas décadas perdidas.

    Esta criação de privilégios rentistas de tipo feudal reverteria muitos séculos de reforma. É uma versão financeira do apresamento militar que tomava a terra e impunha tributos há um milénio atrás.

    Há uma alternativa, naturalmente, a Europa não precisa empobrecer-se. Ela pode criar um banco central real e uma "opção pública" na banca. Pode renovar os séculos de reformas de mercado livre para tributar terra e direitos do subsolo, monopólios naturais e privilégios especiais ou retorná-los para o domínio público pela desprivatização ao invés de deixar esta extracção de renda "gratuita" ser capitalizada em empréstimos bancários. A Europa colocou um sistema tributário financeiro em vigor e absorveu mesmo pensões e poupanças populares neste sistema.

    A guerra financeira está a afundar a Europa sem que a maior parte das populações perceba mesmo que está a ser travada contra ela e também contra a indústria. Acima de tudo, os interesses financeiros procuram desqualificar os governos, os quais são o único poder com força suficiente para tributar e impor o seu poder via regulamentação pública e um banco central com uma opção pública para proporcionar serviços monetários básicos.

    Para resistir a este ataque, os partidos políticos da Europa precisam reviver o caminho ao longo do qual a maior parte viajava antes da I Guerra Mundial. Isto exige a reintrodução da história da teoria económica clássica no curriculum académico para contrapor-se à censura que a ideologia neoliberal impôs à educação e discussão política nos media populares.

    Uma estratégia neoliberal paralela foi transformada em religião seguindo linhas não económicas de modo a impedi-la de desempenhar o papel político que teve em séculos passados, desde os Escolásticos do século XIII e à denúncia da usura de Martinho Lutero até ao socialismo cristão, encíclicas papais e naturalmente a Teologia da Libertação. Adam Smith era professor de Filosofia Moral e ao longo de grande parte do século XIX as universidades continuaram a ensinar o pensamento económico como ramo da filosofia moral. A chave comum para esta longa tradição era ligar valores éticos à ciência económica pela teoria do valor e do preço: a ideia de que pessoas ganhariam rendimento ao providenciarem um serviço produtivo para a sociedade, não simplesmente tomando-o ou pela usura, a extracção de renda ou outro rendimento injusto.

    O desafio neoliberal

    Ao rejeitarem esta teoria do valor e do preço, os advogados rentistas distorcem o foco histórico da religião. Negar que qualquer rendimento é não merecido (unearned) ou que renda económica e juros são pagamentos de transferência – definidos como rendimento não baseados em qualquer custo necessário de produção – os neoliberais substituem a filosofia moral clássica por uma caricatura de ciência favorável aos rentistas. A Contabilidade Nacional do Rendimento e do Produto de hoje omite ganhos de "capital" da inflação do preço dos activos, mas isto representa a maior parte da acumulação de riqueza da Bolha Económica. (A minha recente colecção de ensaios, The Bubble and Beyond, revê o modo como a teoria económica foi transformada num conjunto de tautologias). Mais gravemente, a falha em perceber que o volume total de dívidas não pode ser pago – e na verdade colocar isto no próprio centro da lógica económica – é como negar o aquecimento global [NT 2] .

    O termo "neoliberalismo" rapta a ideia liberal clássica de mercados livres que pretendia erguer defesas contra o privilégio especial e o rendimento não merecido. Para os economistas clássicos um mercado livre significa aquele livre de rendimentos não merecidos, definidos como renda da terra, renda de recursos naturais, renda de monopólio e renda extraída do privilégio. Os neoliberais invertem esta ideia. Tal como utilizado por eles, um mercado livre é aquele livre de impostos ou regulamentações de tais rendimentos rentistas, dando a tais receitas (e ganhos de capital) favoritismo fiscal em relação aos salários e aos lucros. As finanças são portanto livres para operarem sem peias quando governos são tratados como o inimigo, não como protectores da prosperidade comum.

    Ao libertarem mercados da regulamentação e tributação pública – isto é, pelo desmantelamento de sistemas de verificações e limitações (checks and balances) contra a exploração e almoços grátis – o neoliberalismo torna-se uma doutrina de planeamento central. O efeito é substituir o poder público para proteger o público por um poder oligárquico para oprimi-lo, desqualificando a autoridade pública para regular e tributar as finanças e seus clientes dedicados à extracção de renda. Chamar a isto "liberdade", "livre escolha" ou "mercados livre" é um exercício de duplo pensamento Orwelliano.

    Quanto a isto, o neoliberalismo é uma doutrina de poder e autocracia, uma preparação da teoria económica para a guerra financeira de hoje contra a economia como um todo. O seu programa fiscal é não tributar bancos e companhias de seguros, imóveis e monopólios. O resultado é uma guerra financeira não só contra o trabalho como também – na verdade, acima de tudo – contra a indústria e o governo, porque é ali que está o dinheiro. Ao ganhar o poder para endividar economias a velocidade crescente, o sector bancário e financeiro está a sugar recursos desviando-os para longe da economia real. O seu plano de negócio não é empregar trabalho e expandir produção, mas transferir tanto quanto possível do fluxo de receitas existente para as suas próprias mãos, capitalizando-o em pagamentos de juros.

    Tal como a democracia romana organizava a votação por "centúrias" classificadas por riqueza da terra, do mesmo modo nos Estados Unidos de hoje os votos são simplesmente comprados por dólares, vindos principalmente do sector financeiro. O resultado deve ser polarização económica rumo a uma oligarquia rentista. Tal como a classe credora de Roma reduziu o Império a uma Idade Média de subsistência e comércio por troca (barter), as dinâmicas financeiras de hoje estão a globalizar a polarização entre credores e devedores, impondo austeridade em nome de mercados livres. Tal como em Roma, a etapa final do neoliberalismo ameaça tornar-se servidão da dívida (debt peonage).

    Capitalismo financeiro versus capitalismo industrial

    Esta não é a luta prevista entre capitalismo e socialismo. Ela está a verificar-se dentro do próprio capitalismo – entre a indústria e a finança. O capital financeiro conquistou o capital industrial. Se bem que a social-democracia tenha ultrapassado a familiar guerra de classe entre patrões e trabalhadores, ela não foi capaz de enfrentar o golpe de estado financeiro contra a indústria e igualmente o trabalho. Bens de capital utilizados para finalidades produtivas no lado do activo do balanço constituem o objectivo do capital financeiro ao conceder empréstimos sobre o lado do passivo. O capital tangível tem um custo (em última análise redutível àquele do trabalho) e é limitado na oferta. A criação de crédito bancário portador de juros ("dívida de outras pessoas") é potencialmente ilimitada. Ele tornou-se portanto o almoço gratuito paradigmático.

    O que é limitada é a capacidade de pagar e é aqui que o capitalismo industrial se rende às exigências do capital financeiro. Administradores financeiros tomaram o comando da indústria para sangrá-la, não para financiar a sua expansão. Firmas industriais foram financeirizadas, transformadas em veículos para pagar juros e dividendos ou simplesmente para gastar seus ganhos em compras das próprias acções ou para comprar outras firmas ao invés de empreender novo investimento de capital. Há empresas que estão mesmo a contrair empréstimos para distribuí-los como dividendos para criar aumentos rápidos nos preços das acções – para que os seus administradores embolsem as suas opções em acções. Este comportamento levou advogados industriais a chamarem os bancos de gafanhotos (Heuschrecke) que devoram o excedente ao invés de actuarem como abelhas para financiar a formação de capital tangível.

    O caminho de menor resistência para defender a indústria e elevar padrões de vida é renovar o programa social democrático da Era Progressista de transformar a banca numa utilidade pública para proporcionar serviços financeiros básicos tais como contas correntes e transacções com cartão de crédito ao seu custo ou gratuitamente, tais como estradas e outros serviços públicos, de modo a minimizar o preço de viver e fazer negócios.

    O princípio básico que deveria guiar a política pública é muito antigo: reconhecer que qualquer encargo de dívida tende a crescer até se tornar impagavelmente alto. Para além da matemática exponencial do juro composto está a actual criação de crédito (dívida) "livre" que provém dos Estados Unidos desde que a ligação do dólar ao ouro foi cortada em 1971. A expansão resultante de dívida tende a aproximar-se do ponto em que ela absorve a renda da propriedade, o fluxo de caixa corporativo e o rendimento pessoal disponível – bem como uma proporção crescente da receita do governo.

    O capitalismo industrial imaginava um fluxo circular entre produtores e consumidores. Este era o conceito original das contas de rendimento nacional criadas por François Quesnay e os Fisiocratas. A versão de hoje trata as finanças, os seguros e o imobiliário (FIRE) como a produzirem um "serviço" e portanto como sendo parte deste fluxo circular, não como uma transferência extractiva de rendimento da mesma para uma classe rentista autónoma e cada vez mais predatória. O rendimento nacional é desviado para pagar serviço de dívida, provocando a contracção do consumo e da produção pois bancos e instituições financeiras agora desempenham o papel que os senhores da terra exerciam em tempos feudais e pós feudais.

    A resolução para as exigências de hoje dos credores deve assumir a forma ou da bancarrota e arresto ou de uma redução da dívida. Mais de um quarto do imobiliário dos EUA está agora em situação líquida negativa, pendente de confisco ou ainda pior – um longo combate por parte dos devedores hipotecários para atingirem o ponto de equilíbrio do valor líquido zero. Isto é o culminar da democratização da propriedade a crédito. Não se trata de liberdade económica mas sim de servidão da dívida – tendo de passar uma vida inteira a tentar liquidar dívidas numa situação que impõe aos devedores afundarem cada vez mais num buraco financeiro.

    A necessidade de reduções de dívida serem generalizadas, estendendo-se a todas as dívidas pessoais – e portanto reestruturando o sistema bancário – atemoriza muita gente quanto ao apoio de uma alternativa estrutural tão profunda. Mas é muito mais fácil na prática começar de novo com um Recomeço (Clean Slate), como fez a Alemanha em 1947, do que reajustar um sistema que foi concebido de forma tão torcida. Uma revisão da história mostra que tais cancelamentos de dívida foram prática normal desde 2500 AC até ao tempo de Jesus. Governantes no início da civilização e da empresa comercial no antigo Oriente Próximo proclamaram Recomeços para restaurar o status quo ante, uma cidadania livre de dívidas (cevada) pessoais. (Dívidas em "prata" comercial foram deixadas em vigor). Decretos andurarum e proclamações reais afins são encontradas ao longo de um período de aproximadamente três mil anos e foram o modelo para o Ano do Jubileu Bíblico (deror) . Ao invés de desestabilizar as economias, esta prática preservou a propriedade generalizada, preços estáveis e liberdade em relação à escravização por dívida.

    O neoliberalismo nega que a resolução do encargo instável de uma dívida deva vir de "fora" do mercado financeiro. A política da UE está a transformar "o mercado" num colete de força pela comutação de dívidas do sector privado para o balanço do governo enquanto impede governos de imprimirem dinheiro para financiar o resultante défice orçamental. Isto inverte a direcção dos últimos três séculos de reforma económica e política. É uma revolução política – ainda que talvez a mais invisível e encoberta tomada de controle (takeover) da história. Os bancos agora são capazes de criar um volume ilimitado de crédito, cada vez mais livre de impostos, e mesmo de receber salvamentos públicos destinados a permitir-lhes que retomem a concessão de empréstimos à economia não financeira. Isso é o equivalente a dar aos invasores terra em troca de nada e submeter o sistema fiscal aos conquistadores – sem um combate real ou o simples entendimento do que está a ser entregue.

    A guerra do sector financeiro contra a sociedade como um todo levou a uma dívida pública tão profunda quanto o fazia a guerra militar em tempos passados. A táctica rentista é obrigar governos a tomarem emprestado aos ricos a juros em vez de de tributá-los, enquanto endividam populações, imobiliário e indústria impondo-lhes tributo na forma de juros e comissões. Para coroar tudo isso, a banca exige subsídios e salvamentos de modo a que não sofra quando dívidas e poupanças se expandirem para além da capacidade de pagar e tiverem portanto de ser liquidadas. O truque do sector financeiro é manter a economia refém, ameaçando cessar a circulação de pagamentos se não obtiverem o que querem.

    Ao atacar a regulamentação e protecção do governo como se conduzisse ao "caminho da servidão" rumo ao planeamento centralizado, o sector financeiro tornou-se o grande expropriador. O seu objectivo é centralizar o planeamento na Wall Street, na City de Londres, em Frankfurt e em outros centros bancários, dirigindo economias nacionais inteiras para o caminho da servidão por dívida. Para alcançar a vitória, a alta finança precisa desqualificar o governo, o qual é o único poder capaz de regulamentar, tributar e restringir a sua expansão. A fim de desqualificar a democracia política, a finança compra o controle das campanhas eleitorais de modo a promover políticos que actuem como seus empregados. Ela também compra o controle da televisão, rádio e publicações dos mass media, e utiliza doações para comprar o controle do processo académico. Em conjunto, estes são os vários órgãos que representam o "cérebro" da sociedade. Hoje eles estão a ser transformados em zumbis.

    A própria religião tem sido desviada, afastando-a do seu foco sobre a dívida e a usura que perdurou longo tempo. Poucos cristãos são ensinados de que no seu sermão inicial Jesus desenrolou o pergaminho de Isaías que proclamava o Ano Jubileu e disse que esta era a sua tarefa: proclamar o "Ano do Senhor" e anunciar um Recomeço (Clean Slate) liquidando dívidas judaicas, libertando escravizados por dívida e recuperando terras para os seus proprietários originais de antes do arresto. E a edição em língua inglesa dos escritos de Martinho Lutero é cuidadosa em excluir o seu importante panfleto que denunciava Caco , o monstro da dívida portadora de juros em auto-expansão exponencial. Os evangélicos na América são especialmente maníacos em defender direitos financeiros sobre a propriedade, como se estes direitos fossem a própria propriedade e não a sua antítese.

    Os neoliberais afirmam proteger a liberdade individual, especialmente face a governos opressivos, mas não face a credores ou rentistas. Economistas clássicos perceberam que era necessário um governo forte para controlar os direitos adquiridos. O seu objectivo não era desmantelar o governo e sim utilizar o seu poder regulatório e tributário no interesse público para minimizar rendimento não merecido e "almoços grátis" – e minimizar o custo de viver e fazer negócios na economia. Ao apelar à "eutanásia do rentista" através da política pública, Keynes e a sua geração reconheceram que se governos fossem impedidos de controlar e tributar as Finanças, Seguros e Imobiliário (Finance, Insurance and Real Estate, FIRE), a economia passaria para o controle dos planeadores financeiros.

    Não existe uma coisa tal como um mercado livre "automático". Toda economia com êxito tem sido uma economia mista, com sectores público e privado tendo cada um o seu diferente papel. A privatização da moeda, do crédito e de outros serviços de infraestrutura básica pode ser apenas uma fase transitória da história, não a tendência irreversível que neoliberais aplaudem e que levou à presente crise de poder rentista não controlado num vácuo político.

    A tradição de banca central da Europa comparada com a da banca mercantil anglo-americana

    Em contraste com o Banco da Inglaterra criado para emprestar dinheiro ao seu governo, o que fazia mais tipicamente em tempo de guerra, a tradição continental europeia tem sido para que bancos centrais emprestem a bancos comerciais, os quais por sua vez mantêm grande parte das suas reservas em títulos do governo. Assim, efectivamente, bancos comerciais monetizam indirectamente défices do governo. Bancos e compradores de títulos supostamente actuam como árbitros responsáveis, emprestando em termos economicamente viáveis que impedem inflação e gastos irresponsáveis do governo. A Constituição Alemã (Artigo 109 [2] ) declara a intenção de promover estabilidade de preços, do emprego, da balança de pagamentos e do crescimento económico.

    Esta tradição está enraizada numa época em que a maior parte do empréstimo bancário era para o comércio e a indústria e, portanto, pelo menos nominalmente produtiva. A Europa prosperou enquanto o seu encargo da dívida era suficientemente baixo para ser suportado. Desde a II Guerra Mundial, contudo – e especialmente ao longo da última geração – o tsunami de crédito criado pelos bancos dos EUA e Grã-Bretanha esmagou a tradição bancária da Europa. Bancos financiaram uma bolha imobiliária (com a feliz excepção da Alemanha) e empenharam-se em esotéricos jogos de computador. A consequência é a tradição bancária da Europa continental que funcionava tão bem quando enraizada na expansão industrial deu lugar a uma prática mercantil anglo-americana, fazendo ganhos simplesmente a cavalgar a onda da inflação de preços de activos – uma alavancagem de dívida auto-alimentada, tramada por bancos para induzirem clientes a contrair empréstimos.

    A discussão económica de hoje deveria centrar-se no que deveria ser a melhor política responsável numa situação em que o crédito irresponsável está centrado em bancos comerciais, não na despesa dos governos. A bolha de preços de activos anterior a 2008 não foi um resultado de bancos centrais emprestarem a governos. Ela foi um produto do favoritismo em relação ao sector FIRE, facilitado pelo sistema fiscal da Eurozona que se centra mais em vendas e impostos sobre o rendimento do que em impostos sobre a terra destinados a deixar menos rendimento rentista "livre" a ser capitalizado em empréstimos bancários para promover os preços da propriedade aos níveis da Bolha.

    Como deveriam os governos responder quando empréstimos temerários da banca colocam toda a economia em risco? Isto é o que tem acontecido, mais notoriamente nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Irlanda com seus empréstimos por hipotecas lixo ("subprime"), empréstimos de mentirosos (liars' loans) e fraude financeira absoluta promovida por uma recusa em fazer acusações criminais contra actividades descaradamente ilegais. Para colocar as coisas mais directamente, o controle do sector financeiro dos países de língua inglesa foi tomado por predadores "livres" para encherem os seus bolsos tão rapidamente quanto possível. Os actuais escândalos do MF Global e do Bank of America são simplesmente os mais notórios crimes financeiros não processados que hoje ocorrem – e evidência de como a sua cobiça corrompeu o governo e os tribunais impedindo-os de actuar. Tal como criminosos comuns, os imperadores da alta finança não se importam com os danos feitos através das suas incursões.

    O problema que hoje enfrenta a Eurozona é decidir simplesmente o que deveria acontecer à Espanha agora que a sua bolha imobiliária entrou em colapso, deixando seus bancos imprudentes com situação líquida negativa. Eles estão a tentar manter a economia refém, como se esta corrosiva criação de dívida financeira de alguma maneira pudesse – e devesse – ser ressuscitada, como se fosse normal – um status quo ante, não um caminho errado. Que quantia deveria a Europa permitir que bancos caídos em situação líquida negativa sobrecarregassem governos nacionais e "contribuintes" com as suas perdas por empréstimos irresponsáveis?

    Nos maus tempos de hoje os governos são chamados a criar dívida pública para dar a bancos comerciais cujas reservas foram perdidas devido a maus empréstimos – o mau comportamento financeiro de que há muito eles acusavam de ser a inclinação dos governos! Deveriam governos da Eurozona capitular perante banqueiros e assumir a sua dívida imobiliária podre e os títulos de governos insolventes num balanço público pan-europeu. Isto seria uma "oligarquização" (eu hesito em dizer socialização) da dívida pública – uma transferência de riqueza da classe que tem estado a saquear a economia.

    Este problema não foi previsto na criação do euro. Nem foi antecipado que governos precisariam incidir em défices orçamentais a fim de puxar a Europa para fora da depressão. Tal gasto é necessariamente financiado por dívida pública. Ironicamente, apesar da temeridade dos seus sistemas de banca comercial, os bancos centrais nos países de língua inglesa são capazes de monetizar dívida pública tão livremente quanto os bancos comerciais podem criar crédito nos seus próprios teclados. Esta capacidade de criação de moeda salva os governos de serem mantidos reféns por credores como uma alavanca para forçar políticas fiscais pró rentistas, privatização e desregulamentação. De modo que o caminho de saída do pântano criado pela prática da banca comercial anglo-saxónica é mostrado pela prática anglo-saxónica no que concerne à banca central.

    Precisamente porque a tradição da Europa continental é banca mais industrial e produtiva ela limitou o BCE a proporcionar crédito apenas a bancos comerciais para reabastecer o crédito bancário em crises de liquidez. Ela impediu-o de emprestar a governos para monetizarem seus défices orçamentais. Este papel limitado deixa o BCE incapaz de enfrentar a crise de insolvência de hoje. Uma economia infestada de dívida não pode "brotar" o seu caminho de saída da dívida. E ela certamente não pode adoptar um programa de Quantitative Easing no estilo dos EUA. A ideia é que taxas de juro mais baixas permitirão que os enormes encargos de dívida seja cumpridos mais facilmente – estimulando novos tomadores de empréstimos a comprar os direitos de antigos devedores. Mas esta solução procura meramente ressuscitar a bolha, ao re-inchar preços de activos a um nível que possa salvar os bancos – com a economia como um todo a incidir cada vez mais profundamente na dívida.

    Isto significa que os negócios não podem tomar emprestado – especialmente as pequenas e médias empresas responsáveis pela maior parte do novo emprego nas economias dos EUA e europeias ao longo das últimas décadas. Assim, o sistema financeiro atingiu um término. Não só a maior parte do encargo de dívida precisa ser desfeito como o sistema bancário e financeiro (incluindo planos de pensões financeirizados) e sistemas fiscais precisam ser reestruturados de modo a impedir um retorno da Bolha Económica.

    O encargo da dívida pesa tão fortemente sobre uma economia como a sobre-tributação. A única solução prática é um Recomeço (Clean Slate) e isso não é algo que o BCE tenha autoridade para proclamar. Só um organismo governamental (ou, no contexto europeu, vários governos a actuarem em conjunto) pode fazer isto – sob condições de crise tal como a que estamos hoje a experimentar. E se deixar de mover-se com precaução de acordo com estas linhas, as dívidas afundarão de qualquer modo, porque dívidas que não podem ser pagas não o serão. Trata-se de simples contabilidade.

    Porque é que esta espécie de reestruturação não está no centro da discussão financeira de hoje – como se fosse impensável? Não pensar acerca de alternativas significa ficar sentado enquanto a Europa se torna uma zona económica morta.

    02/Agosto/2012
    Notas
    [1] Descrevo as reparações e o emaranhado da dívida de armas Inter-Aliado em Super Imperialism (nova ed. 2003), assim como a distinção entre o "problema orçamental" interno e o internacional.
    [2] George Soros, Remarks at the Festival of Economics, Trento Italy, June 2, 2012
    NT
    [1] Isaías: Profeta bíblico do século VIII a.C.
    [2] A analogia é péssima pois a teoria do aquecimento global é altamente contestável. Ver Acerca da impostura global


    Do mesmo autor:
  • A economia da bolha e a deflação da dívida , 24/Set/2012

    [*] Da Universidade de Missouri – Kansas City & do Levy Institute, EUA, autor de The Bubble and Beyond, ISLET, Dresden, 2012, 481 p., ISBN 13:978-3-9814842-0-5

    O original encontra-se em michael-hudson.com/2012/08/financial-predators-v-labor-industry-and-democracy/ .
    Palestra na Sankt Georgen University, Frankfurt, 22/Junho/2012. Tradução de JF, revisão de JM.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 15/Out/12