A desgraçada profissão de economista
Sr. Presidente, Srs. Membros do Subcomité, como antigo membro da
assessoria do Congresso é um prazer submeter esta
declaração à vossa consideração.
Escrevo-lhes vindo de uma profissão desgraçada. A teoria
económica, como é amplamente ensinada desde a década de
1980, fracassou miseravelmente no entendimento das forças que
estão por trás da crise financeira. Conceitos que incluem
"expectativas racionais", "disciplina de mercado" e a
"hipótese dos mercados eficientes" levaram economistas a
argumentar que a especulação estabilizaria preços, que os
vendedores actuariam para proteger as suas reputações, que se
podia confiar no caveat emptor
[1]
e que portanto a fraude generalizada não podia ocorrer. Nem todos os
economistas acreditaram nisto mas a maior parte sim.
Consequentemente, o estudo da fraude financeira recebeu pouca
atenção. Não existe praticamente nenhum instituto de
investigação; a colaboração entre economistas e
criminólogos é rara; nos principais departamentos há
poucos especialistas e muito poucos estudantes. Os economistas minimizaram o
papel da fraude e todas as crises que examinaram, incluindo a derrocada das
Caixas Económicas
(Savings & Loans),
a transição russa, o
colapso asiático e a bolha das dot.com. Eles continuam a minimizar
até hoje. Numa conferência patrocinada pelo Levy Economics
Instituto, em Nova York, a 17 de Abril, o mais perto que um antigo
sub-secretário do Tesouro, Peter Fischer, chegou a esta questão
foi utilizar a palavra "travessuras"
(naughtiness").
Isto foi no dia em que a Securities and Exchange Comission (SEC) acusou a
Goldman Sachs de fraude.
Há excepções. Um famoso artigo de 1993 intitulado
"Saqueio: bancarrota para o lucro"
("Looting: Bankruptcy for Profit"),
de George Akerlof e Paul Romer, baseava-se excepcionalmente na
experiência de reguladores que entendiam de fraude. O
criminólogo-economista William K. Black, da Universidade de
Missouri-Kansas City é o nosso principal analista sistemático do
relacionamento entre crime financeiro e crise financeira. Black destaca que a
fraude contabilística é uma coisa segura quando você pode
controlar a instituição em que entrou: "o melhor meio de
roubar um banco é possuí-lo". A experiência da crise
das Caixas Económicas foi de empresas capturadas com o propósito
explícito de depená-las, de sangrá-las até secarem.
Isto foi estabelecido em tribunal: havia mais de um milhar de
condenações por crime na sequência daquela derrocada.
Outras crónicas úteis da moderna fraude financeira incluem
"Cova de ladrões"
(Den of Thieves)
,
de James Stewart, sobre a era Boesky-Milken, e "Conspiração
de
loucos"
(Conspiracy of Fools)
, de Kurt Eichenwald, sobre o escândalo Enron. Mas subsiste um vasto fosso
entre esta história e a análise formal.
A análise formal conta-nos que o controle de fraudes segue certos
padrões. Elas crescem rapidamente, relatando alta lucratividade,
certificada por firmas de contabilidade de topo. Elas pagam excessivamente bem.
Ao mesmo tempo, elas reduzem padrões radicalmente, construindo novos
negócios em mercados anteriormente considerados demasiado arriscados
para negócios honestos. No sector financeiro, isto assume a forma de
descontraídas não, estripadas
subscrições, combinadas com a capacidade de passar o
último tostão para o louco maior. Na Califórnia, na
década de 1980, Charles Keating percebeu que um alvará de Caixa
Económica era uma "licença para roubar". Nos anos 2000,
a origem das hipotecas sub-prime foi em grande parte a mesma coisa. Dada uma
licença para roubar, os ladrões começam a trabalhar. E
porque o seu desempenho parece tão bom, eles rapidamente vêm a
dominar os seus mercados; os maus jogadores expulsam os bons.
A complexidade do sector hipotecário-financeiro antes da crise destaca
uma outra marca característica da fraude. No sistema desenvolvido, os
documentos originais da hipoteca jazem enterrados quando permanecem
nos registos dos originadores do empréstimo, muitos deles
extintos desde então ou tomados por terceiros. Aqueles registos, se
examinados, revelariam a extensão da documentação em
falta, das práticas abusivas e da fraude. Até agora, temos apenas
uma evidência muito limitada sobre isto, notavelmente um estudo de 2007
da Fitch Ratings sobre uma amostra muito pequena de RMBS
[2]
altamente taxadas, as quais descobrem "fraude, abuso ou
documentação omissa em virtualmente todo ficheiro".
Esforços feitos um ano atrás pelo deputado Doggett para persuadir
o secretário Geithner a examinar e informar a fundo a extensão da
fraude nos registos subjacentes às hipotecas foram totalmente torneados.
Quando hipotecas sub-primes foram empacotadas e titularizadas, as
agências de classificação deixaram de examinar a qualidade
do empréstimo subjacente. Ao invés disso substituíram [o
exame] por modelos estatísticos, a fim de gerar
classificações que fariam as RMBS resultantes aceitáveis
para os investidores. Quando alguém assume que os preços sempre
subirão, segue-se que um empréstimo titularizado pelos activos
sempre pode ser refinanciado; portanto a condição real do tomador
do empréstimo não importa. Aquela projecção
é, naturalmente, apenas tão boa como a suposição
subjacente, mas neste mercado concebido de forma perversa aqueles que pagam
pelas classificações não têm razões para se
importarem com a qualidade das suposições. Enquanto isso, agora
os originadores de hipotecas têm uma fórmula para oferecer
empréstimos aos piores tomadores que pudessem encontrar, seguros de que
neste Lake Wobegon
[3]
invertido nenhuma criança seria considerada abaixo da média
embora todas estivessem. A qualidade do crédito entrou em colapso porque
o sistema foi concebido para ir para o colapso.
Um terceiro elemento na mixórdia tóxica foi um simulacro de
"seguro", proporcionado pelo mercado em credit default swaps. Estes
são instrumentos do juízo final num sentido preciso: eles geram
fluxo de caixa para o emissor até que ocorra o evento de crédito.
Se o evento for suficientemente grande, o emissor então falha, ponto em
que o governo enfrenta chantagem: ele deve intervir ou o sistema entrará
em colapso. Os CDS propagam as consequências de uma baixa nos
preços das habitações por todo o sector financeiro, por
todo o globo. Eles também proporcionam os meios para provocar
curto-circuito no mercado de títulos apoiados por hipotecas
residenciais, de modo que os maiores jogadores poderiam virar as costas e
apostar contra os instrumentos que haviam previamente estado a vender, pouco
antes de o castelo cartas entrar em crash.
Nos tempos actuais a teoria económica das finanças é cega
a tudo isto. Ela necessariamente trata acções, títulos,
opções, derivativos e assim por diante como títulos cujas
propriedades podem ser aceites amplamente pelo seu valor facial e quantificadas
em termos de retorno e de risco. Aquela quantificação permite o
cálculo do preço, utilizando fórmulas padrão. Mas
tudo na fórmula depende de os instrumentos serem o que são
representados para ser. Pois se não o forem, então que
fórmula poderia possivelmente aplicar-se?
Uma tendência mais antiga da teoria económica institucional
entendia que um título é um contrato legal. Ele só podia
ser tão bom quanto o sistema legal que estava atrás dele. Alguma
fraude é inevitável, mas num sistema em funcionamento ela deve
ser rara. Ela deve ser considerada e correctamente um problema
menor. Se a fraude ou mesmo a percepção da fraude
chega a dominar o sistema, então não há fundamento para um
mercado de títulos. Eles tornam-se lixo. E mais profundamente, do mesmo
modo as instituições responsáveis por criá-los,
classificá-los e vendê-los. Incluindo, enquanto falhar em
responder com a força apropriada, o próprio sistema legal.
Fraudes controladas sempre falham no fim. Mas o fracasso da firma não
significa que a fraude tenha falhado: os perpetradores muitas vezes fogem
ricos. Em algum momento, isto exige subverter, subornar ou vencer a lei.
É aqui que o crime e os políticos se interceptam. No seu cerne, a
crise financeira foi uma ruptura da regra da lei na América.
Perguntem-se a si próprios: será possível para
originadores de hipotecas, agências de classificação,
subscritores, seguradores e agências de supervisão NÃO
terem sabido que o sistema financeiro de habitação tornara-se
infestado de fraudes? Todo indicador estatístico de prática
fraudulenta crescimento e lucratividade sugere o
contrário. Até agora todo exame dos registos sugere o
contrário. A própria linguagem em uso: "empréstimos
mentirosos", "empréstimos ninja",
"empréstimos neutrões" e "lixo tóxico"
diz-lhe que as pessoas sabiam. Também ouvi a expressão
"IBG,YBG", o significado desse código era: "Eu darei o
fora, você dará o fora"
("I'll be gone, you'll be gone").
Se dúvidas subsistissem, a investigação dentro das
comunicações internas das firmas e agências em causa pode
esclarecê-las. Os emails são reveladores. O governo já
possui pegadas documentais críticas aquelas da AIG, Fannie Mae de
Freddie Mac, o Departamento do Tesouro e a Reserva Federal. Esses documentos
deveriam ser investigados, completamente, pela autoridade competente e
também divulgados, quando apropriado, ao público. Por exemplo:
será que intencionalmente a AIG emitiu CDSs contra instrumentos que a
Goldman havia concebido em nome do sr. John Paulson para fracassar? Se assim
for, por que? Ou outra vez: Será que a Fannie Mae e o Freddie Mac
apreciaram a fraca qualidade das RMBSs que estavam a adquirir? Será que
assim o fizeram sob a pressão do sr. Henry Paulson? Se assim for,
será que o secretário Paulson sabia? E se o fez, por que ele
actuou assim? Num documento recente, Thomas Ferguson e Robert Johnson
argumentam que a "Opção Paulson" foi destinada a adiar
uma crise inevitável para depois das eleições. Será
que os registos internos confirmam esta visão?
Vamos supor que a investigação que estão prestes a
começar confirme a existência de fraude generalizada, envolvendo
milhões de hipotecas, milhares de avaliadores profissionais,
subscritores, analistas e os executivos das companhias nas quais eles
trabalhavam, bem como responsáveis públicos que a isso assistiam
fechando os olhos. O que será a resposta apropriada?
Alguns parecem acreditar que a "confiança nos bancos" pode ser
reconstruída por uma nova rodada de boas notícias
económicas, pela ascensão dos preços das
acções, pelas novas promessas de altos responsáveis
e pelo não olhar demasiado atentamente para a evidência subjacente
de fraude, abuso, engano e burla. Ao prosseguirem vossas
investigações, minarão, e acredito que possam destruir,
tal ilusão.
Mas você tem de actuar. A alternativa verdadeira é uma fracasso a
estende-se ao longo to tempo do sistema económico ao político. Da
mesma forma como muitos poucos previram a crise financeira, pode ser que muito
poucos estejam hoje a falar francamente acerca de onde um fracasso em tratar
das consequências pode levar.
Nesta situação, deixem-me sugerir que o país enfrenta uma
ameaça existencial. Ou o sistema legal deve fazê-lo funcionar. Ou
o sistema de mercado não pode ser restaurado. Deve haver uma limpeza
completa, transparente, efectiva e radical do sector financeiro e também
daqueles responsáveis públicos que traíram a
confiança pública. Aos financeiros deve-se fazê-los sentir,
nos seus ossos, o poder da lei. E o público, o qual vive de acordo com a
lei, deve ver muito claramente e sem ambiguidades que isto é o caso.
Muito obrigado.
18/Maio/2010
[1] caveat emptor: regra nas leis dos contratos determinando que o vendedor
não garante a qualidade de sua mercadoria sem um compromisso especificado
[2] RMBS: Residential mortgage-backed security
[3]
Lake Wobegon
: cidade fictícia no estado do Minnesota.
[*]
Texto de declaração escrita apresentada pelo autor ao
Comité Judiciário do Senado dos Estados Unidos.
O original encontra-se em
http://rwer.wordpress.com/2010/05/18/i-write-to-you-from-a-disgraced-profession/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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