Porque Washington está preocupada com o ICBM norte-coreano
Com o teste do Míssil balístico intercontinental (
ICBM
) assinalando a sua capacidade de retaliar a uma agressão dos EUA, a
Coreia do Norte
deixou claro que o esforço norte-americano de sete décadas para
derrubar o seu governo poderá nunca se concretizar um duro golpe
contra o despotismo dos EUA e um avanço para a paz e para a democracia
a uma escala mundial.
Um dado número de países testou recentemente mísseis
balísticos ou de cruzeiro e uma mão-cheia, em particular a
Rússia e a China, possuem ICBMs com ogivas nucleares capazes de atingir
os EUA. E, no entanto, apenas os mísseis e programas de armas nucleares
de um desses países, a Coreia do Norte, suscitam
consternação em Washington.
O que faz da minúscula Coreia do Norte, com o seu minúsculo
orçamento de Defesa, e com os seus rudimentares arsenal nuclear e
capacidade em matéria de mísseis, uma ameaça tão
alarmante que faz "espalhar a preocupação em Washington e
nas Nações Unidas"?
[1]
"A verdade", diz-se, "encontra-se muitas vezes escondida na
primeira página do
New York Times".
[2]
Isto não é menos verdade no que toca ao real motivo da
inquietação de Washington perante os testes de mísseis
norte-coreanos.
Num artigo de 4 de julho de 2017 intitulado "O que pode Trump fazer em
relação à Coreia do Norte? As suas opções
são poucas e arriscadas", o repórter David E. Sanger, membro
do Council of Foreign Relations, o
think-thank
não-oficial do Departamento de Estado norte-americano, revela o
porquê de Washington estar alarmado pelo recente teste de um
míssil balístico intercontinental por parte da Coreia do Norte.
"O medo", escreve Sanger, "não é de que o Sr. Kim
[líder norte-coreano] lance um ataque preventivo sobre a Costa Oeste dos
EUA; isso seria suicida, e se o líder norte-coreano de 33 anos
demonstrou algo nestes cinco anos de liderança, é que a sua
prioridade é a sobrevivência".
O alarme de Washington, de acordo com Sanger, é o facto de o "Sr.
Kim ter [agora] a capacidade para contra-atacar". Em outras palavras,
Pyongyang adquiriu meios eficazes de auto-defesa. Isso, escreve Sanger, faz da
Coreia do Norte um "regime perigoso".
De facto, para uma potência hegemónica como os EUA, qualquer
governo estrangeiro determinado, que se recusa a adoptar o papel de vassalo,
torna-se um "regime perigoso", que tem de ser eliminado. Nesse
sentido, permitir a uma nação independente como a Coreia do Norte
desenvolver os meios para se defender mais eficazmente das
ambições imperialistas dos EUA é algo que não cabe
no guião de Washington. Os EUA passaram os últimos 70 anos a
tentar integrar a minúscula e destemida nação no seu
império não-declarado. Agora, tendo a Coreia do Norte adquirido a
capacidade de retaliar contra um agressão militar dos EUA, e de causar
danos consideráveis no território norte-americano, a perspectiva
de esse investimento de sete décadas gerar frutos parece
improvável.
A hostilidade norte-americana contra a independência norte-coreana tem
sido expressa de várias maneiras ao longo das sete décadas de
existência da Coreia do Norte.
Três anos de agressão militar liderada pelos EUA, de 1950 a 1953,
exterminaram 20% da população da Coreia do Norte e reduziram a
pó todas as cidades do país
[3]
, levando os sobreviventes a refugiarem-se em abrigos subterrâneos, onde
viviam e trabalhavam. Acerca da destruição causada pelos EUA,
disse o general norte-americano Douglas MacArthur: "Eu nunca tinha visto
tamanha devastação
Depois de ver os escombros e aqueles
milhares de mulheres e crianças e tudo o mais, vomitei".
[4]
Uma campanha viciosa de sete décadas de guerra económica,
destinada a destruir a economia norte-coreana e levar miséria ao seu
povo, conferiu à Coreia do Norte a infeliz distinção de
nação mais sancionada do planeta. Dentre os pacotes de
sanções norte-americanas, há as que foram impostos pelo
facto de a Coreia do Norte ter escolhido uma "economia
marxista-leninista"
[5]
, revelando o que está de facto na base da hostilidade dos EUA contra
aquele país.
Durante décadas, os norte-coreanos viveram sob a
espada de Dâmocles
nuclear norte-americana, sujeitos repetidamente a ameaças de
aniquilação nuclear, incluindo serem transformados em
"briquetes de carvão"
[6]
e "completamente destruídos", para que "deixem
literalmente de existir"
[7]
e isto antes de os norte-coreanos possuírem armas nucleares e os
meios rudimentares que lhes permitissem usá-las. Por outras palavras, ao
ameaçar pulverizar os norte-coreanos, Washington ameaça
torná-los os sucessores dos povos aborígenes americanos, como
objecto de genocídio por parte dos EUA.
Devemos relembrar por que razão a Coreia do Norte se retirou do
Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Como
escreve o professor de História da Universidade de Chicago, Bruce
Cumings, para a Coreia do Norte a crise nuclear começou em finais de
fevereiro de 1993:
"O General Lee Butler, chefe do Comando Estratégico dos EUA,
anunciou que armas nucleares estratégicas (i.e., bombas de
hidrogénio), anteriormente apontadas para a antiga URSS, iriam ser
redireccionadas para a Coreia do Norte (entre outros locais). Ao mesmo tempo, o
novo chefe da CIA, James Woolsey, declarou que a Coreia do Norte era a 'nossa
mais séria preocupação'. Em meados de março de
1993, dezenas de milhares de militares norte-americanos levavam a cabo
exercícios militares na Coreia
e ali chegaram os bombardeiros
B1-B, B-52s de Guam, vários navios de guerra equipados com
mísseis de cruzeiro, e similares. Depois disso, a Coreia do Norte
retirou-se do TNP".
[8]
Duas décadas e meia depois, os bombardeiros B1-B e os navios de guerra
com mísseis de cruzeiro (desta vez, porta-aviões meios de
"projeção de poder" dos EUA) estão de volta.
No último mês de junho, Washington enviou não um, mas dois
porta-aviões, o USS Carl Vinson e o USS Ronald Reagan, para as
águas entre o Japão e a Coreia a fim de realizar
"exercícios", "uma demonstração de
força nunca vista em mais de duas décadas", noticiou o
Wall Street Journal.
[9]
Ao mesmo tempo, o Pentágono enviou bombardeiros estratégicos
B1-B, não uma, mas duas vezes no último mês, para realizar
simulações de bombardeamentos nucleares "perto da Linha de
Demarcação Militar que divide as duas Coreias", por outras
palavras, ao longo da fronteira norte-coreana.
[10]
Compreensivelmente, a Coreia do Norte denunciou as simulações de
bombardeamentos pelo que elas eram: graves provocações. Se as
novas capacidades de auto-defesa do país comunista provocaram
preocupação em Washington, então a manifesta
exibição de poder ofensivo de Washington poderá ter feito
também, legitimamente, soar o alarme em Pyongyang. O
Wall Street Journal
resumiu as provocações dos EUA desta forma: "As
forças militares dos EUA realizaram vários sobrevoos perto da
península coreana usando bombardeiros B1-B [nucleares] e enviaram um
porta-aviões e respectiva frota para a região causando
apreensão na Coreia do Norte".
[11]
Robert Litwak, director de estudos de segurança internacional no Wilson
Center, explica a razão da apreensão de Pyongyang, no caso de
ainda não ser suficientemente óbvio. Os exercícios
militares liderados pelos EUA "[podem parecer] manobras defensivas para
nós, [mas] da perspectiva da Coreia do Norte, eles podem pensar que
estamos a preparar um ataque quando começamos a enviar bombardeiros
B2".
[12]
Em janeiro, a Coreia do Norte ofereceu-se para se "sentar com os EUA, a
qualquer altura" para discutir os exercícios militares
norte-americanos e os programas de armas nucleares e de mísseis
balísticos. Pyongyang propôs que os EUA "contribuíssem
para aliviar a tensão na península coreana, suspendendo
temporariamente os exercícios militares desse ano no sul da Coreia e na
sua vizinhança, e que, em resposta, a RPDC estaria pronta a suspender
temporariamente os testes nucleares que suscitam a preocupação
dos EUA".
[13]
A proposta norte-coreana foi apoiada pela China e pela Rússia
[14]
e, recentemente, pelo novo presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in.
[15]
Mas Washington rejeitou perentoriamente a proposta, recusando-se a admitir uma
equivalência entre os exercícios militares liderados pelos EUA,
que os oficiais norte-americanos consideram 'legítimos', e os testes
nucleares e de mísseis da Coreia do Norte, que consideram
'ilegítimos'".
[16]
A rejeição dos EUA da proposta norte-coreana apoiada por
China-Rússia-Coreia do Sul, no entanto, está apenas retoricamente
relacionada com noções de legitimidade, e a questão da
legitimidade não sobrevive ao mais elementar escrutínio. Por que
razão os mísseis balísticos e as armas nucleares
norte-americanas são legítimos, e os da Coreia do Norte
não são?
A verdadeira razão que leva Washington a rejeitar a proposta
norte-coreana é explicada por Sanger: "uma suspensão
acordada seria um reconhecimento de que o modesto arsenal da Coreia do Norte
estaria aqui para ficar", o que significa que Pyongyang adquiriu a
"capacidade para responder" e para impedir Washington de
lançar uma agressão para mudança de regime à
maneira das guerras que perpetrou contra Saddam e Gaddafi, líderes de
governos independentes, que, tal como a Coreia do Norte, se recusaram a serem
integrados no império informal dos EUA, mas que, ao contrário da
Coreia do Norte, renunciaram aos seus meios de auto-defesa e, uma vez
indefesos, foram derrubados por agressões promovidas pelos EUA.
"É isso que o Sr. Kim acredita que o seu programa nuclear
irá impedir", escreve o membro do Council on Foreign Relations.
"E ele pode estar certo", concede Sanger.
Qualquer pessoa preocupada com democracia deve ficar animada pelo facto de a
Coreia do Norte, ao contrário da Líbia de Gaddafi e do Iraque de
Saddam, ter resistido com sucesso às predações dos EUA. Os
EUA exercem uma ditadura internacional, arrogando para si próprios o
direito de intervir em qualquer parte do globo e de ditar aos outros
países como estes devem reger os seus assuntos políticos e
económicos ao ponto de, na Coreia do Norte, empreenderem uma
guerra económica contra o país, por este ter uma economia
marxista-leninista, oposta aos interesses económicos do estrato superior
da sociedade norte-americana, cujas oportunidades para realizar lucro
através de exportações e investimentos na Coreia do Norte
foram, em conformidade, eclipsadas.
Esses países que resistem ao despotismo são os verdadeiros
campeões da democracia, e não aqueles que o exercem (EUA) ou o
facilitam (os seus aliados). A Coreia do Norte é caluniada como uma
belicosa ditadura, violadora dos direitos humanos e praticante de cruéis
e invulgares castigos a dissidentes políticos, uma
descrição que assenta como uma luva no principal aliado
árabe dos EUA, a Arábia Saudita, destinatário de favores
militares, diplomáticos e outros, quase ilimitados, apesar da sua total
aversão à democracia, da redução das mulheres ao
estatuto de coisas, da disseminação de uma ideologia Waabista
sectária e imoral, de uma guerra imposta contra o Iémen e de
decapitações e crucificações de dissidentes
políticos.
Se estamos preocupados com a democracia, então também
devíamos como argumenta o filósofo italiano Domenico
Losurdo estarmos preocupados com a democracia a uma escala global. O
medo que se propaga em Washington e nas Nações Unidas é o
medo de que a democracia tenha recebido impulso a uma escala global. E isso
não deve ser uma preocupação para o restante da
humanidade, mas sim uma "carícia alentadora".
05/Julho/2017
1. Foster Klug and Hyung-Jin Kim, "North Korea's nukes are not on
negotiation table: Kim Jong-un," Reuters, July 5, 2017.
2. Esta ideia poderá ser atribuída a Peter Kuznick, co-autor,
juntamente com Oliver Stone, do livro
The Untold History of the United States.
3. De acordo com o General da Força Aérea dos EUA, Curtis LeMay,
chefe do Comando Aéreo Estratégico durante a Guerra da Coreia,
citado em Medi Hasan, "Why do North Koreans hate us? One reason
They remember the Korean War," The Intercept, May 3, 2017. LeMay disse
"nós matámos
20 por cento da população
fomos lá e lutámos, até destruirmos todas as
cidades na Coreia do Norte".
4. Glen Frieden, "NPR can't help hyping North Korea threat," FAIR,
May 9, 2017.
5. "North Korea: Economic Sanctions," Congressional Research Service,
2016.
6. Colin Powell ameaçou a Coreia do Norte de que os EUA poderiam
transformá-la numa "briquete de carvão". Bruce Cumings,
"Latest North Korean provocations stem from missed US opportunities for
demilitarization," Democracy Now!, May 29, 2009.
7. General norte-americano Wesley Clark, citado em Domenico Losurdo,
Non-Violence: A History Beyond the Myth, Lexington Books, 2015, disse: "Os
líderes da Coreia do Norte usam linguagem belicosa mas eles sabem muito
bem que não têm uma opção militar viável
Caso eles atacassem a Coreia do Sul, a sua nação seria
completamente destruída. Deixaria literalmente de existir".
8. Bruce Cumings, Korea's Place in the Sun: A Modern History, W.W. Norton &
Company, 2005. p. 488-489.
9. Gordon Lubold, "North Korea, South China Sea to dominate Defense
Secretary's Asia Trip,"
The Wall Street Journal,
June 2, 2017.
10. Jonathan Cheng, "U.S. bombers fly near North Korean border after
missile launch,"
The Wall Street Journal,
May 30, 2017.
11. Jonathan Cheng, "North Korea compares Donald Trump to Adolph
Hitler,"
The Wall Street Journal,
June 27, 2017.
12. "US experts argue in favor of scaling down S. Korea-US military
exercises," The Hankyoreh, June 20, 2017.
13. Korean Central News Agency, January 10, 2015.
14. Jonathan Cheng and Alastair Gale, "North Korea missile launch
threatens U.S. strategy in Asia,"
The Wall Street Journal,
July 4, 2017.
15. David E. Sanger, "What can Trump do about North Korea? His options are
few and risky,"
The New York Times,
July 4, 2017.
16. Jonathan Cheng and Alastair Gale, "North Korea missile launch
threatens U.S. strategy in Asia,"
The Wall Street Journal,
July 4, 2017.
[*]
sr.gowans@sympatico.ca
O original encontra-se em
gowans.wordpress.com/...
. Tradução de Francisco Nunes.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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