A mais mortífera campanha de bombardeamento da história
No momento em que o mundo observa com preocupação o crescimento
de tensões e a retórica belicosa entre os Estados Unidos e a
Coreia do Norte, um dos aspectos mais notáveis da situação
é a ausência de qualquer reconhecimento público da
razão subjacente para os temores norte-coreanos ou, como foi
chamado pela embaixadora nas Nações Unidas, Nikki Haley, o estado
de paranóia" nomeadamente a horrenda campanha de
bombardeamento incendiário efectuada pela US Air Force durante a Guerra
da Coreia e a mortandade sem precedentes que dela resultou.
Os factos totais nunca serão conhecido, mas a evidência
disponível aponta para a conclusão de que o bombardeamento
incendiário de cidades e aldeias da Coreia do Norte provocaram
mais mortes civis
do que qualquer outra campanha de bombardeamento da história.
O historiador Bruce Cumings descreve a campanha de bombardeamento como
"provavelmente um dos piores episódios de desenfreada
violência americana contra outro povo, mas certamente poucos americanos
sabem disso".
A campanha, executada de 1950 a 1953, matou dois milhões de
norte-coreanos, segundo o general Curtis LeMay, o chefe do Strategic Air
Command e o organizador do bombardeamento incendiário de Tóquio e
de outras cidades japonesas. Em 1984, LeMay
disse ao Gabinete de História da Força Aérea
que o bombardeamento da Coreia do Norte "matou 20 por cento da
população".
Outras fontes mencionam um número um pouco mais baixo. Segundo um
conjunto de dados
preparados por investigadores do Centre for the Study of Civil War (CSCW) e do
International Peace Research Institute (PRIO), de Oslo, "a melhor
estimativa" de mortes civis na Coreia do Norte é de 995 mil, com
uma estimativa baixa de 645 mil e uma estimativa alta de 1,5 milhão.
Apesar de a estimativa de LeMay ser a metade da estimativa da CSCW/PRIO de 995
mil mortes ainda assim excede a mortandade de civis de qualquer outra campanha
de bombardeamento, incluindo o bombardeamento incendiário dos Aliados de
cidades alemãs na II Guerra Mundial, a qual foi estimada em 400 a 600
mil vidas. O bombardeamento incendiário e nuclear de cidades japonesas,
provocou uma estimativa de
330 mil
a
900 mil
mortes; o bombardeamento da
Indochina
de 1964 a 1973, causou globalmente 121 a 361 mil mortes durante as
operações
Rolling Thunder
,
Linebacker
e
Linebacker II
(Vietname); Menu e Operação
Freedom Deal
(Camboja) e
Barroll Roll
(Laos).
A fortíssima mortandade do bombardeamento da Coreia do Norte é
especialmente notável considerando a população
relativamente modesta do país: apenas 9,7 milhões de pessoas em
1950. Para comparação, havia 65 milhões de pessoas na
Alemanha e 72 milhões no Japão no fim da II Guerra Mundial.
Os ataques da US Air Force contra a Coreia do Norte utilizaram tácticas
de bombas incendiárias que foram desenvolvidas no bombardeamento da
Europa e do Japão na II Guerra Mundial: explosivos para destruir
edifícios, napalm e outros produtos incendiários para atear
incêndios maciços e metralhamento para impedir que equipes de
bombeiros extinguissem as chamas.
A utilização destas tácticas não era
inevitável. De acordo as políticas dos Estados Unidos em vigor no
início da Guerra da Coreia, o bombardeamento incendiário contra
populações civis era proibido. Um ano antes, em 1949, uma
série de almirantes da US Navy haviam
condenado
tais tácticas em depoimento antes de audiências no Congresso.
Durante esta "Revolta dos almirantes", a Marinha opusera-se aos seus
colegas da Força Aérea, sustentando que ataques executados contra
populações civis eram contraproducentes e violavam normas morais
globais.
Apresentados no momento em que os tribunais de Nuremberg haviam elevado a
consciência pública acerca de crimes de guerra, as críticas
dos almirantes da Navy encontram uma recepção simpática no
tribunal da opinião pública. Consequentemente, atacar
populações civis era algo proibido na política dos EUA no
princípio da Guerra da Coreia. Quando o general da Força
Aérea George E. Stratemeyer
solicitou permissão
para utilizar os mesmos métodos de bombardeamento incendiário
sobre cinco cidades norte-coreanas que "puseram o Japão de
joelhos", o general Dougla MacArthur recusou a permissão
mencionando a "política geral".
Depois de cinco meses de guerra, com forças chinesas intervindo ao lado
da Coreia do Norte e de forças da ONU em retirada, o general MacArthur
mudou a sua posição, concordando com o pedido do general
Stratemeyer em 3 de Novembro de 1950, de incendiar a cidade norte-coreana de
Kanggye e várias outras cidades. "Incendeia se quiser. Não
só aquela, Strat, mas incendeie-a de destrua-a como lição
para qualquer outras destas cidades que considere de valor militar para o
inimigo". Na mesma noite, o chefe do Estado-Maior de MacArthur disse a
Stratemeyer que o bombardeamento incendiário de Sinuiju também
fora aprovado. No seu diário, Stratemeyer resumiu as
instruções como se segue: "Toda instalação e
aldeia na Coreia do Norte agora torna-se um alvo militar e
táctico". Stratemeyer enviou ordens ao Quinto Comando de
Bombardeiros da Força Aérea para "destruir todos os meios de
comunicações e toda instalação, fábrica,
cidade e aldeia".
Se bem que a Força Aérea fosse directa nas suas próprias
comunicações internas acerca da natureza da campanha de
bombardeamento incluindo mapas que mostravam a percentagem exacta de
cada cidade que havia sido incinerada as
comunicações para a imprensa
descreviam a campanha de bombardeamento como dirigidas unicamente a
"concentrações de tropas inimigas, depósitos de
abastecimento, fábricas de guerra e linhas de
comunicações".
As ordens dadas ao Quinto Comando da Força Aérea eram mais
claras: "Aviões sob o controle do 5º Comando destruirão
todos os outros alvos incluindo todos os edifícios capazes de dar
abrigo".
Menos de três semanas após o assalto inicial a Kanggye,
dez cidades
haviam sido incineradas, incluindo Ch'osan (85%), Hoeryong (90%), Huich'on
(75%), Kanggye (75%), Kointong (90%), Manp'ochin (95%), Namsi (90%), Sakchu
(75%), Sinuichu (60%) e Uichu (20%).
Em 17 de Novembro de 1950, o general MacArthur
disse
ao Embaixador dos EUA na Coreia, John J. Muccio: "Infelizmente, esta
área será deixada como um deserto". Por "esta
área" MacArthur queria dizer toda a área entre "nossas
posições actuais e a fronteira".
À medida que a Força Aérea continuava a incinerar cidades,
ela mantinha um cuidadoso registo dos
níveis de destruição resultantes
:
Anju 15%
Chinnampo (Namp'o) 80%
Chongju (Chongju) 60%
Haeju 75%
Hamhung (Hamhung) 80%
Hungnam (Hungnam) 85%
Hwangju (Hwangju County) 97%
Kanggye 60% (reduced from previous estimate of 75%)
Kunu-ri (Kunu-dong) 100%
Kyomipo (Songnim) 80%
Musan 5%
Najin (Rashin) 5%
Pyongyang 75%
Sariwon (Sariwon) 95%
Sinanju 100%
Sinuiju 50%
Songjin (Kimchaek) 50%
Sunan (Sunan-guyok) 90%
Unggi (Sonbong County) 5%
Wonsan (Wonsan) 80%
Em Maio de 1951, uma equipe internacional para averiguação de
factos declarou: "Os membros, em todo o decorrer da sua jornada,
não viram uma cidade que não houvesse sido destruída e
havia muito poucas aldeias não danificadas".
Em 25 de Junho de 1951, o general O'Donnell, comandante do Far Eastern Air
Force Bomber Command,
testemunhou
numa resposta a pergunta do senador Stennis ("...a Coreia do Norte foi
virtualmente destruída, não foi?"):
"Oh, sim; ... eu diria que toda, quase toda a Península Coreana
está numa terrível confusão. Está tudo
destruído. Não há nada valioso em pé para mencionar
... Pouco antes de os chineses entrarem estávamos enraizados. Não
havia mais alvos na Coreia".
Em Agosto de 1951 o correspondente de guerra Tibor Meray
declarou
que testemunhara "uma completa devastação entre o Rio Yalu
e a capital". Ele disse que "não havia mais cidades na Coreia
do Norte". E acrescentou: "Minha impressão era de que estava a
viajar na lua porque havia apenas devastação... Toda cidade era
uma colecção de chaminés".
Vários factores combinaram-se para intensificar a mortalidade dos
ataques com bombas incendiárias. Como fora ensinado pela II Guerra
Mundial, ataques incendiários podiam devastar cidades com
incrível rapidez: as bombas incendiárias da Royal Air Force no
ataque a Würzburg
, Alemanha, nos meses finais da II Guerra Mundial
exigiram apenas 20 minutas para envolver a cidade numa tempestade de fogo com
temperaturas estimadas de 1500-2000º C.
Outro factor que contribuiu para a letalidade dos ataques foi a severidade do
inverno norte-coreano. Em Pyongyang, a baixa temperatura média em
Janeiro é de 8º Fahrenheit [-13º Celsius]. Como o
bombardeamento mais severo teve lugar em Novembro de 1950, aqueles que
escaparam à morte imediata pelo fogo foram relegados ao risco de morte
pela exposição [ao tempo] nos dias e meses que se seguiram.
Sobreviventes criaram abrigos improvisados em desfiladeiros, caves e adegas
abandonadas. Em Maio de 1951 uma delegação da
Federação Internacional de Mulheres Democráticas (WIDF)
que visitou a cidade bombardeada de Sinuiju
relatou
:
"A maioria esmagadora dos habitantes vivem em covas feitas de terra
escoradas por madeira recuperada. Algumas destas covas têm tectos feitos
de telha e madeira, recuperada de edifícios destruídos. Outros
estão a viver em adegas que permaneceram após o bombardeamento e
outros ainda em tendas cobertas de palha na estrutura de edifícios
destruídos e em choças feitas de tijolo sem argamassa e de
entulho".
Em Pyongyang, a delegação descreveu uma família de cinco
membros, incluindo uma criança de três anos e um bebé de
oito meses, a viveram num espaço subterrâneo medindo dois metros
quadrados em que só se podia entrar rastejando através de um
túnel de três metros.
Um terceiro factor de mortalidade foi a utilização extensiva do
napalm. Desenvolvido na Universidade de Harvard em 1942, a substância
pegajosa e inflamável foi utilizada primeiro na II Guerra Mundial. Ela
tornou-se uma arma chave durante a Guerra da Coreia, na qual 32.557 toneladas
foram utilizadas, sob uma lógica que o historiador Bruce Cumings
caracterizou assim: "Eles são selvagens, então isso nos
dá o direito de despejar napalm sobre inocentes". Muito tempo
após a guerra, Cumings
descreveu
um encontro com um sobrevivente idoso:
"Numa esquina havia um homem (pensei que era um homem ou uma mulher com
ombros largos) que tinha uma crosta púrpura peculiar sobre todas as
partes visíveis da sua pelo espessa nas suas mãos, fina
nos seus braços, cobrindo totalmente toda a sua cabeça e face.
Ele era careca, não tinha orelha ou lábios e os seus olhos,
faltando pálpebras, eram um branco acinzentado, sem pupilas... Esta
crosta púrpura resultou do encharcamento com napalm, após o qual
corpo não tratado da vítima foi deixado para de algum modo
curar-se a si próprio".
Durante as conversações do armistício, na conclusão
do combate, comandantes dos EUA haviam esgotado as cidades para alvejar. A fim
de pressionar as negociações, agora viravam os bombardeiros
rumo às grandes barragens da Coreia. Como
informou
o
New York Times,
a inundação provocada pela destruição de uma
barragem "escavou totalmente" 27 milhas [43 km] do vale do rio e
destruiu milhares de hectares de arroz recém plantado.
Na sequência das campanhas de bombardeamento incendiário contra a
Alemanha e o Japão durante a II Guerra Mundial, um grupo de
investigação do Pentágono com mais de 1000 membros
efectuou uma
avaliação
exaustiva conhecida como United States Strategic Bombing Survey. A USSBS
publicou 208 volumes para a Europa e 108 volumes para o Japão e o
Pacífico, incluindo contagens de baixas, entrevistas com sobreviventes e
análises económicas. Estes relatórios
indústria-por-indústria foram tão pormenorizados que a
General Motors utilizou os resultados para processar com êxito o governo
dos EUA por US$32 milhões de danos em fábricas alemãs [de
sua propriedade].
Após a Guerra da Coreia, nenhum exame
(survey)
do bombardeamento foi efectuado além dos próprios mapas internos
da Força Aérea mostrando a destruição
cidade-por-cidade. Estes mapas foram mantidos secretos nos vinte anos
seguintes. No momento em que os mapas foram silenciosamente
desclassificados
, em 1973, o interesse da América na Guerra da Coreia há muito
que se havia desvanecido. Só em anos recentes o quadro completo
começou a emergir em estudos de historiadores como
Taewoo Kim
do Korea Institute for Defense Analyses,
Conrad Crane
da Academia Militar dos EUA, e
Su-kyoung Hwangof
da Universidade da Pennsylvania.
Na Coreia do Norte, a memória está viva. De acordo com o
historiador
Bruce Cumings
, "foi a primeira coisa que o meu guia chamou a minha
atenção". Cumings
escreve
: "A maquinaria desimpedida de bombardeamento incendiário visitou o
Norte durante três anos, produzindo uma terra devastada e um povo a
sobreviver como toupeiras que haviam aprendido a amar o abrigo de caves,
montanhas, túneis e fortificações, um mundo
subterrâneo que se tornou a base da reconstrução de um
país e um recordatório que produziu um ódio brutal em toda
a população".
Nos dias de hoje, o bombardeamento incendiário de cidades e aldeias da
Coreia do Norte permanece virtualmente desconhecido do público geral e
não reconhecido na discussões dos media sobre a crise, apesar da
óbvia relevância para a busca de um dissuasor nuclear por parte da
Coreia do Norte. Mas sem conhecer e confrontar estes factos, o público
americano não podem começar a compreender o medo que já no
cerne das atitudes e acções da Coreia do Norte.
08/Dezembro/2017
[*]
Director do
CoalSwarm
. Fundador da
Peachpit Press
e autor de
Gangs of America
.
O original encontra-se em
www.counterpunch.org/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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