Os partidos políticos e os movimentos sociais – tema candente

por José Reinaldo Carvalho

        Pelo terceiro ano consecutivo, reuniu-se o Seminário de Partidos Comunistas da América Latina e da Europa. Desta vez a reunião transcorreu na capital chilena, Santiago, ainda recebendo o eco das atividades alusivas ao 30º aniversário do assassínio de Salvador Allende e da instalação da ditadura militar fascista do general Pinochet. Chama a atenção a quantidade de trabalhos jornalísticos, memorialísticos e acadêmicos lançados no país andino sobre o insígne líder socialista e o período de governo da Unidade Popular, quando a aliança entre o Partido Socialista, o Partido Comunista e outras forças da esquerda revolucionária viveu uma pioneira experiência democrática-popular no Cone Sul das Américas nos começos dos anos 1970.

        Nas edições anteriores do Seminário, a primeira em Montevidéu e a segunda em Buenos Aires, o debate centrou-se respectivamente sobre a política de alianças dos comunistas e a luta no âmbito dos espaços supranacionais, que no caso da América Latina abrange a atuação das forças políticas no Mercosul e outros níveis de articulação regional. Desta feita a discussão teve por foco as relações entre os partidos políticos e os movimentos sociais, tema oportuno, candente e atualíssimo, porquanto inaugura-se esta semana o 4º Fórum Social Mundial em Mumbai, na Índia.

        Os comunistas atribuem papel de primeira grandeza aos movimentos de massas e valorizam como estratégico o trabalho com eles e entre eles. Nossa concepção revolucionária assume como princípio, historicamente comprovado na longa trajetória de lutas políticas e sociais de mais de século e meio, que as massas populares e não as personalidades e as organizações políticas singulares, são os sujeitos da história, os principais atores das gestas emancipadoras.

        Tomamos também como princípio que a luta social, nas condições do capitalismo e hoje mais ainda em sua fase neoliberal, se esgotaria em si mesma se estivesse circunscrita a objetivos limitados e parciais. Numa sociedade em que impera a opressão social e nacional, o movimento social tem de adquirir alcance anticapitalista, conteúdo e caráter de classe, consciência revolucionária e deve adotar posições programáticas relacionadas com a luta pela nova sociedade, vale dizer, por um novo poder político. Destarte, a luta social e a luta política, o movimento social e o partido político não podem ser considerados isoladamente. “Não digam que o movimento social exclui o movimento político. Não há jamais movimento político que ao mesmo tempo não seja social”, dizia Marx em “Miséria da Filosofia”. Hoje, quando se fala de “novo movimento”, “movimento dos movimentos”, o que tem sua validade levando em consideração as novas condições da época em que vivemos, o que não é válido é opor o movimento social ao movimento político, as organizações sociais aos partidos políticos progressistas e revolucionários e menosprezar como “tradicionais”, ou seja, superadas historicamente, as organizações de classe e os partidos que lutam pela transformação revolucionária da sociedade.

        Naturalmente, houve no passado e há hoje em dia também erros de concepção, condução e método por parte dos partidos comunistas e outras forças revolucionárias em suas relações com os movimentos de massas. Certamente há novos atores sociais que não estão contidos nos modelos clássicos de análises de classes da sociedade. O mundo viveu e vive mudanças, o que nos impõe elevar o grau de nossas reflexões e enriquecer nossas análises, mas não se pode, ao criticar esses erros incorrer em outro, o de negar o papel do fator consciente na luta revolucionária, que não surgirá espontaneamente, nem sequer só “de baixo”, “da base”. São indispensáveis a teoria e a inteligência coletiva, o que só se obtém através do amadurecimento dos partidos políticos revolucionários de classe.

        Atualmente, no Brasil, como em toda a América Latina e no mundo, os movimentos de massas são impulsionados na resistência à generalizada ofensiva da burguesia, da reação mundial e do imperialismo contra os direitos dos povos, a democracia, a soberania nacional, a segurança e a paz. Evidencia-se cada vez mais que o desenvolvimento destrutivo do capitalismo traz a barbárie. Seus efeitos visíveis são a degradação da vida, a exclusão social, a privação de direitos, o desemprego, a miséria, o crime, a insegurança pública, a crise da civilização urbana. No plano político, as relações internacionais são marcadas pela militarização e a guerra.

        As forças progressistas têm diante de si o grande desafio de compreender essa realidade, suas causas e seu sentido e, a partir dessa compreensão, incidir de maneira qualificada nos movimentos sociais, mergulhar neles, deitar raízes, ligar-se a eles e contribuir para apontar caminhos de luta por uma nova sociedade que supere aqueles fenômenos, o que significa lutar pela própria superação do capitalismo.

        O Fórum Social Mundial, síntese do denominado movimento antiglobalização, desponta como importante sujeito das atuais lutas políticas e sociais. Em suas três versões de Porto Alegre, e com certeza também agora em Mumbai, assim como nos embates de rua desde Seattle, revelaram-se as novas potencialidades desse novo movimento, o que ficou muito evidente nas memoráveis jornadas de luta contra a guerra imperialista no ano passado. Afirma-se o Fórum Social Mundial objetivamente como movimento antiglobalização, anticapitalista, antiimperialista, antiguerra e, pelo menos as suas ramificações latino-americanas, como movimento anti-Alca, ainda que nem sempre esse sentido seja claro para as organizações que constituem o FSM e que muitas vezes sejam imprecisas, contraditórias, confusas e ecléticas as suas decisões.

        O Fórum Social Mundial se perfila com essas características em um marco muito diversificado de organizações, forças políticas e correntes de opinião. Os comunistas devemos atuar, e efetivamente atuamos aí, considerando o FSM como ponto de convergência e de encontro para a ação comum, um terreno propício para impulsionar a unidade do movimento de massas.

        Por isso, quaisquer atitudes hegemônicas e excludentes ou intenções de enrijecer para transformar artificialmente o FSM em um centro de formulações e decisões constituirão uma deformação e serão prejudiciais para a luta. Se é verdade que a luta política e social é cada vez mais global, não é menos verdade que não se podem apagar as peculiaridades nacionais e que é contraproducente fabricar agendas e palavras de ordem que ignorem as agendas nacionais. Em países como o Brasil, com suas características de país continental situado na esfera de dependência do imperialismo norte-americano, onde avultam problemas sociais entrelaçados com os derivados da dominação externa, a questão nacional tem uma particularidade que não pode ser ignorada, mormente agora nas novas condições em que se observa novo dinamismo político e social.

        São também tendências a combater, nos marcos de uma atuação ampla e unitária no Fórum Social Mundial o reformismo, a conciliação de classes e a tentativa de domesticar e fragmentar as lutas sociais, o esvaziamento do caráter de classe dessas lutas, assim como o apoliticismo, o apartidarismo e as intoleráveis discriminações aos comunistas e às demais forças revolucionárias.

        Essas são algumas considerações que fizemos no seminário de Santiago sobre o relevante tema das relações entre movimentos sociais e partidos políticos. O seminário serviu também para atualizar o intercâmbio de informações e opiniões entre os comunistas da América Latina e da Europa sobre outros temas, para reiterar a posição comum de enfática condenação à guerra imperialista, particularmente a ocupação do Iraque pelos Estados Unidos. Quanto ao quadro político em desenvolvimento na América Latina, o comunicado do seminário destaca: “A onda de lutas na América Latina deu lugar a levantamento populares na Argentina, no Equador e na Bolívia. Esses processos confluem com o fortalecimento de Cuba socialista que consegue derrotar a intensificação da agressividade norte-americana, com a defesa da revolução bolivariana na Venezuela por parte do seu povo que enfrentou o golpe de Estado de abril de 2002 e os posteriores e reiterados intentos desestabilizadores. Outrossim, a vitória de Lula e seus aliados no Brasil gera expectativas de êxito na realização das tarefas democráticas, populares e nacionais que propuseram ao seu povo. A isso se acrescentam duas derrotas consecutivas nas urnas infligidas ao projeto militarista de Álvaro Uribe na Colômbia, as perspectivas de avanço eleitoral da esquerda em El Salvador, no Panamá, no Uruguai e na Nicarágua. É evidente que a história não chegou ao fim”.

O original deste artigo encontra-se em http://www.vermelho.org.br/.
A versão final do comunicado emitido após o seminário encontra-se em http://www.vermelho.org.br/diario/2004/0113/0113_santiago.asp.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

19/Jan/04