Decifra-me ou te devoro
Reflexões sobre a crise atual e as tarefas da esquerda
revolucionária no Brasil
O Brasil vive atualmente uma crise completa, a mais grave desde os momentos
finais da ditadura e o início do processo de
democratização em meados dos anos 80. Trata-se de um processo no
qual converge um conjunto de vetores que confluem contraditoriamente
retroalimentando-se e, ao mesmo tempo, repelindo-se mutuamente, pois todos os
agentes que influenciam essas variáveis buscam encontrar saídas
para os problemas colocados pela conjuntura, mas até agora, apesar da
brutal ofensiva do capital, ainda não se verificou um desfecho
definitivo da crise. Isso se explica em função da diversidade de
projetos das várias frações burguesas sobre os rumos da
conjuntura aberta com o impeachment da presidente Dilma, da impopularidade do
governo golpista, assim como da resistência da população e,
especialmente, do temor de setores da burguesia de um levante social provocado
pela dramática conjuntura da qual não têm controle pleno.
Forja-se assim um ambiente complexo, confuso e de difícil
compreensão plena da realidade. Nessa conjuntura, os diversos atores
sociais e políticos buscam saídas para a crise de acordo com seus
interesses, mas as saídas são todas problemáticas, pois
envolvem um conjunto de problemas de difícil solução na
conjuntura atual, tais como o rompimento de pactos institucionais amadurecidos
na consciência popular, como direitos e garantias que vêm desde a
década de 40 do século passado, outros inscritos na
constituição de 1988, além da necessidade de uma derrota
completa das forças populares, o que tem se mostrado problemático
na conjuntura atual. Num ambiente dessa ordem, deve-se levar em conta ainda que
mudanças institucionais bruscas, sem apoio da sociedade, podem desatar
forças que estavam latentes nos subterrâneos sociais e
conflagrações sociais que não estavam presentes ainda na
subjetividade dos trabalhadores e da juventude e que podem ficar fora de
controle em função dos processos mais profundos da luta de
classes que tende a emergir de situações desse tipo, muitas delas
sequer imaginados quando se iniciou a crise.
Não se pode esquecer que cada uma das variáveis da conjuntura
atual carrega consigo elementos explosivos que, ao emergir bruscamente na
superfície da vida política, social e econômica, pode fazer
surgir um conjunto de fenômenos imponderáveis, de difícil
controle, tanto para quem sempre esteve acostumado a resolver os problemas
sociais e políticos pelos velhos esquemas de dominação
(cooptação ou repressão), mas também para quem
está debutando na luta de classes. Gramsci dizia que nos intervalos em
que o velho está morrendo e o novo está nascendo, mas ainda
não se consolidou, aparecem os monstros, que podem ser expressos nos
fatos e acontecimentos mais bizarros, imprevisíveis ou
imponderáveis, nunca vistos em tempos normais, mas também nessas
conjunturas pode se forjar o novo e também emergir dos
subterrâneos da luta de classes movimentos sociais e políticos
até então inimagináveis pelos atores sociais e
políticos em disputa.
Nós estamos vivendo no Brasil um período típico descrito
pelo célebre pensador italiano, mas com um conjunto de
características específicas de um país de capitalismo
maduro, com uma sociedade complexa, majoritariamente urbana, concentrada nas
grandes metrópoles, com perversa distribuição de renda
[1]
e elevados níveis de pobreza e miséria social, fruto de uma
economia de baixos salários e da truculência com que as classes
dominantes sempre trataram a questão social. Singularidades
históricas também levaram à formação de uma
classe dominante antipopular e antidemocrática, viciada no
autoritarismo, fruto de uma tradição de mais de três
séculos de escravidão, o que a torna resistente a qualquer
processo de mudança, por menor que seja. O acirramento da luta de
classes em sociedades com essas características (com o proletariado em
um nível de organização ainda insuficiente para realizar
as mudanças e sem uma vanguarda com força para avançar no
sentido das transformações sociais) se expressa de maneira
diferente das lutas tradicionais do proletariado. É só
observarmos as batalhas diárias nos bairros, a repressão brutal
contra os pobres, as ocupações de terrenos nos centros urbanos e
rurais, mobilizações mais organizadas nas ruas, mas sem ainda a
presença definitiva do proletariado no comando da luta.
De qualquer forma, em função dos problemas que se acrescentaram
àqueles que causaram as extraordinárias jornadas de lutas de 2013
[2]
, da crise política econômica e social que se estabeleceu nos
últimos anos, do golpe parlamentar de 2016 e da ofensiva contra os
trabalhadores e aposentados, além dos escândalos de
corrupção envolvendo toda a institucionalidade, acredito que
estão maduras todas as condições para um levante social no
Brasil. Como há uma debilidade de organização popular,
isso pode acontecer ainda com elevado nível de espontaneidade,
não no mesmo nível que em 2013, tendo em vista o aprendizado
político das massas, mas ainda sem a direção de uma
vanguarda classista e revolucionária, o que significa que novamente as
forças conservadoras farão tudo para tentar manipular a
indignação popular. Portanto, as forças
revolucionárias e classistas devem intensificar o trabalho de base e
seus vínculos com os trabalhadores, a juventude e o povo pobre dos
bairros para disputar e organizar a indignação popular, que em
algum momento não muito distante poderá explodir nas ruas.
As razões objetivas para o levante social
É necessário entender, como elemento mais de fundo de uma revolta
social, a contradição que há entre o nível de
desenvolvimento das forças produtivas no Brasil e as
condições sociais da população. O Brasil
está entre as 10 maiores economias do mundo: possui um parque industrial
integrado em condições de suprir de bens e serviços a
população. Tem ainda um setor de serviços, de
comércio e de finanças bem desenvolvidos, além de um setor
agropecuário em plenas condições não só de
suprir o mercado interno, mas também de gerar excedentes para
exportação. Possui também terra e água em
abundância, sol o ano inteiro, além de praticamente todas as
matérias-primas para a produção nacional. Mas é
importante ressaltar que, apesar do grau de desenvolvimento do capitalismo
brasileiro, em sua essência, a economia está subordinada aos
centros do capitalismo internacional e seus ramos mais dinâmicos
são controlados pelo capital estrangeiro, com a parte mais
orgânica da burguesia associada ao capital internacional.
Mas o conjunto das forças produtivas construídas no Brasil
está em contradições com as relações sociais
de produção atrasadas, um mercado interno restrito, uma economia
de baixos salários e a miséria social. O Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil é o 75º do mundo, fato que
se assemelha aos países mais pobres da África e América
Latina e Ásia. Em algum momento, essa contradição
emergirá de forma explosiva, pelos seguintes motivos:
1. Nas grandes metrópoles e, especialmente nos bairros
periféricos, está o contraponto do grande desenvolvimento do
capital no Brasil, que é um proletariado numeroso, constituído de
mais de 30 milhões de trabalhadores ligados à
produção e cerca de 60 milhões de assalariados,
trabalhadores precarizados ou desempregados. Trata-se de um proletariado com
mais instrução e nível técnico que os trabalhadores
da década de 1970, sem ainda ter passado pelas escolas da luta de
classes. Mas é importante ressaltar que o processo de
urbanização, concentração empresarial,
instrução dos assalariados, além das precárias
condições de vida da população constituem um caldo
de cultura de insatisfação que pode emergir à
superfície com enorme potencial explosivo, muito maior que em junho de
2013.
2. A riqueza e a pobreza travam uma luta surda e dramática nas grandes
metrópoles do país, especialmente naquelas do Sudeste, onde o
capitalismo é mais desenvolvido e onde a opulência da burguesia e
a miséria da população são visíveis para as
grandes massas. Trata-se de uma situação que se assemelha a uma
guerra civil não declarada, com mais de 60 mil assassinatos por ano, em
sua grande maioria de pobres, pretos e periféricos. Parcela expressiva
desse contingente é assassinada nas favelas e periferias das cidades
pelas polícias militares que, sob o pretexto de combater o
tráfico de drogas e pacificar as comunidades, impõem o terror nos
bairros, tratam os pobres como inimigos, agem com truculência nas
invasões de moradias e executam jovens e moradores com enorme impunidade.
3. Os serviços públicos em geral, especialmente transporte,
saúde e educação são terrivelmente precários
e levam à exaustão a paciência da população.
Um trabalhador gasta cerca de 3 horas ou mais no transporte para se locomover
de casa para o trabalho e voltar à sua residência, dentro de
ônibus velhos, desconfortáveis, lotados e sempre atrasados. A
saúde pública prestada à população é
vexaminosa, com longas filas nos atendimentos de postos de saúde e
hospitais, com doentes em macas no chão, além da falta de
remédios e pessoal no atendimento. A educação foi
mercantilizada: dois terços dos estudantes universitários estudam
no ensino privado e o ensino médio público é uma
calamidade. Tudo isso veio à tona em 2013, mas em vez dos problemas
serem solucionados, o governo resolveu radicalizar na
precarização contra a população.
4. As extraordinárias jornadas de luta de 2013 revelaram de forma
explosiva esse conjunto de problemas que todos sentiam, mas que ainda
não tinham se tornado público de forma coletiva. De maneira
surpreendente, tendo como bandeira a revogação do aumento das
passagens do transporte público, centenas de milhares de jovens,
além de outros milhares de proletários precarizados,
saíram às ruas durante vários dias em mais de 600 cidades
do país, enfrentaram a repressão policial e derrotaram os
principais governos estaduais e municipais. As manifestações
cresciam à medida em que a repressão aumentava e se transformaram
em verdadeiro levante social, o que levou o Congresso a prometer um conjunto de
medidas favoráveis à juventude. O próprio governo federal
se viu na obrigação de reconhecer a força do movimento e
prometeu reformas para atender as reivindicações, o que
evidentemente não foi cumprido quando o movimento arrefeceu. A revolta
de 2013 já vinha sendo desenvolvida nos subterrâneos da luta de
classes: a luta contra o aumento das passagens foi apenas o estopim de um
processo mais profundo que estava amadurecendo.
5. Com a crise econômica que se abateu sobre o Brasil, cuja
recessão já dura quatro anos, vieram se juntar ao estoque de
problemas identificados anteriormente, novas e dramáticas
questões sociais: cerca de 20 milhões de desempregados (13
milhões que perderam o emprego de carteira assinada
[3]
e mais sete milhões que já não procuram mais emprego e
não constam das listas de desemprego), aumento da precariedade dos
serviços públicos e queda na renda. Levando-se em conta que cerca
de uma a duas pessoas dependem de cada desempregado, temos algo em torno de 40
a 50 milhões de pessoas em situação social
dramática. Imaginem uma conjuntura de prolongada recessão, com
corte dos gastos sociais, um ajuste predatório por 20 anos,
degradação dos serviços públicos e adicione a isso
40 a 50 milhões de pessoas desempregadas, sem renda
e próximo ao desespero. Numa situação dessa ordem torna-se
fácil imaginar o caldeirão social em efervescência que
está sendo preparado no Brasil.
6. Em meio à estagnação do PIB e o desemprego, o governo
vem propagandeando, como compensação, constantes quedas na
inflação, o que é explicável pelo próprio
ambiente recessivo do país. No entanto, a redução do
processo inflacionário para a população não
é percebida como tem sido anunciado pelo governo, pois ocorreu aumento
generalizado dos preços administrados, como telefone, água,
energia elétrica e, especialmente, a gasolina e o gás de cozinha,
esses dois últimos em função dos constantes aumentos
determinados pela nova gestão de preços da Petrobrás. Para
uma população com renda decrescente, com suas contas aumentando,
esse é mais um motivo para o crescimento da insatisfação
popular contra o governo. Não é à toa que os
índices de popularidades de Temer nunca ultrapassam a 5%, o que em
qualquer país do mundo levaria o governo à renúncia.
7. Para dramatizar ainda mais a situação, o governo se faz de
surdo e avança com a agenda neoliberal predatória, acirrando o
descontentamento e a luta de classes. Parece que as classes dominantes
brasileiras resolveram brincar com fogo. Já aprovaram o ajuste fiscal
[4]
por 20 anos, que representa a barbaridade social mais profunda que um governo
já fez. Aprovaram ainda uma reforma trabalhista que retroage os direitos
dos trabalhadores para o período da República Velha
[5]
, quando não existiam direitos regulados na legislação
brasileira. Aprovaram também a lei das terceirizações, que
precariza as relações trabalhistas e leva a insegurança ao
conjunto dos trabalhadores. Agora, para completar a barbárie social,
estão tentando de todas as formas aprovar a reforma da
previdência, que praticamente inviabiliza as aposentadorias para a
maioria dos trabalhadores e reduz o salário dos aposentados, tudo isso
para favorecer o grande capital, especialmente os grandes bancos, seguradores e
empresas de planos privados de aposentadoria.
A crise política, a corrupção e a
desmoralização do sistema
A esse conjunto de problemas pode ser adicionada ainda uma crise
política tão profunda que está pondo em questionamento
toda a credibilidade do sistema político brasileiro, a partir das
denúncias de corrupção que envolve não apenas o
Parlamento, os principais grupos empresariais do país, setores do
Executivo federal, estadual e municipal e parte do Judiciário. Em outras
palavras, aos olhos da população, todo o sistema está
podre, afinal, cerca de 190 parlamentares estão indiciados na
Justiça, a maior parte dos ministros e ex-ministros, o próprio
presidente da República, além de governadores, prefeitos,
dirigentes políticos e empresários das principais empresas.
Quando mais se aprofundam as investigações, mais a sociedade toma
conhecimento de novas falcatruas envolvendo personagens até então
tidos como ilibados. Em síntese, estamos diante do governo mais
impopular, corrupto e odiado pela população brasileira de todo o
período republicano.
A conjuntura política está criando uma espécie de senso
comum no imaginário popular de que é preciso urgentemente uma
faxina geral no país, muito embora a população ainda
não tenha encontrado forças para se expressar coletivamente,
superar a velha ordem e construir um novo rumo para a nação.
Quais são os principais elementos da crise política que,
combinados com os elementos objetivos da crise econômica e social, podem
levar a uma explosão social contra o sistema político brasileiro?
Um conjunto de variáveis conflui para a compreensão da
dinâmica da crise política: a crise sistêmica global e seus
impactos no Brasil; o fim de um longo ciclo de lutas sociais e políticas
no país e as denúncias de corrupção que envolvem
toda a institucionalidade e os grandes conglomerados empresariais. Vejamos mais
detalhadamente essas variáveis da conjuntura explosiva que vivemos no
Brasil:
1. A crise sistêmica global vem castigando o capitalismo há cerca
de 10 anos e até agora os gestores do capital ainda não
encontraram uma saída para a estabilização e retomada do
crescimento nas economias centrais. Essa crise impactou fortemente no Brasil e
levou a burguesia a descartar o PT e seus satélites e implantar um
governo puro sangue com o objetivo de rebaixar os salários, cortar
direitos e gastos sociais e disciplinar o trabalho. A burguesia descartou o PT
porque este já não conseguia administrar o capital como
anteriormente, em função do aprofundamento da crise
econômica e porque o capital necessitava de ajustes radicais e imediatos,
medida que o PT, em função de sua base social, só poderia
realizar de maneira lenta e gradual. Além disso, o PT também
já não controlava mais as massas, uma vez que as jornadas de
junho de 2013 foram realizadas por fora dos movimentos sociais que o PT
controlava. Dessa forma, o PT já não era funcional para capital e
por isso foi descartado de maneira desmoralizante.
2. O Brasil também está vivendo o final de um longo ciclo de
lutas sociais e políticas que se iniciaram com as greves do ABC no final
dos anos 70 do século passado e fecharam dramaticamente com o
impeachment da presidente Dilma. Esse ciclo foi profundamente pedagógico
porque demonstrou mais uma vez o fracasso e a desmoralização da
política de conciliação de classes. Por mais que o PT e
seus satélites tenham governado essencialmente para o capital, com
políticas compensatórias que não representaram sequer 20%
dos lucros dos rentistas, a burguesia resolveu destituí-los quando achou
necessário. Esse ciclo também mostrou que a democracia
representativa só interessa à burguesia quando está a
serviços de seus interesses. Quando é necessário mudar os
rumos da institucionalidade, não hesita em criar pretextos e violar as
regras que eles mesmos fizeram. Demonstrou também que as
eleições no Brasil são compradas pelos grandes grupos
econômico-financeiros, tanto no Executivo quanto do Legislativo, e que o
sistema eleitoral tem sido uma fachada para justificar os interesses da
burguesia.
3. A instituição de um governo puro sangue aprofundou a crise
política porque os golpistas, para angariar apoio da
população, costumavam dizer que o obstáculo para a
retomada do crescimento, do emprego e da ética na política era
exatamente o governo do PT. No entanto, o governo instalado pelo capital,
especialmente o setor rentista, não resolveu nenhum dos problemas que
prometera resolver. Pelo contrário, a economia continuou em processo de
estagnação, o desemprego aumentou extraordinariamente, os gastos
sociais foram cortados de maneira drástica, o que precarizou ainda mais
os serviços públicos, além do fato de realizar um conjunto
de contrarrefomas que vêm destruindo toda a legislação
conquistada pelos trabalhadores ao longo do século XX. Muitos dos que
apoiaram entusiasticamente a queda do governo anterior, agora se sentem
traídos diante das medidas tomadas pelo governo;
4. Para ampliar a crise de representatividade, a população foi
tomando conhecimento diariamente de que o governo que acabara de assaltar o
poder em Brasília era constituído por uma quadrilha muito mais
envolvida na corrupção que o governo anterior, a começar
pelo presidente, considerado pela justiça o chefe da
organização criminosa, além de grande parte dos ministros,
governadores, prefeitos e assessores. Mas não é somente o
Executivo: a corrupção envolve os grandes industriais,
empreiteiras, bancos, o agronegócio e empresas de serviços em
geral. Na prática, estes são os principais corruptores e
constituem-se no elo principal da cadeia de promiscuidade entre o setor privado
e o setor público. Em outras palavras, parafraseado a linguagem do
tráfico de drogas, os grandes empresários são os
atacadistas
[6]
enquanto os políticos tradicionais são apenas os varejistas do
tráfico, ou seja, enquanto os empresários ganham rios de dinheiro
com a dívida pública, as renúncias fiscais e os lucros
monopolistas, o lumpesinato político é pago com as sobras para
operar seus negócios no Legislativo e no Executivo.
Por que o governo ainda não caiu?
As pessoas perguntam com razão, tanto no Brasil quanto no exterior, como
pode se manter no poder um governo com menos de 5% de popularidade, odiado pelo
povo, envolvido comprovadamente até o tutano com a
corrupção, com ministros, ex-ministros e assessores flagrados com
malas de dinheiro em seu poder? E mais, como um governo nessas
condições tem capacidade de realizar a mais dura ofensiva contra
os trabalhadores, a juventude o povo dos bairros sem que haja uma
reação popular? Realmente, esse é um dos paradigmas mais
complexos da crise brasileira para se decifrar, mas tem uma
explicação plausível, por dois motivos principais:
1. Esse governo ainda não caiu porque é funcional para o capital
enquanto estiver fazendo o trabalho sujo, ou seja, enquanto continuar
implantando a agenda neoliberal que toda a classe dominante almeja. Mesmo que
haja divergências entre as frações da classe burguesa sobre
quem apoiar em 2018 ou mesmo diante da possibilidade de uma explosão
social, todos eles estão unidos com relação à
implantação das contrarreformas, porque trata-se de uma burguesia
inteiramente afinada com os interesses do capital internacional. É
só comparar o programa neoliberal que está sendo implantado em
várias partes do mundo com a agenda da Confederação
Nacional da Indústria Brasileira. Enquanto não houver a
emergência de um movimento social com força suficiente para mudar
a conjuntura, eles vão continuar dando sustentação ao
governo,
2. As organizações do movimento sindical e do movimento popular
que cresceram e se desenvolveram com o velho ciclo estão muito mais
interessadas nas eleições de 2018 do que com o movimento das
ruas. Tentam criar a ilusão de que, se Lula voltar à
presidência, fará um governo diferente porque aprendeu com o
passado. É pura ilusão mesmo, pois se Lula ganhar novamente a
presidência fará um governo pior que o anterior, em
função das condições objetivas da conjuntura e das
alianças com as mesmas forças do passado que está
costurando agora. Além disso, essas direções sindicais
perderam a ligação com as bases e atualmente lutam muito mais
para manter os aparatos conquistados nos períodos em que ainda lutavam
do que efetivamente para mobilizar os trabalhadores e a juventude para a luta
nas ruas. Por isso, fazem corpo mole em todos os processos de
mobilizações e greves que vêm ocorrendo contra o governo.
Já as organizações do sindicalismo amarelo, muitas delas
fundadas com dinheiro do capital para se contrapor às então
organizações classistas, sabotam permanentemente as
mobilizações e greves e só delas participam quando
são empurradas pelas bases.
3. Por sua vez, as organizações sindicais e movimentos populares
classistas ainda têm pouca influência no movimento social,
já que os dois principais setores identificados acima ainda controlam os
aparatos sindicais e o dinheiro oriundo do imposto sindical
[7]
. Mas essas organizações tendem a se esgotar com o fim do ciclo:
as do campo petista porque são incapazes de fazer uma autocrítica
do período em que funcionaram como bombeiros da luta de classes e
também porque estão tão vinculadas com a
institucionalidade que romper com esse padrão seria o mesmo que decretar
sua falência; as do sindicalismo amarelo porque o acirramento da luta de
classes os varrerá da conjuntura. Mesmo enfrentando as máfias
sindicais e os jagunços que esses dois polos sempre utilizam nas
eleições sindicais para se manter no poder, as
organizações classistas vêm crescendo, muito embora num
nível aquém das necessidades da luta de classes no Brasil. Essa
transição levará certo tempo para ser concluída,
mas é inevitável a mudança na correlação de
forças com a ascensão das lutas sociais.
4. Apesar do enorme grau de insatisfação da
população com o governo, as organizações
revolucionárias e classistas ainda não conseguiram construir um
programa unificado e uma unidade orgânica que as possibilitassem atuar de
maneira unificada na conjuntura, de forma a transformar a
indignação popular em luta organizada e unificada contra o
governo. Até agora as velhas organizações do ciclo
anterior, por terem mais recursos financeiros e os aparatos sindicais, ainda
exercem hegemonia sobre o formato e o destino das lutas. Como não
estão interessadas em derrubar o governo, mas apenas desgastá-lo
para facilitar a volta de Lula, fingem que lutam e assim prestam um enorme
desserviço ao enfrentamento efetivo com os golpistas. Só a firme
ascensão das lutas sociais pode mudar essa correlação de
forças, proporcionando que as forças revolucionárias e
classistas assumam a direção do movimento.
Um novo ciclo e as possibilidades
Além dessas questões, é importante ressaltar ainda que
estamos iniciando um novo ciclo de lutas sociais, que começou com as
jornadas de junho de 2013 e prossegue atualmente, mesmo com avanços e
recuos, como é natural em qualquer ciclo de lutas. Ao longo desse novo
ciclo ocorreu uma série de lutas que mostraram a
disposição dos trabalhadores e da juventude para a
mudança. Não se podem esquecer as ocupações dos
secundaristas
[8]
, jovens entre 13 e 17 anos, sem experiência na luta de classes, que
derrotaram o governo estadual mais reacionário do país, há
mais de 20 anos no poder no Estado de São Paulo e conseguiram ainda a
façanha de unificar toda a esquerda e as forças progressistas em
torno dessa luta. Poucos acreditavam que adolescentes tivessem
condições de realizar tamanha façanha, mas eles ousaram
lutar e conseguiram vencer.
Posteriormente, seguiram-se ocupações de escolas, universidades e
institutos federais em todo o Brasil, agora incorporando a luta contra o
governo usurpador de Michel Temer. Ocorreram ainda manifestações
de massa espontâneas contra o governo como na inauguração
das olimpíadas e nos estádios de futebol. Também foram
realizadas manifestações de rua e dias nacionais de
manifestações e greves, até chegarmos ao ponto de realizar
a maior greve geral do país
[9]
, com cerca de 40 milhões de
trabalhadores paralisando as atividades. Em seguida, o movimento sofreu grande
derrota quando outra greve geral marcada para o dia 30 de junho fracassou em
função da traição do sindicalismo amarelo e do
corpo mole das centrais que outrora foram combativas e agora estão mais
preocupadas com as eleições de 2018 do que com a ascensão
do movimento operário e popular.
Mas a luta de classes é assim mesmo, tem avanços e recuos. O
importante é entender o sentido maior do movimento e suas perspectivas.
Em algum momento as massas retomarão as lutas porque um ciclo quando se
abre tem três possibilidades: pode ser derrotado, cooptado ou pode
vencer. No Brasil já tivemos exemplos clássicos desses processos:
o ciclo que se abriu no início da década de 60 do século
passado, com as lutas dos trabalhadores urbanos, dos estudantes e dos
camponeses, foi derrotado pelo golpe militar de 1964. O outro ciclo que se
iniciou com as greves do ABC e que contribuiu para a derrota da ditadura e
formou organizações sociais e políticos que enfrentaram
bravamente o capital, foi cooptado nos governos do PT. Portanto, o ciclo
inaugurado em 2013 pode ser considerado uma obra aberta, tendo em vista o
acirramento da luta de classes no país, a impopularidade do governo
Temer, a ofensiva do capital contra os direitos e garantias dos trabalhadores e
a insatisfação generalizada contra a situação
social e política. Nessa conjuntura, um incidente qualquer pode
funcionar como uma faísca que pode fazer explodir a
indignação social.
Em outras palavras, a confluência da crise nas áreas da economia,
na política e nas relações sociais, misturada com as
denúncias de corrupção, aliada à grande
insatisfação da sociedade, a impopularidade do governo e as
demandas reprimidas da população, podem levar à
emergência de um levante social no país. Aparentemente,
está tudo calmo, com uma população passiva diante do que
está acontecendo. Mas isso é apenas a aparência do
fenômeno, pois nos subterrâneos da luta de classes o movimento pode
ser diferente. Podemos estar naqueles momentos em que a calmaria antecede a
tempestade. Vale lembrar que a emergência de levantes e explosões
sociais são difíceis de detectar. Os últimos que
aconteceram no Brasil não foram percebidos por nenhuma força
política ou social e ocorreram com elevado grau de espontaneidade, como
a luta pelas
diretas já,
o
impeachment de Collor
, as
manifestações de junho de 2013.
No entanto, na conjuntura que estamos vivendo, torna-se realista prever a
emergência de novas e intensas lutas sociais pelas próprias
características da crise brasileira e do grau de acirramento da luta de
classes no país.
As tarefas da esquerda revolucionária e classista
Diante dessas condições, que fazer? Antes de tudo, é
importante ressaltar que a emergência das explosões sociais
é difícil de perceber porque trata-se de processo que se forma
silenciosamente no interior das contradições da sociedade e
só vem à tona quando estão maduras todas
contradições sobre as quais estava assentado. Outro fator que
problematiza a percepção dos levantes sociais é o fato de
que, mesmo que alguém ou alguma força política tenha
capacidade de prevê-los ou pelo menos intuir a sua emergência,
dificilmente consegue impor esse ponto de vista, porque se trata de processo
que não se pode aferir objetivamente e, portanto, essas previsões
logo são classificadas pelas forças políticas como
previsão subjetiva, confusão entre a vontade e a realidade e
coisas do gênero. Em pouquíssimas ocasiões se obteve um
consenso majoritário sobre esta questão. Portanto, o que estamos
defendendo está sujeito a esse conjunto de
problematizações, mas isso não impede de colocar a
questão, buscando argumentos objetivos para sustentar essa tese.
Se o que estamos intuindo estiver correto, então é fundamental
elencarmos algumas linhas de ação para que se possa atuar com
algum êxito na conjuntura. Mas antes, é importante fazermos duas
advertências: a) sabemos perfeitamente que vivemos uma conjuntura
difícil, mas os revolucionários estão na luta para
resolver problemas difíceis. Se a vida fosse fácil para
nós já teríamos conquistado o socialismo. Portanto, nosso
destino é trabalhar sempre em conjuntura difíceis; b) da mesma
forma, os revolucionários não devem ter medo das crises. As
crises são dolorosas, desagregadoras, mas também abrem janelas de
oportunidades para os movimentos sociais e políticos emergirem com
força e vale lembrar que todas as grandes mudanças na
história da humanidade foram realizadas nos momentos de grande crise.
Portanto, crise e dificuldade não devem ser motivos para
prostração, inatividade ou desânimo. Pelo contrário,
devemos ampliar a criatividade, reorganizar forças para enfrentar a
crise e buscar uma solução do ponto de vista das forças
populares.
Nessa conjuntura, duas principais tarefas se impõem para as
forças revolucionárias e classistas: a)
reorganização da esquerda, construção de um campo
que construa um programa mínimo unitário para a nossa classe e
que enfrente a política de conciliação derrotada
ideologicamente no ciclo anterior mas ainda com forte presença nos
aparatos de classe; b) reorganização do movimento operário
e popular, a partir das bases, com a retomada dos sindicatos para o campo
classista, das entidades estudantis para o campo da luta,
intensificação do trabalho de organização nos
bairros a partir de suas reivindicações específicas dos
moradores, além de dar um novo sentido às suas
associações e entidades representativas. Não se pode
esquecer que é nos bairros onde mora a imensa maioria dos trabalhadores
e da juventude. São tarefas difíceis que exigem paciência,
disposição para a luta, trabalho de formiguinha para se
alcançar resultados sólidos. Mas em conjunturas velozes como a
que estamos vivendo, o êxito nesse trabalho pode vir muito mais
rápido do que imagina a vã filosofia da acomodação.
Vejamos cada uma dessas tarefas:
1. Reorganização das forças revolucionárias e
classistas e construção do programa.
Nenhuma organização revolucionária, sozinha, tem
condições de realizar as transformações que o
Brasil necessita. Por isso, entendemos como fundamental o fortalecimento das
frentes de esquerda, hoje ainda embrionárias, as ações
conjuntas no movimento de massas, de forma a que, em algum momento da luta de
classes não muito distante, se chegue a um consenso sobre a necessidade
de um
Encontro Nacional do Movimento Sindical e Popular
para que se inicie a construção de um programa mínimo
unitário dessas forças e, a partir desse acordo, a
construção de uma frente orgânica de esquerda com
capacidade de atuar unitariamente no movimento sindical e popular. Um acordo
dessa ordem significaria um salto de qualidade na atuação junto
aos movimentos sociais e políticos e uma sinalização
imprescindível para o proletariado, a juventude e o povo pobre dos
bairros de que agora possuem uma direção política capaz de
unificar as lutas e colocá-los em movimento.
2. Com a esquerda unida organicamente e com um programa mínimo
será mais fácil a iniciativa de
reconstrução do movimento operário e popular a partir das
bases,
porque evitaria a dispersão e a atomização de
forças por parte de vários grupos e partidos de esquerda.
Concentraria recursos humanos e materiais nas disputas políticas e
proporcionaria uma grande sinergia revolucionária na militância.
Em algum momento a ascensão do movimento social vai levar todas as
forças revolucionárias e classistas, pelo menos aquelas que
não são autoproclamatórias, nessa direção,
mas seria importante que as lideranças dos partidos
revolucionários e movimentos sociais classistas se antecipassem a esse
momento e desde já preparassem as condições
políticas para que essa conjuntura se transforme em realidade.
A construção do programa, a unidade orgânica da esquerda e
a reorganização do movimento sindical e popular não
têm nenhuma contradição com a frente única contra a
quadrilha que tomou o poder no Planalto
[10]
e vem realizando a ofensiva contra os
trabalhadores e a juventude. Uma coisa é a luta contra o inimigo comum
na atual conjuntura, outra é a disputa salutar e democrática por
hegemonia no movimento social e político. Na disputa mais geral todos
estão juntos, mas é natural que existam divergências entre
os componentes da frente única. A própria luta de classes vai se
encarregar de clarear as diversas posições das forças
políticas e sociais, ultrapassando aquilo que não corresponde
mais à realidade e criando uma nova dinâmica na luta social e
política, evidentemente com a vitória das posições
com maior aderência à realidade. O importante é que o campo
revolucionário e classista encontre a unidade e programa mínimo
para apresentar à sociedade uma alternativa tanto à
política de conciliação de classes quanto à direita
e o capital, de forma a colocar os trabalhadores, a juventude e o povo pobre
dos bairros em movimento para as transformações sociais no Brasil.
21/Dezembro/2017
NR
[1] Renda: no Brasil chamam de renda não só ao rendimento
dos rentistas como também a qualquer outro tipo de rendimento, inclusive
os salariais.
[2] Ver
resistir.info/brasil/jornada_lutas_30jul13.html
[3] Carteira assinada: no Brasil cada trabalhador precisa ter uma
carteira, emitida pelo Ministério do Trabalho, em que as entidades
patronais registam as suas funções e o salário.
[4] Ajuste fiscal: o chamado ajuste fiscal foi iniciado pelo lulismo
durante o governo da sra. Dilma Roussef. Ver
resistir.info/brasil/republica_de_delinquentes_31ago16.html
. O actual governo Temer-Meirelles prolongou-o, congelando por 20 anos
quaisquer aumentos de despesas sociais a fim de atender aos interesses do
capital financeiro.
[5] República Velha: a república que vigorou de 1889 a
1930.
[6] Atacadistas: grossistas em Portugal
[7] Imposto sindical: lei do período getulista que destina um dia
de salário por ano de cada trabalhador para o respectivo sindicato.
[8] Ver
resistir.info/brasil/levante_secundaristas_12jan16.html
[9] Ver
resistir.info/brasil/edmilson_03mai17.html
[10] Planalto: palácio em Brasília, sede do governo federal.
[*]
Secretário Geral do PCB
O original encontra-se em
pcb.org.br/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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