Caminhos da transformação
(uma abordagem teórica)
1. A história da modernidade
é a história da formação, pela primeira vez, de um
sistema-mundo. Nos últimos quinhentos anos, os antigos subsistemas
humanos, que existiram em relativo isolamento durante milênios, foram
unificados em um novo sistema muito mais amplo. Essa unificação
foi feita por meio da incorporação de áreas e povos ao
controle e influência do antigo subsistema europeu.
O transbordamento da história européia em história mundial
fez com que o mundo inteiro ingressasse em um estado de crise permanente, que
dura até hoje. Nenhuma sociedade humana ficou imune a ela. As sociedades
do Hemisfério Americano foram violentamente desestruturadas, e o que
restou delas foi reincorporado como pólo fornecedor de metais preciosos,
outros minérios, bens agrícolas ou força de trabalho. Nas
sociedades africanas, a prática da escravidão, preexistente, se
disseminou amplamente a partir do momento em que os circuitos mercantis em
expansão passaram a demandar quantidades crescentes de
mão-de-obra. Os grandes Estados asiáticos, via de regra,
tornaram-se colônias, e assim permaneceram, de fato ou de direito,
até o século XX.
Todas essas áreas, que sempre abrigaram a grande maioria da humanidade,
vieram a formar a periferia do moderno sistema-mundo. Nelas, as promessas do
capitalismo nunca se realizaram.
2. Como não poderia deixar de ser
, os agentes e promotores das transformações construíram
suas próprias maneiras de compreender e conferir sentido ao que faziam.
Primeiro foi a difusão do cristianismo, mas ela correspondia à
consciência de um tempo histórico que estava sendo ultrapassado.
Logo veio uma consciência nova. A sociedade burguesa não demorou a
entender-se como o que, de fato, era: um mundo novo, vocacionado para
expandir-se e revolucionar o planeta. A humanidade inteira caberia nele. A
história passou a ser concebida como um processo, e a filosofia da
história permitiu o planejamento utópico do futuro. A
catastrófica mutação em curso permaneceu envolta no
véu mítico da idéia de progresso, que permitia a fuga para
frente em que estamos imersos até hoje.
O Iluminismo forneceu os dois conceitos fundamentais Razão e
liberdade que justificaram o papel universal da burguesia
européia. Conceitos gêmeos. Até então, a
revelação e a tradição é que forneciam
normas válidas para a organização da vida social. O
pensamento só poderia ocupar esse lugar central se também dele
fosse possível deduzir princípios e normas universais que
escapassem dos limites da mera opinião. Os iluministas afirmaram que
isso era possível: o pensamento podia produzir esses conceitos
universais, e à sua totalidade eles denominaram Razão. A
Razão pressupunha a liberdade, pois o sujeito só pode atingir a
verdade se o seu esforço de conhecimento não reconhecer nenhuma
autoridade externa que lhe imponha limites, e a liberdade pressupunha a
Razão, pois ser livre é poder agir de acordo com o conhecimento
da verdade.
Ao contrário dos defensores das tradições, necessariamente
vinculadas a sociedades específicas, as vanguardas da modernidade
européia logo proclamaram a validade universal de suas
proposições. A partir daí, o tribunal da Razão,
presidido pela burguesia, enquadrou, passo a passo, todas as esferas da vida.
As mitologias, as religiões, a arte, a tradição, o
direito, o Estado, a política e a economia, tudo foi julgado à
luz do ideal homogeneizador do progresso. Todas as demais formas de
estar-no-mundo foram declaradas inapelavelmente arcaicas. Estavam em curso,
segundo Max Weber, a racionalização e o desencantamento do mundo,
que formariam a essência mesma da modernidade.
[1]
3. Se quisermos debater o advento
de um mundo novo, no século XXI, é da crítica a esses
fundamentos que devemos partir. A crítica à consciência
histórica da burguesia européia deve começar por inserir
essa consciência na história. Marx propôs-se fazer isso.
Mostrou que o motor da expansão européia não estava na
Razão ou na liberdade, considerados como conceitos abstratos, mas em
outro lugar: estava no desenvolvimento pleno, pela primeira vez, das
potencialidades e das contradições da forma-mercadoria. Ela
esteve presente, é verdade, na grande maioria das sociedades, mas sempre
de maneira marginal e limitada. A sociedade burguesa a libertou,
transformando-a em princípio organizador da vida social.
Marx estudou a fundo esse novo mundo. Depois de muito meditar, definiu como seu
ponto de partida a própria mercadoria: é valor de uso, é
valor de troca, é fruto do trabalho humano. Não pode existir no
singular: só há mercadoria onde há mercadorias. A
relação mais simples é, pois, M M, e o sentido
dessa relação é claro: é a troca de qualidades,
pois, considerado como valor de uso, o primeiro M (por exemplo, trigo) é
necessariamente diferente do segundo (por exemplo, lã). Por outro lado,
a troca só se torna possível porque os agentes nela envolvidos
estabelecem um princípio de equivalência entre duas coisas
distintas. (Para efeito da análise que vamos fazer, não importa
qual é esse princípio e nem ele precisa ser imutável;
basta constatar que ele está presente em cada situação
concreta de troca; defenderei, implicitamente, a idéia de que os
intermináveis debates sobre a substância do valor têm menos
importância do que o próprio Marx lhe atribuiu, e tentarei mostrar
que essa diferença de ênfase tem grande importância
política.)
A troca direta, na forma M M, jamais poderá organizar em torno de
si a vida social, pois é muito limitada no espaço e no tempo: o
proprietário de trigo que necessita de lã precisa encontrar, no
mesmo momento, no mesmo lugar, o proprietário de lã que necessita
de trigo. Se essa dupla condição não for cumprida, o ato
de troca não se realiza. Por isso, a forma M M só opera na
margem da vida social.
Para que o espaço mercantil se desenvolva é necessário
explicitar e desvelar aquele princípio de equivalência que, na
troca simples, estava implícito e velado. Isso ocorre quando uma
mercadoria qualquer passa a representá-lo. Essa mercadoria que se torna
equivalente geral não importa se é ouro, prata, sal ou
outra qualquer se chama dinheiro. Com o tempo, ele perde seu substrato
material para tornar-se completamente simbólico. Quando ele passa a
intermediar o ato de troca, este assume a forma M D M. O sentido
da operação original (M M) é preservado, pois
também aqui os agentes partem de um dado M (por exemplo, trigo) para
chegar a outro M (por exemplo, lã), qualitativamente diverso. D serve
apenas como facilitador do processo: agora, o proprietário de trigo que
precisa de lã não necessita mais encontrar o proprietário
de lã que precisa de trigo. Ele troca sua mercadoria com qualquer
pessoa, em qualquer lugar, em qualquer momento, e recebe o equivalente geral.
De posse desse equivalente, compra a mercadoria que desejar, de qualquer outra
pessoa, em qualquer outro lugar, em qualquer outro momento. O
espaço-tempo da troca se amplia.
A direção do processo aponta para um novo desdobramento. Pois
logo a posse do equivalente geral torna-se mais desejável do que a posse
de uma mercadoria específica: quem tem o equivalente, tem
in potentia
qualquer mercadoria. Grupos sociais crescentemente importantes passam a operar
em um outro circuito de troca: D M D'. Desaparece a
diferença qualitativa entre as duas pontas do processo. É de uma
acumulação quantitativa que agora se trata: obter mais do mesmo
(D' deve ser maior do que D). Libertadas dos estreitos limites do valor de uso,
as relações de troca se expandem ainda mais, agora colocadas a
serviço da ampliação da riqueza abstrata, ilimitada por
definição.
Essas passagens foram realizadas muitas vezes ao longo da história, em
muitas sociedades, criando por toda parte a figura de comerciantes,
atacadistas, mercadores e banqueiros. Mas, em todas as sociedades anteriores, a
acumulação de capital era sempre bloqueada num ou noutro ponto,
mesmo quando havia empreendedores capazes de colocá-la em marcha.
[2]
Às vezes não havia força de trabalho disponível
para produzir o que vender; às vezes não havia redes de
distribuição dos produtos; às vezes não havia
pessoas dotadas dos meios necessários para comprá-los; às
vezes o processo ia do início ao fim, mas o empreendedor não
conseguia reter consigo o lucro e reinvesti-lo, reiniciando o ciclo. Antes dos
tempos modernos, esse conjunto de condições raramente se
completou e nunca adquiriu estabilidade suficiente. Com muita
freqüência, os detentores da autoridade política, militar ou
moral agiam para desmontá-lo, considerando-o perigoso ou imoral. A
acumulação primitiva de capital, via de regra, foi interrompida
por guerras, confiscos e perseguições. Afinal, como dizia Marx, o
dinheiro tem um papel dissolvente das qualidades, e por isso sua
acumulação sempre representou uma ameaça a sociedades
tradicionais, que reagiam a ela.
4. O que houve de novo
na Europa moderna, e que está na gênese do mundo atual, foi a
inclusão, no circuito do dinheiro, de três elementos que sempre
haviam ficado fora dele: a força de trabalho humana, a terra e os meios
de produção. Transformar coisas em mercadorias é banal,
mas não é banal transformar em mercadorias os atributos
fundamentais das pessoas e da natureza. Em um livro notável, Karl
Polanyi chamou essa passagem de a grande
transformação e mostrou a violência que ela implica.
[3]
Se tudo se transforma em mercadoria, então o circuito mercantil
reorganiza à sua imagem e semelhança, pela primeira vez na
história humana, toda a vida social. Todos os agentes sociais
relevantes, inclusive os detentores do poder político, agora incluem-se
nele. Eis a nova forma, muito mais abrangente: D [FT + T + MP] M
D', em que FT é a força de trabalho, T é a terra e
MP são os meios de produção. Agora, toda
produção é produção de mercadorias, e, para
usar a expressão de Piero Sraffa, a produção de
mercadorias é feita por meio de mercadorias.
[4]
As coisas não mais se transformam em mercadoria; elas são
mercadoria. O circuito mercantil se completou, como a cobra que mordeu o
próprio rabo, e assim se tornou irreversível. Nenhum poder
externo pode mais destruí-lo.
O estudo específico deste circuito, na sua forma mais avançada,
é o objeto de
O capital
. Marx demonstra que a sociedade organizada para produzir essa
acumulação ampliada de riqueza abstrata desenvolverá, pelo
menos, quatro características novas:
(a) será compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias
(M), seja pelo aumento da capacidade de produzi-las, seja pela
transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em
mercadoria; no limite, tudo será transformado em mercadoria;
(b) será compelida a ampliar o espaço geográfico inserido
nesse circuito, de modo que mais riquezas e mais populações dele
participem; no limite, esse espaço será todo o planeta;
(c) será compelida a criar permanentemente novos bens e novas
necessidades; como as necessidades do estômago são
limitadas, esses novos bens e novas necessidades, criados para dar
sustentação a uma acumulação ilimitada,
serão, cada vez mais, bens e necessidades voltados para a fantasia, que
também é ilimitada;
(d) será compelida a contrair o tempo em que o capital existe encarnado
em coisas e valores de uso (FT, MP, M), de modo a mantê-lo, tanto quanto
possível, na sua forma preferencial de riqueza abstrata (D); logo
veremos por que isso será decisivo.
Essas características vão definir a dinâmica fundamental da
nova sociedade. Ela aponta para três direções: uma
revolução técnica incessante (voltada para expandir o
espaço e contrair o tempo da acumulação), uma profunda
revolução cultural (para fazer surgir o homem portador daquelas
novas necessidades em expansão) e a formação do
sistema-mundo (para incluir o máximo de populações no
processo mercantil).
Um enorme esforço de pensamento foi feito durante cem anos mais
ou menos entre 1780 (William Petty) e 1880 (Léon Walras, Carl Menger,
William Jevons, Alfred Marshall) para justificar a existência e
demonstrar o potencial dessa sociedade sem mecanismos visíveis de
regulação, na qual tudo é móvel e o que
é sólido desmancha no ar. Uma sociedade muito estranha,
quando vista em perspectiva histórica.
O discurso que afirma a possibilidade de uma sociedade desse tipo funcionar
tornou-se conhecido como economia política, uma ciência
européia e moderna por excelência.
5. Marx fez a crítica
da economia política. Não vamos revisitá-la aqui. Para
encerrar a parte introdutória deste texto, basta lembrar a engenhosa
solução que concebeu para o enigma da acumulação
capitalista. Ao contrário do que dizia a economia política de seu
tempo, o excedente, que impulsiona essa acumulação, não
pode se formar no próprio mercado, pois ali as trocas, sendo troca de
equivalentes, resultam em um jogo de soma zero entre compradores e vendedores.
O excedente só se forma porque existe uma mercadoria especial a
força de trabalho cujo consumo é realização
de trabalho, ou seja, produção de valor. Ao ser consumida, ela
produz mais valor do que o valor que possui.
Aqui aparecem os fundamentos da teoria da exploração, que
legitimou e impulsionou o movimento operário, especialmente na Europa, e
foi considerada o eixo em torno do qual deveria girar a luta de classes no
mundo contemporâneo. Para demonstrar a exploração do
trabalhador, a teoria do valor é necessária, pois a
exploração é apresentada como sendo a
extração de mais-valor.
Foi nessa análise que o movimento socialista se baseou para definir sua
estratégia: o capitalismo seria superado por uma luta de classes voltada
para eliminar a exploração do trabalho (ou seja, a
extração de mais-valor). Essa superação ocorreria
nas sociedades capitalistas maduras, onde essa forma de relação
social estaria generalizada e plenamente desenvolvida. Não fazia sentido
esperar que as sociedades mais atrasadas parissem algo mais avançado do
que as mais avançadas. (A partir do Iluminismo, lembremos, a
história havia sido compreendida como um processo.)
É bem verdade que a história real subverteu esse esquema, com a
revolução ocorrendo na Rússia atrasada, mas isso
não foi suficiente para alterar bases conceituais tão solidamente
demonstradas. A superação do capitalismo na Europa permaneceu
sendo o evento aguardado por todos os socialistas, mesmo depois da grande
cisão do movimento operário. Socialdemocratas e comunistas
movimentos de clara matriz européia compartilharam essa
visão de fundo, divergindo quanto à via de implementá-la.
Os caminhos, que ambos propuseram, mostraram-se limitados e
problemáticos. Conduziram à crise atual do ideal socialista. A
meu ver, aspectos dessa visão de fundo são o elemento comum do
fracasso.
6. Na esfera política
, a socialdemocracia forma predominante de organização dos
trabalhadores nos países centrais propôs uma luta
essencialmente pacífica. As reformas produziriam uma
transformação processual. Mantidas as regras do sistema
democrático, múltiplos atores políticos atuariam, em
igualdade de condições, no contexto de um conflito regulado. A
competição eleitoral entre eles, associada à
pressão sindical, faria prevalecer os interesses da maioria. Assim
imaginada, a luta política admite uma sucessão infindável
de pontos de equilíbrio que se sucedem no tempo. Não é
difícil ver que estamos diante da política considerada como uma
variante do mercado.
[5]
A socialdemocracia demonstrou a possibilidade de realizar reformas dentro do
capitalismo, pelo menos em certos contextos, mas não demonstrou que sua
estratégia pudesse produzir uma sociedade nova. Pois esta última
condição só se realizaria se as reformas fossem (a)
irreversíveis, (b) cumulativas em seus efeitos, (c) conducentes a novas
reformas, (d) capazes de alterar estruturalmente a correlação de
forças entre as classes sociais e (e) orientadas para edificar uma nova
lógica de funcionamento da vida social. Nenhuma dessas
condições se cumpriu.
[6]
A história mostrou que (a) as reformas são reversíveis,
havendo a possibilidade de desnacionalizar indústrias, eliminar
programas de bem-estar, reduzir a proteção contra o desemprego,
restringir liberdades civis, etc; (b) mesmo que não sejam revertidas, as
reformas não seguem uma sucessão algébrica cumulativa,
pois, com o passar do tempo, a própria agenda de questões se
modifica; (c) nem todas as reformas conduzem a novas reformas; (d) a
correlação de forças não se altera estruturalmente,
pois os capitalistas continuam podendo defender seus interesses no dia-a-dia,
ao decidir como e onde desejam investir o excedente, enquanto os trabalhadores
só podem reivindicar seus direitos coletivamente e de forma indireta,
com a intermediação de organizações que se inserem
em sistemas de representação; (e) muitas reformas acabam sendo
absorvidas pela lógica do sistema dominante, contribuindo para sua
modernização, e não para sua superação.
A possibilidade de realizar reformas, em certos contextos, não é
suficiente para demonstrar que o reformismo seja uma estratégia
viável de transição para o socialismo. Aliás, hoje
sabemos que a conjuntura do segundo após-guerra, que permitiu o aparente
êxito da estratégia reformista, foi excepcional e já deixou
de existir. O keynesianismo foi o limite da socialdemocracia, abatido pela
globalização do capital.
7. Os comunistas apostaram na revolução.
Neste caso, a política é concebida como um confronto entre
forças que se preparam para uma batalha decisiva, na qual um lado
imporá ao outro a própria vontade. Mesmo nas fases processuais,
preparatórias do desenlace, está presente a tendência a uma
bipolarização entre dois blocos organizados em torno de um plano
estratégico que visa à máxima acumulação de
forças para o momento do enfrentamento final. Não é
difícil ver que estamos diante de uma concepção da
política como uma variante da guerra.
[7]
Essa concepção não teve êxito nas sociedades que
Gramsci qualificou de ocidentais, nas quais o poder não
está concentrado no aparato estatal,
stricto sensu,
mas espalhado em um conjunto de instituições da sociedade
civil. Foi na Rússia uma sociedade oriental no
sentido gramsciano do termo que a revolução ocorreu. Foi
ali, então, na década de 1920, que a questão da
transição ao socialismo se colocou como um problema
prático. A forma como ele foi pensado e resolvido nesse contexto
específico acabou por marcar profundamente a história do
socialismo no século XX.
Combinando centralização econômica (planejamento) e
centralização política (autoritarismo), o modelo
soviético criou condições para recuperar com grande
rapidez o atraso econômico inicial. Ele acelerou a
acumulação de capital industrial, ajudando a concentrar os
recursos escassos, antes dispersos, e a colocar estes recursos a serviço
de objetivos bem-definidos. Isso possibilitou investimentos em grande escala e
a rápida multiplicação da produção em massa
de insumos e bens padronizados. Foi um êxito, pelo menos por algum tempo
e sob certo ponto de vista. Por isso, seduziu mais de uma geração
de valorosos lutadores. Porém, não resolveu o problema da
transição ao socialismo. Na verdade, gerou uma grande
confusão: a capacidade de recuperar atrasos do passado foi confundida
com a construção da sociedade do futuro.
O que assistimos no fim do século XX não foi o fim da
possibilidade do socialismo, mas o esgotamento de modelos de
transição pensados na Europa no início do século
XX. O caminho socialdemocrata mostrou-se incapaz de transcender o sistema e
vulnerável ao seu contra-ataque. O caminho comunista limitou-se a
mimetizar e até radicalizar a matriz produtiva típica do
capitalismo de então, matriz que o próprio capitalismo alterou.
O impasse parece hoje insuperável, quase paralisante. É hora de
rever fundamentos.
11. Retornemos a Marx.
Sabemos hoje que o Marx da maturidade, o Marx que fez a crítica da
economia política (ao contrário do Marx do
Manifesto
) não imaginou que o capitalismo necessitasse de uma
exploração crescente dos trabalhadores, em termos absolutos. Foi
um crítico feroz da lei de bronze dos salários,
defendida por Lassalle, que apontava para um empobrecimento inevitável
do proletariado; sempre divergiu de Bakunin, que associava pobreza e
revolução; e formulou com grande consistência
teórica a possibilidade de caminhos alternativos para o desenvolvimento
capitalista, baseados na expansão da mais-valia relativa (que introduz a
possibilidade de um conflito de classes de soma positiva, para usar uma
expressão da moderna teoria dos jogos).
Mas, há algo ainda mais
importante: o percurso teórico de Marx não foi interrompido na
análise do modo de produção capitalista, tal como ele
aparece na forma D [FT + T + MP] M D'. Seu verdadeiro
lance de gênio foi ter percebido que o capitalismo não se deteria
aí, pois a acumulação realizada assim força o
capital a entrar e sair permanentemente de sua forma líquida,
imobilizando-se sucessivamente em coisas. É uma forma de
acumulação arriscada e que contém em si, do ponto de vista
do capital, muito tempo morto. Ao deixar a forma D, o capital não tem
garantias de que ressurgirá ampliado em D'. Inúmeras causas,
analisadas em detalhe em
O capital
, podem impedir o desfecho exitoso do processo.
Marx concluiu que o capital
procuraria ampliar suas possibilidades de acumulação na forma D
D', na qual ele nunca deixa de existir como riqueza abstrata. E anteviu,
com grande ousadia: quando essa forma se tornasse predominante, a
civilização do capital entraria em crise. Pois, ao repudiar as
coisas, o trabalho e a atividade produtiva, ao afastar-se do
mundo-da-vida, a acumulação de capital não poderia mais
ser o eixo em torno do qual a vida social se organiza. A forma-mercadoria
que, levada às últimas conseqüências pelo
capitalismo, havia reorganizado profundamente as sociedades humanas e
impulsionado o desenvolvimento da técnica teria então de
ser superada ou, pelo menos, remetida novamente a um lugar secundário,
cedendo a vez a algum outro princípio de organização da
vida social.
[8]
O fim do capitalismo, assim concebido, não decorre do aumento nos
níveis absolutos de exploração do trabalho. É de
uma crise civilizatória muito mais ampla que agora estamos tratando.
Marx não precisaria estudar tanto, nem ter grande talento, para anunciar
a superação de um sistema que, a partir de certo ponto,
não pudesse mais funcionar ou causasse o empobrecimento permanente dos
trabalhadores. Nesse caso, o desenlace seria óbvio. O gênio de
Marx foi ter percebido que o capitalismo se esgotaria, mesmo dando certo. Ou
melhor: se esgotaria justamente por dar certo, por desenvolver plenamente suas
potencialidades.
12. É verdade que o Marx
economista e militante enfatizou a crítica à
exploração do trabalho pela extração de mais-valor,
talvez pelo seu potencial mobilizador do movimento operário.
Porém, o Marx filósofo que a meu ver é o mais
importante apontou também outra coisa: mantida sob o comando do
capital e aprisionada nos sucessivos rearranjos da forma-mercadoria, a
capacidade criadora da humanidade capacidade que decorre da sua
liberdade essencial, ontológica poderia tornar-se muito mais
destrutiva agora, quando a potência técnica da própria
humanidade já estaria muito mais desenvolvida. Dependendo de quais
forças sociais predominassem, essa potência técnica
expandida poderia ser colocada a serviço da liberdade (com a
abolição do trabalho físico, cansativo, mecânico e
alienado) ou da destruição.
Esta me parece ser a disjunção mais relevante proposta por Marx e
sua profecia mais certeira. O capitalismo venceu. Estamos, finalmente, em um
sistema-mundo em que tudo é mercadoria, em que se produz loucamente para
se consumir mais loucamente, e se consome loucamente para se produzir mais
loucamente. Produz-se por dinheiro, especula-se por dinheiro, faz-se guerra por
dinheiro, mata-se por dinheiro, corrompe-se por dinheiro, organiza-se toda a
vida social por dinheiro, só se pensa em dinheiro. Cultua-se o dinheiro,
o verdadeiro deus da nossa época um deus indiferente aos homens,
inimigo da arte, da cultura, da solidariedade, da ética, da vida do
espírito, do amor. Um deus que se tornou imensamente mediocrizante e
destrutivo. E que é insaciável: como vimos, a
acumulação de riqueza abstrata é, por
definição, um processo sem limites.
O capitalismo venceu. Talvez, agora, possa perder. Pois, antes que o novo possa
surgir, Hegel dizia, é preciso que o antigo atinja a sua forma mais
plena, que é também a mais simples e mais essencial, abandonando
as mediações de que necessitou para desenvolver-se. O momento do
auge de um sistema, quando suas potencialidades desabrocham plenamente,
é o momento que antecede seu esgotamento e sua superação.
13. A necessidade de encontrar
outra forma de organização social não decorre
primordialmente de os trabalhadores serem mais ou menos explorados este
não é o aspecto essencial da questão. Decorre do fato de
que a humanidade, para sobreviver, precisa finalmente assumir o comando de sua
própria história. Esse passo pressupõe que o
princípio organizador da vida social deixe de ser a
acumulação de capital e a forma-mercadoria. É este o
desafio que está posto para nós neste século. Ainda
não sabemos como resolvê-lo.
Já sabemos, porém, que o socialismo não deve ter como meta
fazer melhor do que o capitalismo as coisas que o capitalismo já faz.
Não cabe ao socialismo ser mais eficiente que o capitalismo, pois
não há eficiência abstrata. Tampouco o socialismo pode
pretender ser um capitalismo planejado, que se libertou das suas
próprias crises, o que, de resto, é impossível. Ele tem de
ser pensando como uma outra sociedade, com outros valores, outros fins e outra
dinâmica. Cabe ao socialismo, antes de tudo, reorganizar a
convivência humana, preservando e valorizando todas as conquistas
civilizatórias que lhe antecederam, e recolocando o ser humano no
centro.
Por que, então, não olhamos com maior abertura de espírito
para a humanidade como um todo? Pois um dos motivos do nosso impasse atual
talvez resida no eurocentrismo da esquerda, uma pesada herança. Todo o
debate que resumi até agora é, antes de tudo, um debate europeu.
14. Permitam-me uma confissão:
sinto-me incomodado com o eterno papel de coadjuvante que temos outorgado aos
povos da periferia, que sempre foram a grande maioria. Eles foram avassalados,
é certo, pelo jovem capitalismo em expansão. Mas, em quinhentos
anos, realidades novas surgiram. Na fase do capitalismo senil, quem sabe
não lhes seja possível desempenhar um novo papel, mais ativo? A
incorporação desses povos ao capitalismo seguiu caminhos
específicos, diferentes, mal compreendidos. Seu papel na
construção do futuro pode estar mal compreendido também.
No centro, como sabemos, a transição ao capitalismo foi
impulsionada por um processo endógeno, que desagregou os modos de vida
tradicionais ao mesmo tempo em que integrava a força de trabalho, a
terra e os meios de produção em relações mercantis.
Mesmo às custas de muito sofrimento, tudo ali se reorganizou para
permitir a produção de mais-valor. Nesse processo,
instituições estatais e mercados internos em expansão
garantiram um desenvolvimento basicamente autocentrado, que gerou
nações capitalistas plenamente constituídas. No
século XX, especialmente no segundo após-guerra, sob
pressão dos trabalhadores, estabeleceu-se uma forte
articulação entre a produção de bens de capital e a
de bens de consumo de massas, de modo que o desenvolvimento das forças
produtivas e o nível de remuneração do trabalho mantiveram
entre si uma relação positiva, possibilitada pelo amplo
predomínio da mais-valia relativa, tal como Marx previra. O capitalismo
ganhou ali mais flexibilidade. Prevaleceu um padrão de luta de classes
que não apontava para a necessidade de transcender a
organização social em vigor. Seu eixo era a luta pela melhor
repartição de um excedente que tendia a crescer. Esse
padrão acabou sendo assimilado pelo capitalismo central como um elemento
de seu aperfeiçoamento econômico, político e cultural.
Nada disso aconteceu na periferia. Nela, o capitalismo foi introduzido por meio
da dominação política. A desagregação das
sociedades tradicionais não foi um processo endógeno, e as
sociedades resultantes foram governadas por elites mais articuladas para fora
do que para dentro. As relações externas determinaram o sentido e
o ritmo do desenvolvimento. A acumulação em regime de
dependência e baseada na exploração de recursos naturais
(ou no latifúndio monocultor) formou com rapidez uma grande massa
despossuída, que se reproduzia nessa condição, sem que, no
outro pólo, formasse capital para absorvê-la em atividades
modernas. Essa massa popular marginalizada permaneceu imersa na mera luta pela
sobrevivência. A maioria nunca foi chamada a engrossar os contingentes do
proletariado industrial. Constituiu apenas uma imensa reserva de
mão-de-obra, que sempre deprimiu a remuneração do
trabalho. Daí o papel pouco relevante dos mercados internos, papel
reforçado pela integração subordinada no sistema
internacional e pelo caráter extrovertido das economias
periféricas, modernizadas a partir dos seus setores exportadores. Tais
sociedades não tenderam a construir Estados nacionais acabados, a
serviço das classes locais.
É de nações incompletas que estamos falando (por isso,
aliás, a questão nacional é diferente no centro e na
periferia do sistema).
15. Os conservadores sempre nos disseram
que, com esforço e poupança, as economias subdesenvolvidas
progrediriam para se igualar a economias capitalistas desenvolvidas. Isso se
mostrou falso: a condição periférica se reproduz e se
aprofunda dinamicamente. Mas também se mostrou falso o esquema
canônico do materialismo histórico, codificado depois da morte de
Marx. Ele nos fala de uma sucessão de modos de produção:
escravismo, feudalismo, capitalismo, socialismo. Esta sucessão
não é universal, a começar pelo fato de que o feudalismo e
o capitalismo desenvolvido são especificidades da história da
Europa (incluindo-se, no caso do capitalismo, as projeções
extra-continentais da civilização européia: Estados
Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia). A
artificialidade desse esquema fica visível quando se vê que o
próprio Marx teve de lançar mão de uma
construção
ad hoc
o modo de produção asiático
para dar conta de uma forma específica de organização
social, considerada quase uma anomalia, que prevaleceu num continente em que
sempre viveram dois seres humanos em cada três. Que anomalia!
Se o esquema não é universal quando descreve como foram o passado
e o presente, por que acreditar em sua universalidade quando ele descreve como
será o futuro? Ele não é politicamente neutro. Pois nos
diz que, assim como o progresso burguês, o socialismo também tem
de vir do centro para a periferia. Enquanto isso não acontecer, resta
à periferia fazer um esforço de modernização.
São estas hipóteses que quero debater, para concluir este texto.
Começo a pensar que são falsas. Permitam-me usar, primeiro, o
exemplo do meu país.
16. A integração do atual Brasil
no sistema-mundo capitalista em formação colocou problemas
novos, que exigiram uma solução também nova. Desde os
tempos antigos, três padrões tradicionais regeram as
relações entre povos dominadores e povos dominados: a pilhagem de
riquezas acumuladas, a cobrança de impostos e o estabelecimento de
relações desiguais de comércio. Nenhum desses
padrões se aplicava aqui. Pois nenhum tornava viável e
rentável a colonização de um vasto território sem
minerais preciosos (a descoberta do ouro, no Brasil, ocorreu mais de trezentos
anos depois do descobrimento) e habitado por grupos humanos
pequenos, nômades ou seminômades, que ainda viviam no
Neolítico. Durante mais de trinta anos esse problema não teve
solução. Para resolvê-lo, organizou-se finalmente uma
empresa territorial de grande dimensão, com administração
portuguesa, capitais holandeses e venezianos, mão-de-obra
indígena e africana, tecnologia mediterrânea (desenvolvida em
Chipre) e matéria-prima (a cana) dos Açores. Esses elementos
foram articulados em uma
holding
multinacional, regida pelo cálculo econômico e pela busca do
lucro. Essa
holding
criou a primeira mercadoria de consumo de massas do mundo o
açúcar , e em torno dessa mercadoria constituiu o moderno
mercado mundial.
Para sustentar esse processo, o
território brasileiro e as sociedades que ele abrigava precisaram ser
completamente reinventados.
[9]
Tudo o que existia a natureza e as pessoas foi
reconstruído para fins mercantis, tendo como horizonte nada menos que o
mercado mundial em formação. Nossas primeiras fronteiras externas
(Tordesilhas) e internas (as capitanias) foram eixos cartesianos. Nossa
exploração econômica foi planejada, com cuidadosa escolhas
de produtos rentáveis e tecnologias eficientes. O ambiente natural
preexistente foi adaptado a essas escolhas, com a substituição
das espécies nativas por plantações de espécies
transplantadas, associada à extração e queima de madeira,
num enorme entorno, para produzir energia. Os habitantes originais foram
dizimados em sua maioria e substituídos por mão-de-obra recrutada
em continentes distintos. Gigantescos recursos foram mobilizados nas principais
praças financeiras da Europa. Constituiu-se um eficaz sistema de
controle contábil. O Estado e a Igreja, desde o início, eram
fracos. Não havia tradição, tudo era cálculo, tudo
estava voltado para o lucro e a acumulação de capital.
O que é isso, senão modernidade em estado puro?
17. Nós sempre fomos radicalmente modernos
. Ainda seguindo o raciocínio de Luis Gonzaga Lima, fomos uma
criação completamente moderna, num período em que a
própria Europa ainda não era moderna, pois não disseminara
os efeitos da Reforma Protestante e não realizara nem a
Revolução Francesa nem a Revolução
Industrial. Nascemos modernos porque fomos uma criação das
vanguardas modernas da Europa banqueiros, navegantes, comerciantes,
desbravadores, aventureiros , que já eram portadoras dos valores e
das práticas da modernidade e queriam escapar de limites e
perseguições impostos pelos poderes tradicionais de suas
sociedades. Só depois de estabelecer sólido domínio na
América, e graças aos frutos desse domínio, essas
vanguardas européias fortaleceram-se suficientemente para modernizar a
própria Europa. Elas puderam agir de forma mais rápida e mais
eficaz aqui, nas regiões novas, do que no seu continente de origem, onde
havia relações de poder cristalizadas há séculos.
A suposição que está na base das teorias que apelam
à modernização de que as sociedades dominantes eram
necessariamente modernas e as sociedades dominadas eram necessariamente
tradicionais é apenas isso, uma suposição derivada de
esquemas teóricos preconcebidos. Também neste caso, a
história inverteu a teoria. Fomos nós que nascemos radicalmente
inseridos no mundo da forma-mercadoria. Fomos paridos por ele. A
construção da periferia moderna, por meio da conquista, antecedeu
cronologicamente a construção das sociedades modernas na Europa,
por meio das revoluções.
[10]
O principal resultado desse processo foi a constituição de povos
novos, diferentes dos povos cultural e etnicamente estáveis por
séculos ou milênios e que, embora sofressem influências
externas, evoluíram principalmente por processos endógenos. Os
povos novos americanos, que formaram o Brasil, a Colômbia, a Venezuela, o
Chile, as Antilhas e Cuba, têm duas marcas constitutivas fundamentais:
(a) resultaram da fusão étnica e cultural de contingentes humanos
desenraizados em geral, índios destribalizados, brancos
deseuropeizados e negros desafricanizados , recrutados pelo capitalismo
moderno para trabalhar nas principais áreas de exploração
comercial; (b) subordinaram-se desde o início a um processo
histórico a generalização da forma-mercadoria
que não se originou neles mesmos. Povos-objeto, nunca tiveram a
possibilidade de conduzir, e nem mesmo influenciar, os processos que os geraram
e em que sempre estiveram inseridos. Para eles, os conceitos europeus de
Razão e liberdade nunca existiram de fato; só conheceram
degenerações e contrafações desses conceitos, que
apareciam por aqui como idéias fora do lugar.
Para a gênese e o desenvolvimento do mundo moderno, a
constituição desses povos-objeto tem sido pelo menos tão
importante quanto a constituição dos proletariados industriais no
centro do sistema.
18. A expansão do subsistema europeu
, com que começamos este texto, constituiu duas formas fundamentais de
sociedades, ambas modernas: de um lado, as sociedades dominantes, para
si, que concentraram as riquezas e criaram os valores que legitimavam a
nova ordem; de outro, as sociedades dominadas, para as outras,
recriadas artificialmente em muitos casos, até mesmo em suas
populações para produzir mercadorias e transferir recursos
para fora; seus valores originais foram esmagados. Do ponto de vista da
história da humanidade como um todo, esse último processo foi o
mais relevante e o mais catastrófico.
Se isso é verdade, e se é verdade que contrariando as
expectativas do movimento socialista o centro do sistema adquiriu uma
configuração relativamente estável, absorvendo as
pressões sociais endógenas, se é verdade que a classe
trabalhadora européia não cumpriu a missão que lhe
atribuímos, talvez o evento histórico decisivo para a
superação da modernidade capitalista venha a ser a
transformação das sociedades periféricas em sociedades
para si, de modo que elas venham a definir, pela primeira vez, os seus
próprios projetos existenciais coletivos. Isso exige, evidentemente, a
revolução de suas estruturas internas. Não temos muita
clareza de que projetos serão. Mas, talvez haja neles maiores
espaços do que se pensa para questionar a supremacia da
forma-mercadoria. Afinal, a forma-mercadoria sempre escravizou esses povos.
No caso do Brasil, nossa constituição radicalmente moderna, como
uma empresa colonial para os outros, explica a facilidade com que
os conservadores reivindicam para si o discurso da modernização:
ele nos fala de buscarmos mais do mesmo, com as
plantations
coloniais substituídas agora pelo agronegócio.
19. Devemos reconhecer que o movimento histórico
não foi o mesmo em toda parte. Quando se fala em periferia, melhor
seria falar em periferias, até mesmo se tratamos apenas da
América. Além dos povos novos, a expansão européia
no Novo Continente formou pelo menos outros dois grandes grupos de povos:
[11]
(a) os povos-testemunho, localizados principalmente na Bolívia,
Equador, Peru, México e em outros países da América
Central, herdeiros das grandes civilizações inca e asteca, cuja
identidade indígena está pulsando com cada vez mais força
no continente (também há resíduos de povos-testemunho de
matriz tupi); e (b) os povos transplantados, que reproduziram na América
o perfil étnico, lingüístico e cultural de suas
regiões européias de origem; apesar de ser uma sociedade
multiétnica, os Estados Unidos, por sua formação
histórica, são o principal exemplo dessa última realidade,
que aparece também no Canadá, no Norte, e na região
dominada por Buenos Aires, no Sul. Onde os povos transplantados se
estabeleceram, as sociedades pré-colombianas foram praticamente
extintas, não havendo propriamente um processo de
incorporação de suas populações ao novo contexto.
Refiro-me a isso, de passagem, para realçar que a periferia é o
lugar da diversidade. Se alargarmos a nossa visão, para abranger as
periferias como um todo, muito mais diversidade aparecerá. É
falando um pouco sobre ela que vou concluir.
20. Todas as visões eurocêntricas,
de uma forma ou de outra, nos falam de uma tendência à
homogeneização. É verdade que ela está presente no
desenvolvimento do capitalismo, mas nunca poderá completar-se. O
próprio capitalismo produz contratendências, que aparecem,
principalmente, na reprodução das contradições
entre centros e periferias. A diferença não é um
resíduo, uma reminiscência do passado. Ela é ativamente
recriada e pode conter as sementes do futuro. A formação de um
sistema histórico agressivo e expansivo decorreu da
reorganização da vida humana sob o predomínio, sem freios,
da esfera econômica dominada pelo valor de troca. Superando-se este
predomínio, será novamente maior e não menor
o espaço para a diversidade na experiência do existir humano. Como
regra geral, a história universal é sempre uma história de
desenvolvimentos desiguais.
Também o mundo da cultura só experimenta relativa
homogeneização quando se subordina à forma-mercadoria. Se
ele passar a ser o centro da organização social e voltar a ser o
espaço em que os valores de uso são organizados no plano
simbólico pois é assim que devemos imaginar as sociedades
do futuro , disso resultará mais diversidade, e não mais
uniformidade. Sempre que a vida social foi regida pelo valor de uso prevaleceu
a diversidade, reproduzida antigamente no âmbito de subsistemas
regionais.
É claro que a crítica à modernidade européia
não pode nos remeter a nada que tenha existido antes dela, o que seria
impossível e indesejável. Não se chega a lugar nenhum
lamentando-se o que é historicamente irreversível. O ponto de
partida para o futuro é a superação e não a
negação do mundo moderno, no sentido de
aufheben,
de Hegel: superação com conservação. Talvez
tenhamos que imaginar o futuro como o tempo de uma nova diversidade no
âmbito de um sistema-mundo.
Isso concede outro estatuto teórico à luta das sociedades
periféricas. Dizer que a nova sociedade vem necessariamente,
univocamente, do centro para a periferia implica aceitar que a história
da humanidade continuará gravitando em torno dos movimentos do
subsistema europeu (e dos enclaves que ele criou), movimentos que, como vimos,
estão na origem da crise atual. Na prática, nega-se assim a
possibilidade de que outros povos construam suas próprias variantes da
história, embora eles representem a esmagadora maioria da humanidade. Se
isso for verdade, a modernidade capitalista ainda terá um
longuíssimo tempo histórico pela frente, pois a
mutação está bloqueada no centro, onde, como vimos, o
padrão de luta de classes mais reproduz do que ameaça o sistema.
Só pensando na humanidade como um todo é que podemos ver que o
problema da superação do capitalismo está colocado e pode
ser resolvido. A incapacidade estrutural de o sistema generalizar suas
próprias promessas pode ser a fissura por onde a nova qualidade pode
emergir.
Notas
1. São muito significativas as primeiras frases de Max Weber em
A ética protestante e o espírito do capitalismo
(edição brasileira, São Paulo, Pioneira, 1979): Um
filho da moderna civilização européia sempre estará
sujeito à indagação de qual a combinação de
fatores a que se pode atribuir o fato de na Civilização
Ocidental, e somente na Civilização Ocidental, haverem aparecido
fenômenos culturais cujo desenvolvimento tem valor e significado
universais.
2. Immanuel Wallerstein,
Capitalismo histórico e civilização capitalista
. Rio de Janeiro, Contraponto, 2001.
3. Karl Polanyi,
A grande transformação
. São Paulo, Campus, 1980.
4. Piero Sraffa,
A produção de mercadorias por meio de mercadorias
. São Paulo, Abril Cultura, série Os Economistas, 1983.
5. José Luí Fiori,
O vôo da coruja
, Rio de Janeiro, Editora da Uerj, 1995.
6. Adam Przeworski,
Capitalismo e socialdemocracia
. São Paulo, Companhia das Letras, 1985.
7. José Luí Fiori,
O vôo da coruja
, op. cit.
8. Karl Marx,
Grundrisse
(edição inglesa): As relações de
dependência pessoal (...) são as primeiras formas de
organização social, nas quais as forças produtivas humanas
estão muito pouco desenvolvidas, e só em regiões isoladas.
A independência pessoa, baseada na dependência em
relação às coisas, é a segunda grande forma, que
permite, pela primeira vez, o desenvolvimento de um sistema universal de troca,
relações universais, necessidades universais e uma riqueza
universal. A livre individualidade, baseada no desenvolvimento universal dos
indivíduos e em seu domínio conjunto sobre suas forças
produtivas sociais e sua riqueza, cria a terceira fase. A segunda cria as
condições da terceira.
9. Este parágrafo e os dois seguintes baseiam-se em dois artigos de
Luís Gonzaga Lima, Uma reflexão brasileira: outras palavras
sobre o jeito do Brasil e O sistema internacional em uma
perspectiva crítica, s/d, mimeo.
10. Idem.
11. A classificação dos povos americanos como novos,
testemunho e transplantados foi proposta por Darcy
Ribeiro em
As Américas e a civilização
. Petrópolis, Vozes, 1988.
[*]
Politólogo brasileiro.
Comunicação apresentada ao Encontro Internacional "Civilização ou Barbárie",
Serpa, 24/Set/04.
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info
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