Governo Lula, o triunfo do neoliberalismo
por Carlos Eduardo Carvalho
[*]
Adesão do governo Lula ao neoliberalismo não se resume à
continuidade da política econômica, sua face mais visível.
Envolve questões mais profundas e duradouras, envolve a essência
da ideologia neoliberal.
Um ano depois da posse, o governo Lula é um triunfo espetacular do
neoliberalismo, o maior desde a virada argentina de 1989, quando Menem, eleito
pelo peronismo, iniciou as "relações carnais" com os
EUA e com o grande capital.
O governo Lula manteve a política econômica dos últimos
anos de Fernando Henrique e Malan, com resultados semelhantes. A
preservação dos ganhos excepcionais dos credores do Estado, dos
bancos e do grande capital se fez à custa de estagnação
econômica, queda do emprego e da renda dos trabalhadores, corte dos
gastos sociais, aumento da dívida pública.
A adesão do governo Lula e de seu governo ao neoliberalismo não
se resume à continuidade da política econômica, sua face
mais visível. Envolve questões mais profundas e mais duradouras,
envolve a essência da ideologia neoliberal. O neoliberalismo não
é um conjunto específico de políticas
macroeconômicas, nem sua superação dependerá seja de
uma simples substituição da dupla Palocci-Meirelles seja de uma
mudança nos rumos que eles mesmos possam realizar a partir de um
agravamento do quadro internacional, por exemplo, ou de alguma pressão
do próprio Planalto, por cálculo eleitoral.
O principal argumento para as políticas continuístas de
Palocci-Meirelles era a gravidade do quadro econômico, mas o governo foi
bem mais além: encaminhou reformas institucionais de
inspiração neoliberal; nomeou economistas afinados com o
neoliberalismo norte-americano para posições estratégicas
não só do Ministério da Fazenda, mas também dos
ministérios responsáveis pelas políticas sociais; afinou
seu discurso e sua imagem pelos valores neoliberais, em detrimento dos valores
da esquerda. Nada disso era requerido pela situação
econômica de curto prazo.
O neoliberalismo estava na defensiva no continente desde a catástrofe
argentina de 2001 e as péssimas conseqüências sociais e
econômicas. Muitos paradigmas neoliberais vinham sendo criticados em
escala mundial, com a desmoralização de valores e
instituições que se seguiu aos grandes desastres financeiros nos
EUA em 2001-2002. Surgiram fraturas importantes no seu próprio campo e
alcançaram grande repercussão as fortes críticas do
economista Joseph Stiglitz ao FMI e ao Banco Mundial. A adesão de Lula e
do PT é um tremendo contraponto ao que parecia ser um declínio
progressivo da sufocante hegemonia dos dogmas neoliberais e ameaça
recolocá-los na mesma posição de força anterior.
O que pensar de tudo isso e o que fazer são duas questões
complexas e difíceis para quem optou por resistir à maré
montante neoliberal e continuar na esquerda. Este texto entra no debate da
primeira para melhor refletir sobre a segunda, a mais difícil. Apresenta
quatro seções: a primeira retoma o conceito de neoliberalismo, ao
qual Lula aderiu de forma ampla, e não apenas por problemas
econômicos conjunturais, o que se discute na segunda seção;
a terceira apresenta o predomínio dos valores neoliberais na
retórica e na imagem do governo e a última apresenta elementos
para a discussão dos desafios e as alternativas colocadas para a
esquerda no Brasil a partir da grande virada do PT.
1. O neoliberalismo é muito mais que uma política econômica
O neoliberalismo é um conjunto de idéias e valores bem mais amplo
que as políticas econômicas que nele se referenciam e não
apresenta um conjunto rígido e bem definido de políticas a serem
aplicadas. Nos governos ditos neoliberais verifica-se grande variedade de
políticas econômicas específicas, inclusive coexistindo no
mesmo período.
Nos principais países da América Latina, por exemplo, houve quase
todos os tipos possíveis de políticas cambiais nos últimos
anos: câmbio flutuante "sujo", com foco no câmbio real e
controle de capitais de curto prazo no Chile, currency board rígido na
Argentina de 1991 a 2001, câmbio deslizante com
desvalorizações prefixadas no Brasil de 1995 a 1998 e no
México de 1988 a 1994, câmbio flutuante "sujo" no
México a partir de 1995 e no Brasil a partir de 1999. Brasil e Argentina
implementaram programas antiinflacionários de choque, em 1991 e 1994, o
México utilizou gradualismo com negociação de 1988 a 1994,
enquanto o Chile, de 1984 a 1999, procurou a redução gradativa
sem choques e enfatizou a estabilidade da taxa de câmbio real.
É verdade que o quadro é mais definido nas
privatizações, mas não se pode esquecer que a
desestatização radical da Argentina conviveu com a
manutenção da grande estatal do cobre no Chile, a Codelco, cujas
receitas, apropriadas pelo Estado, sustentaram grande parte das
políticas de apoio às exportações, de
privatização da Previdência e de regulação
macroeconômica anticíclica. Este intervencionismo ativo no Chile
conviveu com a liberalização radical das
importações e viabilizou o apoio firme às
exportações. Além disso, o tamanho do setor público
varia muito: a carga tributária brasileira é quase o dobro da
argentina e da mexicana, com o Chile em posição
intermediária, apoiado nas receitas da estatal do cobre.
Quando analisado pela ótica das políticas econômicas, o
neoliberalismo se revela mais um paradigma que um receituário detalhado,
mais um conjunto de valores gerais para orientar as políticas
econômicas que um conjunto articulado de políticas
específicas. É um paradigma forte, bastante para estabelecer
limites rígidos para as orientações básicas das
políticas a serem feitas, para estabelecer um campo de idéias
difícil de ser rompido e contestado; mas, é também um
paradigma elástico e amplo, bastante para abrigar políticas
específicas muito variadas e mesmo díspares entre si.
Além de dar ampla margem de manobra para os governos em cada
país, esta flexibilidade permite aos defensores do neoliberalismo
transferir responsabilidades e apresentar explicações
fáceis para seus fracassos retumbantes. Permite-lhes afirmar, por
exemplo, que o catastrófico colapso da conversibilidade na Argentina, em
2000-2001, foi produto do câmbio fixo e da falta de ajuste fiscal
rigoroso, e não das orientações liberalizantes.
Permite-lhes afirmar que a virtual estagnação da economia
brasileira nos últimos dez anos decorreu da política cambial
"rígida" e "equivocada" de 1995 a 1998,
enfaticamente defendida por eles na época, e não da
subordinação da política econômica a uma
concepção equivocada de estabilização e à
defesa injustificada de juros reais elevados.
Alguns autores ressaltaram a distância entre orientações
gerais e políticas econômicas específicas ao analisar o
chamado Consenso de Washington, tido como a principal referência
neoliberal na América Latina. Escrevendo no começo da
década passada, Fanelli, Frenkel e Rozenwurcel
[1]
(1993) mostraram que o conjunto de orientações sistematizado por
John Williamson era uma abordagem ampla para a mudança estrutural na
economia, mas pouco tinha a dizer sobre a estabilização,
questão macroeconômica candente na época e que ficou a
cargo da abordagem tradicional do FMI ou da escolha das autoridades
econômicas de cada país. Anos depois, ao analisar os fracos
resultados das políticas neoliberais, Stiglitz
[2]
afirmou que o sucesso do Consenso de Washington se deveu à sua
simplicidade, ao seu caráter quase intuitivo, e que aos seus
diagnósticos e formulações faltam elementos cruciais, como
as fontes de dinamismo para o crescimento, as ligações entre as
políticas de curto e de médio prazo, a seqüência ideal
das políticas, os riscos de trajetórias explosivas, as
relações entre poupança e investimento.
A percepção correta deste caráter vago e genérico
do neoliberalismo e do Consenso de Washington não contradiz sua enorme
influência sobre as formulações da política
econômica no Continente. Sua capacidade de se impor apoiou-se fortemente
neste caráter impreciso, combinado com idéias-força muito
nítidas, cuja aplicação dependia de flexibilidade, de
capacidade de adaptação aos problemas complexos e peculiares das
economias latino- americanas. Ao contrário das políticas
específicas, estas idéias-força são rígidas
e conformam um paradigma poderoso, capaz de se sobrepor às
políticas e orientar seu sentido geral. Pode- se recorrer à
interpretação de Perry Anderson:
A teoria neoliberal oferecia, em seu começo, uma espécie de
temário máximo, do qual os governos podiam escolher os temas mais
oportunos, segundo suas conveniências conjunturais, políticas ou
administrativas (...). O maximalismo neoliberal, neste sentido, foi altamente
funcional. Oferecia um repertório muito amplo de medidas radicais
possíveis, ajustáveis às circunstâncias. E, ao mesmo
tempo, demonstrou o largo alcance da ideologia neoliberal, sua capacidade de
abarcar todos os aspectos da sociedade, e assim jogar o papel de uma
visão de mundo verdadeiramente hegemônica.
[3]
Com base na experiência dos últimos anos, em especial na
América Latina, pode ser proposto um resumo deste paradigma geral da
forma apresentada a seguir:
Prioridade absoluta para os direitos do capital -
ampliação dos direitos dos credores e dos investidores em
títulos financeiros: "respeito aos contratos", "regras
claras", "transparência";
- ajuste fiscal para garantir o pagamento pontual das obrigações
do Estado com a dívida pública;
- estabilidade do valor da moeda e do sistema financeiro, para evitar os riscos
de desvalorização de ativos financeiros;
- liberdade cambial, livre movimentação de capitais,
conversibilidade.
Ocultamento das relações capital-trabalho e
responsabilização do indivíduo frente ao capital
- exclusão das relações de trabalho do debate
público, colocadas como questão inexistente ou como
questão privada, sobre a qual não se deve falar;
- proteção social tratada como questão individual, como
decisão pessoal de prevenir-se; previdência pública apenas
para os miseráveis, os que "não deram certo";
- direitos dos trabalhadores tratados como privilégios, fruto de
populismo, e causa de desemprego e de ineficiência econômica;
- possibilidade de emprego como decorrência da qualificação
e das aptidões do trabalhador, e não como função do
desempenho da economia e da estrutura produtiva.
Despolitização da política econômica, tratada como
técnica universal
- "fim da macroeconomia": políticas macroeconômicas
apresentadas como técnicas rígidas, divididas apenas em
"responsáveis" ou "populistas";
- transferência das preocupações com o crescimento, o
emprego, a distribuição de renda, a eficiência e a
produtividade, para programas localizados, "microeconômicos";
- independência e autonomia das instâncias públicas
decisivas, em especial o Banco Central, de modo a deixá-las fora do
alcance da sociedade e das instituições políticas
democráticas.
Abertura de novos espaços para a valorização do capital
- privatização generalizada do setor produtivo estatal;
- transferência da saúde, previdência e
educação para o setor privado, pois o mercado é mais capaz
de prover as necessidades individuais e sociais que o estado.
Responsabilização dos países dependentes pelos efeitos da
desordem financeira internacional
- defesa da liberdade de circulação de capitais e da livre
conversibilidade das moedas;
- responsabilização dos fatores domésticos pelas crises
cambiais: ausência de "ajuste fiscal necessário", falhas
na regulação dos sistemas financeiros e políticas
monetárias "frouxas".
É importante destacar que o equilíbrio entre estes diversos itens
é instável e variado. Em alguns países permitiu e promoveu
políticas de crescimento acelerado, como no Chile e no México,
com as quais atenuou a exploração do trabalho e a
concentração da renda. Em outros, combina-se com políticas
nacionalistas e de crescimento acelerado, como na Índia. Como todo
paradigma, esta plasticidade é essencial para garantir sua força.
Além de poderoso e flexível, este paradigma é mistificador
na sua essência. Transfere todas as responsabilidades econômicas e
sociais para o indivíduo isolado frente ao capital e para os
países da periferia frente aos países centrais, mas não
prescinde do apoio dos bancos centrais aos grandes bancos privados e aos
credores do estado, nem do FMI e do governo dos EUA aos banqueiros e
especuladores. A discussão sobre a chamada "nova arquitetura
financeira internacional", por exemplo, está concentrada em
atribuir aos países dependentes a responsabilidade de evitar os efeitos
perversos da ampla mobilidade de capitais. Um de seus componentes
básicos é restringir com rigidez o uso do crédito como
instrumento de desenvolvimento econômico, pelas exigências de
adesão estrita aos acordos de Basiléia
[4]
.
O paradigma neoliberal despolitiza a macroeconomia, a pretexto de haver
técnicas inequívocas, mas convive com uma enorme diversidade de
políticas e opera firmemente em favor dos grupos mais influentes do
capital. Apresenta-se como anti-estatal, mas depende da iniciativa do estado
para ser implantado e ser gerido. Não é demais recordar que a
grande massa da riqueza capitalista é formada hoje por moeda
fiduciária, garantida unicamente pela autoridade política do
estado emissor e por títulos financeiros lastreados por títulos
de dívida de estados nacionais.
Não parecem procedentes avaliações como as de Renan Veja
para quem o neoliberalismo "já não precisa ocultar-se sob
nenhuma máscara pseudodemocrática (...) para recuperar os lucros
dos capitalistas (...) e desmontar todas as concessões
feitas aos pobres, (...) sem incômodas alianças
social-democráticas com sindicatos e trabalhadores (...)"
[5]
. Ao contrário, o neoliberalismo se legitima com a criação
de máscaras, assume as bandeiras tradicionais de seus adversários
históricos para esvaziá-las e modificar seus conteúdos,
busca associações espúrias e casuísticas para
viabilizar a aceitação de suas propostas.
As teses neoliberais eram muito explícitas na sua origem, nos escritos
de Hayek e Friedman, mas, nas últimas décadas, se caracterizam
pelo esforço permanente de incorporar valores "universais" de
forma mistificadora. Apresentam-se como paladinos da democracia, da
distribuição de renda e da redução das
desigualdades sociais, embora promovam ativamente o contrário. O
qualificativo "neo" se justifica bem por esta incapacidade de se
apresentar como liberalismo clássico, característica que o
neoliberalismo só assumiu quando se transformou de
proposição teórica em paradigma de políticas
econômicas, a partir dos governos de Thatcher e de Reagan. A outra
justificativa para o qualificativo "neo" é que o liberalismo
da segunda metade do século XX está voltado para desmontar o
estado intervencionista e de bem-estar social. Esta delimitação
histórica, contudo, não parece suficiente para distingui-lo do
liberalismo clássico, do final do século XVIII e do XIX, a
não ser pela incapacidade de se afirmar sem o apoio do estado que tanto
critica.
[6]
A passagem do neoliberalismo "puro" para o pragmatismo das
últimas décadas reforça a conveniência de periodizar
melhor sua trajetória histórica. Para Ricardo Gómez
[7]
, existem quatro períodos na história do liberalismo: o
liberalismo clássico, de Adam Smith; o liberalismo neoclássico,
do século XIX; o neoliberalismo da luta teórica, de Hayek e
Friedman; e o neoliberalismo "implementado", a partir do golpe
militar de 1973 no Chile, cuja fase atual se caracteriza pelo "extremismo
teórico", no qual a solução dos problemas
"é sempre uma só: mais neoliberalismo, ou seja, corrigir os
problemas, mas por meio de levar ao extremo as políticas
neoliberais". Nesta linha, o momento atual seria de
exacerbação do paradigma teórico abrangente e poderoso, na
linha de Perry Anderson.
Outra proposta de periodização é apresentada pelo
próprio Perry Anderson
[8]
, com base nas "ondas" de triunfos de governos e políticas
neoliberais: Chile, em 1973; Thatcher e Reagan, em 1980-81;
"conversões" na Europa nos anos 1980: Mitterand,
González, Soares; novos governos na Europa do Leste e Rússia, a
partir de 1991, e na Europa Ocidental, a partir de 1992;
"conversões" na América Latina a partir do final dos
anos 1980: o PRI mexicano, Menem na Argentina, Fujimori no Peru. Por esta
perspectiva, o avanço do neoliberalismo se revela um processo muito
poderoso, capaz de converter forças políticas que sempre lhe
fizeram oposição ou que conseguem se eleger e se legitimar
criticando-o de forma agressiva. Ao mesmo tempo, revela flexibilidade
suficiente para acomodar as peculiaridades e idiossincrasias de cada
experiência nacional.
Vista sob esta ótica, a conversão de Lula e do PT se revela menos
excêntrica. Trata-se apenas de mais um governo eleito pela esquerda que
se rende ao paradigma dominante, tomando o cuidado de defender que as
mudanças não rompem a fidelidade ao que dizia ser.
2. A política econômica como opção estratégica
A discussão apresentada no item anterior contribui para a análise
de duas questões muito relevantes sobre o governo Lula. A primeira
é que a hegemonia neoliberal deixa espaços para políticas
econômicas variadas, o que enfraquece a defesa das opções
atuais como as únicas possíveis com as restrições
presentes. A segunda é que a adesão do governo Lula ao
neoliberalismo vai muito além da escolha de uma política
econômica.
O principal argumento da equipe da Fazenda para justificar suas
políticas foi a gravidade do quadro econômico de 2002, o que
exigiria "acalmar os mercados" e "ganhar credibilidade"
primeiro para "depois" dar início ao "verdadeiro"
programa do governo Lula
[9]
. A exemplo da Argentina de 1999, quando De La Rúa optou pela
continuidade, havia no Brasil de 2003 outras alternativas além do bom
comportamento e da reprodução do passado.
Não é demais recordar a mistificação criada em
torno da crise argentina de 2001. Figuras importantes do novo governo
advertiram contra o risco de se produzir no Brasil uma catástrofe
semelhante, fantasma ameaçador a ser exorcizado a qualquer custo.
Obra-prima de mistificação, posto que a tragédia do
governo De La Rúa não resultou dos riscos de mudar a
política econômica. Pelo contrário, o governo arruinou a si
e ao país pela obsessão de manter a qualquer custo uma
política cambial insustentável e insistir na
combinação desastrada de juros altos e "ajustes
fiscais" destrutivos e impraticáveis. A desgraça veio do
continuísmo e não da ruptura.
Assim como na Argentina de 1999, havia no Brasil de 2003 alternativas diversas,
também arriscadas, porém mais promissoras. Não se tratava
de escolher entre opções com ou sem riscos, pois todas envolviam
riscos e ofereciam vantagens, imediatas e potenciais. As escolhas feitas
reduziram tanto possíveis instabilidades a curto prazo, como as
políticas de mudanças, prometidas pelo PT ao longo de sua
história.
Mais grave é que o continuísmo, mais que uma opção
de curto prazo, é uma escolha estratégica.
[10]
O documento "Política Econômica e Reformas Estruturais"
(www.fazenda.gov.br), do Ministério da Fazenda, deixou claro que as
prioridades do governo são as próprias reformas, elaboradas
originalmente pelo governo FHC ou por intelectuais e instituições
que sempre o apoiaram, como a Febraban, o FMI e o Banco Mundial. Na
seção "A Política Macroeconômica",
lê-se que "o governo tem como primeiro compromisso da
política econômica a resolução dos graves problemas
fiscais que caracterizam nossa história econômica, ou seja, a
promoção de um ajuste definitivo das contas
públicas". Nada se diz sobre vulnerabilidade externa,
balanço de pagamentos, política de câmbio. Os problemas do
Brasil se concentram em "desequilíbrio
orçamentário". É o triunfo completo da visão
neoliberal, ou seja, os problemas dos países da periferia do capitalismo
não decorrem de uma ordem internacional injusta, nem de problemas
estruturais internos, e sim de desequilíbrio orçamentário!
Trata-se de um fiscalismo inaceitável e, mais que isso, tacanho. Apesar
de todo o esforço de gerar superávits primários, a
dívida pública continuou a crescer em 2003, puxada pelos juros
altos. É o mesmo resultado da suposta austeridade fiscal de FHC, que
elevou a dívida do setor público de 30% do PIB em 1994 para 55%
do PIB em 2002.
Em paralelo a essas medidas e orientações de curto prazo, o
governo aprovou a reforma da Previdência
[11]
e a reforma tributária nos mesmos termos propostos, anos atrás,
pelo PSDB e pelo Banco Mundial. Na área tributária, a proposta do
governo se limitou a medidas para aumentar a competitividade externa da
economia e para concentrar poder no governo central. Nada de redesenhar a
estrutura tributária para reduzir a desigualdade social e para reduzir o
caráter concentrador de renda que sempre a caracterizou no Brasil.
Na discussão sobre a "autonomia" do Banco Central, o governo
avança com mais cuidado, mas, em 2003, realizou uma das maiores
exigências dos banqueiros e dos liberais: emendou o artigo 192 da
Constituição para remover os obstáculos ali colocados e
facilitar a aprovação da autonomia, tal qual havia sido proposto
pelo senador José Serra anos atrás. Desde 1989, a direita e os
servidores do capital financeiro se esforçaram para burlar o
espírito do Artigo 192 e regulamentar apenas o que lhes interessava, a
"autonomia" do Banco Central. Contudo, uma decisão judicial
estabeleceu que o Artigo 192 teria que ser regulamentado em bloco, por uma
única lei complementar, como estabelece claramente o seu caput. Para
votar o estatuto jurídico do BC, o Congresso teria que votar ou eliminar
o limite de 12% para os juros reais; conforme sondagens de opinião
realizadas no Congresso, essa questão sempre representou grande
dificuldade para a direita. A solução apresentada por Serra foi
modificar o caput do artigo por Emenda Constitucional, retirando com isso a
obrigatoriedade de votá-la como lei complementar única. A manobra
esbarrou no mesmo receio e a questão hibernou durante anos, até
ser ressuscitada e aprovada pelo governo Lula no final do primeiro semestre de
2003.
O principal contra-exemplo é a política externa, em especial nas
negociações comerciais e na tentativa de formação
de um bloco com outros grandes países periféricos. Trata-se de
política no geral muito positiva, embora não envolva nenhuma
crítica às teses neoliberais de abertura comercial radical como
precondição para o desenvolvimento, pois se limita a atacar o
protecionismo dos países ricos. Além disso, a luta do Itamaraty
na área comercial conviveu com a posição lamentável
do governo Lula diante da moratória argentina e das tentativas do
governo Kirchner de resistir ao FMI e forçar uma
renegociação ampla de sua dívida.
3. Valores neoliberais dominam a retórica e a imagem do governo
A retórica e a imagem pública do governo Lula se enquadram cada
vez mais nos valores básicos do neoliberalismo. Desapareceram das falas
do governo os temas tradicionais da esquerda, especialmente a disputa entre o
capital e o trabalho. O melhor exemplo é o Fome Zero, o principal
programa do governo petista. O slogan "o Brasil que come ajudando o Brasil
que tem fome" retira o direito de comer e de ter uma vida digna do campo
das responsabilidades e obrigações do Estado e o retira
também do núcleo de compromissos que devem orientar a
política econômica. Estes direitos fundamentais passaram para o
campo da caridade, do auxílio mútuo entre as pessoas. Não
se fala mais de direitos e obrigações. A retórica é
de parcerias e cooperação com o setor privado, com
organizações da sociedade. Nada de direito a emprego e
salários dignos como pressupostos do direito à
alimentação.
O citado documento da Fazenda nada diz sobre o que deveria fazer o governo para
combater o desemprego de imediato. O problema é apontado como
dramático, mas não como urgente, como merecedor de
ações imediatas do governo. O desemprego e a desigualdade de
renda são deslocados para o terreno da formação e da
qualificação do trabalhador, para "incentivos"
às empresas, como se o emprego dependesse da oferta de trabalho mais
qualificado e da redução do custo de contratação
formal de trabalhadores.
Os direitos dos trabalhadores não são tratados pelo governo
petista como normas legais que devem ser cumpridas. O governo considera sagrado
o "cumprimento dos contratos", incluídos aí apenas
aqueles que envolvem remuneração do capital e não os
contratos que envolvem as obrigações do capital com o trabalho. O
aumento da informalidade na economia e o desrespeito à
legislação do trabalho não fazem parte da questão
"respeito aos contratos", e sim do conjunto indeterminado dos
"problemas e desafios difíceis", das "preocupantes"
imposições da "globalização". As empresas
não são tratadas como agentes ativos da
precarização do trabalho. Os empresários aparecem como
"agentes neutros", como vítimas de uma
legislação inadequada que penaliza a eles e aos trabalhadores. O
governo petista ignora o longo e amplo processo de desmontagem dos direitos do
trabalho desenvolvido nos últimos anos, com a legislação
sobre cooperativas e outros instrumentos legais para mascarar a
subcontratação de trabalhadores e a eliminação das
responsabilidades patronais. Como bem apontou Nilde Balcão:
Em nome da terceirização (...) engendra-se no país uma
multiplicidade de formas de subcontratação que legitimam formas
antigas e jamais evocadas publicamente como formas desejáveis de
contratação, como o trabalho a domicílio, o trabalho
temporário, assim como outras que nem sequer eram mais evocadas, como os
contratos de representação comercial. A legislação
vai sendo toda ela retrabalhada na busca dos artigos que permitam considerar
legais as novas formas de contratação. A polêmica sobre a
legalidade da terceirização (...) fica restrita aos juristas e
quase que invisível diante do público. Em meio a essa
polêmica está o problema de que a terceirização vai
se traduzir num descolamento entre a figura do empregador e do empregado, tais
como tipificados pela legislação, e as relações de
trabalho ou as relações entre empresas que estão surgindo.
[12]
A penetração dos valores neoliberais tem aparecido em sucessivas
declarações do presidente da República. Nos primeiros
meses do governo, o declínio da inflação, da taxa de
câmbio e do "risco-país" nos mercados internacionais foi
saudado pelo governo como indicadores da correção das suas
escolhas na política econômica. Mais de uma vez, o Presidente da
República comemorou o fato de que "todos os indicadores
econômicos estão melhorando"; enquanto isso, os indicadores
registravam aumento do desemprego, queda contínua da renda real dos
trabalhadores e desaceleração da economia. Indicadores de renda
real e produção deixaram de ser relevantes para as autoridades
econômicas. Indicadores de emprego e renda real do trabalho deixaram de
ser indicadores econômicos!
Em mais de uma ocasião, Lula ressaltou que os pobres são
"bons pagadores", para justificar programas de microcrédito e,
principalmente, o desconto de empréstimos bancários diretamente
nos salários. Séculos de lutas para reduzir o poder dos credores
sobre o cidadão foram trocados por uma redução dos juros,
desde que os assalariados aceitem dar como garantia seus salários e
até mesmo sua futura indenização em caso de
demissão! Para coroar, as regras devem ser negociadas pelos bancos com
os sindicatos, sem exigências de contrapartidas pelo governo, como sempre
propõem os liberais quando os sindicatos estão enfraquecidos ou
já foram cooptados pelo patronato. O presidente apresentou tal coisa
como uma "conquista", como um reconhecimento da
disposição dos brasileiros pobres de privilegiar o pagamento de
suas dívidas com os banqueiros por serem pessoas "honestas".
Uma coincidência tristemente irônica sobre os significados que
podem ser atribuídos à suposta honestidade e dignidade dos pobres
no Brasil apareceu em entrevista recente do consultor da ONU para o combate ao
trabalho escravo, Kevin Bales (Folha de S. Paulo, 02/02/2004, p A14).
Comentando o caso do Mato Grasso do Sul, destaca que um fator marcante para ele
é a "honestidade das pessoas escravizadas. Apesar de perceberem que
estavam numa situação de endividamento (...) ilegal, eles
consideravam como uma questão de honra continuar ali até pagar o
débito de alguma forma. Isso foi muito marcante para mim, a dignidade
das pessoas pobres".
Alguns dos melhores exemplos de furor neoliberal surgiram em
declarações do primeiro ministro do Trabalho de Lula, Jacques
Wagner, antigo dirigente sindical da CUT. Logo no começo do governo, o
ministro "ofereceu" aos empresários a supressão da
multa de 40% sobre as demissões, introduzida na
Constituição de 1988 como um contraponto à liberdade de
demissão instituída no Brasil pela ditadura, em 1965, e
preservada até hoje pela recusa dos sucessivos governos brasileiros a
assinar as convenções da Organização Internacional
do Trabalho sobre o tema. Depois de novos "oferecimentos" sobre
direitos dos trabalhadores que poderiam ser suprimidos para estimular pequenas
e médias empresas a oferecer empregos com contrato, o ministro
esclareceu que não deveriam contar com ele para "restabelecer a
escravidão". Foi sucedido no cargo por Ricardo Berzoini, outro
sindicalista, o ministro da Previdência de Lula, imortalizado por ter
suspendido o pagamento das pensões de aposentados com idade superior a
noventa anos até que estes se apresentassem nos postos do INSS para
provar que estavam vivos...
4. Repensar os caminhos e as alternativas
As questões analisadas nas seções anteriores conformam uma
adesão ampla e profunda de Lula e do PT ao neoliberalismo. Dada a sua
extensão e dada a ausência de reações significativas
no PT na CUT, é correto assumir que se trata de conversão
definitiva. Mesmo que venham a ser alteradas as políticas
econômicas no curto ou no médio prazo, as posições
estratégicas e os valores que orientam o governo estão de acordo
com o paradigma neoliberal. Se Lula e o PT persistirem de fato neste rumo,
será confirmado o maior estelionato eleitoral da história
política brasileira, um caso notável de se eleger pela esquerda e
governar pela e com a direita, como, aliás, tem acontecido em muitos
outros países nas últimas décadas.
A guinada do PT e de Lula e sua adesão ao campo neoliberal complicam
muito o quadro político e as opções da esquerda
brasileira. Romper com o governo e o PT é estratégia arriscada.
Para quem ocupa cargos dirigentes no PT e em partidos aliados, ou tem cargos
eletivos, além da perda da base institucional, romper pode significar o
isolamento político. Para quem está fora, tratar de forma
sistemática o PT e o governo como adversários a combater pode
também conduzir ao isolamento. Estes riscos são ainda maiores com
as dificuldades dos movimentos sociais, pressionados pela crise
econômica, pela precarização do trabalho e pelo trabalho
ativo dos dirigentes dos sindicatos e dos movimentos atrelados ao PT e à
CUT.
Ficar dentro e tratar o governo Lula como "nosso governo, apesar de meia
boca", também traz um risco enorme, o risco da paralisia
política, da desmoralização e da perda de apoio se e
quando a maioria das pessoas se der conta de que sua situação
econômica e social piora continuamente. Além disso, o
inchaço do partido reduzirá cada vez mais o peso da esquerda no
seu interior, posto que não há um movimento social ativo o
suficiente para gerar novos quadros políticos dirigentes no curto prazo.
A tese de que se trata de "governo em disputa" é complicada.
Todos os governos estão "em disputa", em maior ou menos grau,
mas todos têm também grupos, interesses e posições
hegemônicas e dominantes, e em geral são estes mesmos grupos que
orientam e controlam as mudanças para manter suas posições
e preservar os interesses a que se ligam.
Tome-se o caso dos transgênicos. Há disputas, é certo, mas
qual é a disputa central, a disputa para valer? É a disputa,
dentro do governo, entre os interesses da Monsanto e as posições
de Marina Silva e dos movimentos sociais? Ou é a disputa entre Lula, a
direção do PT e a Monsanto, de um lado, e os movimentos sociais,
de outro, para ver quem consegue melhor acionar o peso político de
Marina Silva? Para enfrentar os interesses da Monsanto, o que seria melhor para
os movimentos sociais: manter Marina Silva como ministra, para arrancar - e
fazer - concessões, ou ameaçar com sua passagem para a
oposição, dado que o desgaste potencial poderia fazer o governo
recuar?
Não há respostas fáceis, nem respostas únicas,
válidas para todos neste momento. O desafio comum é tratar o PT e
o governo Lula de forma laica, abandonar as ilusões, e seguir em frente.
Fazer a luta política nas condições possíveis, sem
alinhamentos automáticos com o bloco petista ou contra ele, pensar muito
e discutir muito. E evitar sempre a tentação de impor
soluções únicas a todos e crucificar quem escolha caminhos
diferentes. Não devemos repetir este erro mais uma vez, ainda mais em um
momento tão complexo, difícil e original.
26/4/2004
Notas
1 José M. Fanelli, Roberto Frenkel & Guillermo Rozenwurcel,
"Crescimento e reforma estrutural na América Latina: Onde
estamos?" In: Álvaro Zini (org.), O mercado e o estado no
desenvolvimento econômico dos anos noventa. Brasília, IPEA,
Série IPEA 137, 1993, p. 229-289.
2 Joseph Stiglitz, "Rumo ao pós- Consenso de Washington".
Política Externa, São Paulo, Paz e Terra, v. 7, 2, set./out.,
1998, p. 3-40.
3 Perry Anderson, "El despliegue del neoliberalismo y sus lecciones para
la izquierda". In: Renán Vega C., (ed.), Neoliberalismo: Mito y
Realidad. Bogotá, Ediciones Pensamiento Crítico, 1999, p. 38
(tradução minha, CEC).
4 Ver a respeito: Maria Cristina P. de Freitas, Daniela M. Prates, "As
restrições das novas regras do Comitê da
Basiléia". Economia Ensaios, Uberlândia, UFU, Instituto de
Economia, v. 15, n. 2, jul., 2001, p. 59-93.
5 Renán Véga C., "Presentación". In:
Renán Vega C., op. cit, p. 9-10 (tradução minha, CEC).
6 Para a história do neoliberalismo e a análise de seus
fundamentos teóricos, ver Perry Anderson, op. cit. (1999), e Reginaldo
Moraes, Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai? São Paulo, Editora
Senac, 2001, 154 p.
7 Ricardo J. Gómez, Neoliberalismo globalizado. Buenos Aires, Ediciones
Macchi, 2003, p. X.
8 Perry Anderson, op. cit.
9 Para a crítica da política econômica do governo Lula e a
discussão de propostas alternativas, ver: João A. de Paula
(org.), A economia política da mudança. Desafios e
equívocos do início do governo Lula. Belo Horizonte,
Autêntica Editora, 2003. João Sicsú, José L. Oreiro,
Luiz F. R. Paula. (orgs.), Agenda Brasil. Políticas econômicas
para o crescimento com estabilidade de preços. Barueri, Manole e
Fundação Konrad Adenauer, 2003, 360 p.
10 Ver a respeito Carlos E. Carvalho, "A Política econômica
no início do governo Lula: Imposição irrecusável,
escolha equivocada ou opção estratégica?" In:
João A. de Paula, op. cit., 53-64, e "As lições do
Titanic". São Paulo, Reportagem (www.oficinainforma.com.br), 44,
maio, 2003, p. 18-20.
11 Há uma conjunto de artigos curtos sobre a reforma da
Previdência na revista Reportagem (São Paulo,
www.oficinainforma.com.br), n. 46, julho/2003, p. 36-50. Ver também
Carlos Schmidt, "Economia política da seguridade social". In:
João A. Paula, op. cit.
12 Nilde F. Balcão, Terceirização e desmontagem do
contrato de trabalho. São Paulo, USP, FFLCH, Dept. de Sociologia,
dissertação de mestrado, 2000, p.110.
[*]
Carlos Eduardo Carvalho, economista e professor da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo - PUCSP, foi coordenador do
Programa de Governo da candidatura presidencial do PT em 1989. Artigo publicado
no número 3 da revista Margem Esquerda (
Boitempo
, abril de 2004). O artigo também se encontra em
Carta Maior
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
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