O abismo brasileiro
A concentração de riqueza aprofunda a ferida nacional
Nas últimas semanas, foram publicados dois estudos reveladores do abismo
social brasileiro. O primeiro e mais completo deles foi o relatório da
Oxfam Brasil, tema da reportagem de capa da edição 972 de
CartaCapital,
sobre as
desigualdades
em termos de riqueza, rendimento
[NR]
, gênero e raça em nosso país.
O outro foi um levantamento do mapa de homicídios publicado pelo jornal
Folha de S.Paulo
na última segunda-feira 9. Duas faces do mesmo problema,
concentração de riqueza e violência aprofundam a ferida
nacional.
Os números apresentados pelo estudo A Distância Que Nos Une, da
Oxfam, são chocantes: a riqueza dos seis maiores bilionários
brasileiros equivale à dos 100 milhões mais pobres. Considerando
o 0,1% mais rico, seu rendimento
[NR]
em um mês é o mesmo que um trabalhador com ganho de um
salário mínimo
receberia em 19 anos. Difícil explicar pela meritocracia uma
desigualdade tão gritante.
O trabalho da Oxfam tem a vantagem de operar não apenas com o conceito
de rendimento, mas também com o de riqueza, que inclui a propriedade
imobiliária. Por aqui, a terra historicamente foi o pivô da
desigualdade.
No campo, os dados do último Censo Agropecuário mostraram o
aumento da concentração, medida pelo Índice de Gini, sendo
os latifúndios mais da metade da terra agrícola do País.
Nas cidades não é diferente: em
São Paulo
, 1% dos proprietários concentra 25% dos imóveis, o que, por sua
vez, representa 45% de todo o valor imobiliário municipal. Enquanto
isso, o déficit de moradia na cidade supera 470 mil famílias.
As disparidades entre homens e mulheres e entre brancos e negros são
outra faceta perversa desse cenário. Em relação ao
rendimento
[NR]
, 65% das mulheres brasileiras ganham até 1,5 salário
mínimo, ao lado de 52% dos homens. Na ponta oposta, com rendimento
[NR]
superior a 10 salários mínimos, há dois homens para cada
mulher.
No caso dos negros e negras, a situação é ainda mais
grave: na faixa inferior a 1,5 salário mínimo estão 67% da
população negra e 45% da branca. Entre os que ganham mais de 10
salários, há quatro brancos para cada negro.
Esses níveis brutais de desigualdade só poderiam gerar uma
sociedade conflagrada. É o que mostra o mapa das mortes violentas,
elaborado a partir de dados da Secretaria de Segurança Pública de
São Paulo. O que sobressai é como o abismo social se expressa em
segregação territorial
, legitimando regiões entregues à violência.
Em termos de rendimento
[NR]
, serviços públicos e violência há duas cidades em
uma. Os dados compilados referem-se a São Paulo, mas refletem uma
realidade conhecida em todos os centros urbanos do País.
O índice de homicídios na cidade equipara-se ao da Suécia
ou ao do México, a depender da região considerada. O Jardim
São Luís, na Zona Sul, tem taxa de 16 mortes violentas por 100
mil habitantes, enquanto o elitizado e protegido
Jardim Paulista
tem 1 morte por 100 mil, ou seja, 16 vezes menos.
O morador do São Luís tem mais chance de ser assassinado do que
se estivesse no Congo ou em Porto Rico; o dos Jardins tem menos chance do que
se vivesse nos EUA ou na França.
A situação torna-se ainda mais díspar se a
comparação é feita em nível nacional. Mesmo a taxa
mais elevada de São Paulo está bem abaixo da média
nacional, de 27,2 mortes por 100 mil habitantes.
Isso porque algumas capitais do Norte e Nordeste têm índices
alarmantes, a ponto de estarem acima de países em situação
de guerra. É o caso de Fortaleza, a capital mais violenta do
País, com 63,7 mortes para 100 mil habitantes, de São
Luís, com 60,9, e Manaus, com 52,8.
A taxa de homicídios na capital cearense é superior à de
El Salvador
(62,4), país com maior número de mortes violentas do mundo. Ou
seja, o abismo brasileiro permite que alguns poucos vivam como se estivessem na
Suécia e muitos outros morram como se estivessem em El Salvador.
Isso porque, na maioria das periferias, o Estado só se apresenta como
polícia e, neste caso, não como promotor de segurança
pública, mas frequentemente como agente da violência.
Esses dois estudos trazem ao centro do debate o tema da desigualdade social, o
grande dilema nacional. Enquanto coexistir por aqui uma
espoliação selvagem das maiorias com privilégios
indecentes do 1%, teremos uma tensão perene na base da sociedade. A
polarização do País é o retrato dessa ferida
aberta, que não fechará sem uma agenda ousada de
distribuição de rendimento
[NR]
e riquezas.
16/Outubro/2017
[NR] Consta "renda" no original. No Brasil chamam de
"renda" não apenas ao rendimento dos rentistas mas a todo e
qualquer rendimento.
[*]
Coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.
Ver também:
Pobreza, desigualdade e aspectos autoritários no Brasil de hoje
O original encontra-se em
www.cartacapital.com.br/revista/974/o-abismo-brasileiro
e em
pcb.org.br/portal2/16641
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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