A Argentina depois do golpe brando
A marcha apressada do capitalismo mafioso
Na Argentina começa formar-se um regime autoritário com
aparência constitucional, uma convergência mafiosa de camarilhas
empresariais, judiciais e mediáticas monitorada pelo aparelho de
inteligência dos Estados Unidos. Mas o que demonstram os primeiros meses
deste processo é que a tentativa tropeça com numerosas
dificuldades que ameaçam convertê-la numa gigantesca crise de
governabilidade. O contexto do seu desenvolvimento é uma recessão
económica que se vai aprofundando rumo à depressão, ou
seja, um funcionamento económico de baixa intensidade, com altas taxas
de desemprego, salários reais muito reduzidos e baratos em
dólares.
Não se trata do retorno do velho neoliberalismo dos anos 1990 nem muito
menos de uma imitação do regime oligárquico dos fins do
século XIX e sim da tentativa de instauração de um sistema
mafioso a parasitar sobre uma população desarticulada que alberga
grandes espaços de marginalidade e super-exploração
laboral, realizando um saqueio sem precedentes de recursos naturais. Nessa
direcção vão-se impondo os instrumentos essenciais do
regime ditatorial: controle completo dos meios de comunicação,
reconversão integral do sistema de segurança como apêndice
do dos Estados Unidos
[1]
, implantação de mecanismos de destruição
económica e social em grande escala, iniciativas
mediático-judiciais tendentes a extirpar as oposições que
não se subordinem ao novo regime.
Submetimento colonial e decadência periférica
Os tempos mudaram, a
"doutrina da segurança nacional"
em vigor na época de Videla e Pinochet coincidia com a visão
militar-profissional do Império. Tratava-se do controle
milimétrico da sociedade colonizada, administrada como um quartel que
coincidiu historicamente com a última etapa do predomínio nos
Estados Unidos do tradicional
"complexo militar-industrial",
aliança entre a grande indústria armamentista e os altos
comandos militares subordinando as elites políticas. Resultado do
keynesianismo militar que marcou a superpotência desde a Segunda Guerra
Mundial e que entrou em declínio nos anos 1980
[2]
.
Posteriormente o "Consenso de Washington" reinou durante a era de
Carlos Menem na Argentina e de Collor de Mello e Cardoso no Brasil, assinalando
o auge da financiarização da economia e da política nos
Estados Unidos e no conjunto das potências dominantes sem por isso
deixar de lado a componente militar, que começou a transformar-se.
Esses dois momentos trágicos exprimiram a afirmação do
submetimento colonial da Argentina, o primeiro com formato militar-ditatorial e
o segundo com rosto civil-constitucional, que corresponderam a diferentes
configurações imperialistas: No primeiro caso com um imperialismo
industrial norte-americano em ascensão, disputando a Guerra-fria e no
segundo com a presença da única super-potência global que
acabava de ganhar essa guerra e que se preparava para exercer a hegemonia
planetária. Ainda que ao mesmo tempo se financiarizasse, o parasitismo
começava a corroer o sistema, degradando seus pilares produtivos,
instalando a cultura do consumismo desenfreado. Essa prosperidade malsã
contagiou elites periféricas. Nos Estados Unidos a partir de 2001 a
festa converteu-se em onda militarista e a mega bolha financeira estalou em
2008. Na Argentina o show derivou na recessão que por sua vez culminou
com um grande desastre económico, social e institucional em 2001.
O actual submetimento da Argentina aos Estados Unidos não corresponde ao
auge do Império e sim à sua decadência, sua
degradação económica e social, seu retrocesso
geopolítico internacional de que procura compensar-se mediante o
controle total do seu pátio traseiro latino-americano. Procura assim
assegurar a super-exploração de recursos naturais decisivos e
também na introduzir a região como peça própria do
seu jogo global: como isco para seus sócios europeus na NATO ou como
retaguarda segura na armação do
"Acordo Transpacífico".
É um império comandado por uma lumpen-burguesia financeira,
sobrevivendo com baixas taxas de crescimento produtivo, parasitando sobre o
resto do mundo, que não procura instaurar uma hierarquia mundial
estável que se reproduza no longo prazo e sim depredar recursos
naturais, degradar ou eliminar estados, destruir defesas sociais
periféricas estendendo ofensivas desestruturantes, desintegradoras de
identidades nacionais e culturais. Seu instrumento de intervenção
militar é agora uma constelação de
organizações guiadas pela doutrina da
Guerra de Quarta Geração
[3]
empregando mercenários de maneira intensiva, manipulações
mediáticas e outras actividades destinadas a destruir, tornar
caóticos espaços periféricos a fim de saqueá-los.
Em correspondência com esse fenómeno as burguesias
latino-americanas foram mutando até chegar à
situação actual onde grupos industriais, financeiros ou do
agronegócio combinam seus investimentos tradicionais com outros mais
rentáveis mas também mais voláteis: Aventuras
especulativas, negócios ilegais de todo tipo (desde o narco até
operações imobiliárias opacas passando por fraudes
comerciais ou fiscais e outros empreendimentos turvos), transnacionalizando-se,
convergindo com "investimentos" saqueadores provenientes do exterior.
No caso argentino poderíamos encontrar antecedentes no reinado da
"pátria financeira" durante a última ditadura militar,
o que por sua vez tem de ser visto como resultado do fim da era industrialista.
Em síntese, a configuração lumpen-imperialista
impõe dinâmicas decadentes na periferia. Na América Latina
chegou a hora do lumpen-capitalismo. As elites argentinas vinham
avançando nessa direcção, a chegada de Macri à
presidência exprime um enorme salto qualitativo, o país no seu
conjunto acaba de entrar de modo brusco nesse processo.
Recessão, depressão e economia de baixa intensidade
Recentemente o FMI previu para a Argentina um crescimento económico real
negativo em 2016 da ordem dos -1%. Quando observamos as quedas que já se
verificaram em indicadores decisivos desde Dezembro de 2015 é
possível baixar ainda mais esse número, rumo aos -3% ou menos
ainda.
Verificou-se em muito pouco tempo uma forte redução dos
salários reais, provocada entre outros factores pela
mega-desvalorização, pelos aumentos dos preços dos
combustíveis e das tarifas de electricidade, gás e transportes,
pela eliminação ou redução de
retenções e seus impactos inflacionários, ao que se
acrescenta a subida das taxas de juro e os despedimentos maciços na
administração pública (que começam a ser seguidos
pelo sector privado) com o que temos um panorama recessivo provocado pelo
governo cujo objectivo principal é reduzir os salários reais e
seu valor em dólares.
Em certos círculos a avalanche de mudanças desencadeou o debate
em torno do suposto
"modelo de desenvolvimento"
que a direita estaria a tentar impor. Decretos, endividamentos, subidas de
preços e despedimentos sucederam-se de maneira vertiginosa. Procurar uma
coerência estratégica-desenvolvimentista nesse conjunto é
uma tarefa árdua que a cada passo se choca com
contradições que obrigam a abandonar hipóteses sem
que se possa chegar a uma conclusão minimamente rigorosa. Em primeiro
lugar, a contradição entre medidas que destroem o mercado interno
para favorecer uma suposta onda exportadora evidentemente
inviável diante do recuo da economia global. Outra
[contradição] é a subida das taxas de juro que comprimem o
consumo e os investimentos na expectativa da chegada de fundos provenientes de
um sistema internacional em crise que praticamente a única coisa
que pode oferecer é a armação de bicicletas especulativas.
[NR 1]
REPÚBLICA DE BANDIDOS
Alguns optaram por resolver o problema com a adopção de
definições abstractas tão gerais quanto pouco operativas
("modelo favorável ao grande capital",
"restauração neoliberal",
etc). Outros decidiram prosseguir o estudo mas cada vez que chegam a uma
conclusão satisfatória surge um novo facto que lhes deita abaixo
o edifício intelectual construído. E, finalmente, uns poucos,
dentre os quais me encontro, chegámos à conclusão de que
procurar essa coerência estratégica constitui uma tarefa
impossível. A chegada da direita ao governo não significa a
substituição do modelo anterior (desenvolvimentista,
neokeynesiano, ou como se queira qualificar) por um novo modelo
(oligárquico) de desenvolvimento e sim, simplesmente, o desdobramento de
um gigantesco saqueio protagonizado por forças entrópicas
altamente destrutivas que convertem o país burguês numa
república de bandidos.
Isto nos deveria conduzir à reflexão acerca do significado do fim
da era kirchnerista encarado por alguns como um tropeço resultante de
uma derrota eleitoral por margem escassa e por outros como o produto de uma
manipulação mediática prolongada combinada com
operações da máfia judicial, de grupos económicos
concentrados e do aparelho de inteligência dos Estados Unidos. Esta
última avaliação está mais próxima da
realidade, contudo é insuficiente. O
"golpe brando"
existiu (o que pulveriza a suposta legitimidade democrática do governo
actual) mas falta explicar porque teve êxito.
Se nos limitarmos a certos aspectos económicos do tema podemos observar
que o motor externo começou a arrefecer a partir de 2012, a seguir
à breve recuperação da recessão global de 2009. A
situação agravou-se desde meados de 2014 quando os preços
das
commodities
caíram a pique. A economia então passou a uma etapa de
crescimentos anémicos sustentados pelo mercado interno. Os grandes
exportadores aumentaram suas pressões destinadas a obter
benefícios na economia nacional que lhes permitissem compensar os
menores lucros externos convergindo com interesses financeiros e agrupando o
conjunto da direita mediática, judicial e política. Tratou-se de
uma matilha que se foi fortalecendo à medida que o seu inimigo perdia
espaço económico e que se acentuava a crise global.
Os equilíbrios do governo tornaram-se cada vez mais instáveis. As
comportas neokeynesianas que bloqueavam a maré começaram a sofrer
fissuras para finalmente desmoronarem. A candidatura presidencial de Daniel
Scioli foi uma opção defensiva e fraca que não pôde
evitar o colapso. Desencadeou-se então (foi desencadeada) a
recessão e diversos sinais nacionais e internacionais indicam-nos que
está para ficar. Encontramo-nos diante do começo de uma
depressão económica, resultado da reprodução de um
sistema que entrou numa fase de contracção desordenada.
Uma referência importante é a da saída da recessão
verificada a partir de 2003. Nesse período convergiram dois factores
principais: a alta dos preços internacionais das
commodities
e a reanimação do mercado interno.
O
"motor externo"
foi impulsionado pelo auge de mercados emergentes como os da China ou Brasil,
entre outros, o que permitiu uma melhoria substancial das contas externas da
Argentina. Os preços das
commodities
experimentaram altas notáveis nesses anos, impulsionados não
só pela expansão da procura internacional como também pelo
crescimento da especulação financeira. As operações
globais com produtos financeiros derivados baseados em
commodities
em Dezembro de 2003 chegavam a 1,4 milhão de milhões de
dólares, em Dezembro de 2005 alcançavam os 5,4 milhões de
milhões, em Junho de 2007 chegavam aos 8,2 milhões de
milhões e em Junho de 2008 aos 13,1 milhões de milhões de
dólares.
[4]
Pelo seu lado, o
"motor interno"
funcionou impulsionado pela ascensão do emprego, dos salários
reais e dos rendimentos das camadas médias. Em consequência,
expandiu-se a procura interna e o tecido industrial, a economia argentina
recuperou-se crescendo a taxas excepcionais. Como se sabe, o salário
real médio na Argentina experimenta uma tendência descendente de
longo prazo (desde meados dos anos 1970). Sofreu uma queda descomunal durante a
crise dos anos 2001-2001, recuperou-se a seguir chegando aos níveis dos
anos 1990 mas sem nunca alcançar os dos anos 1970, nem sequer os de
meados dos anos 1980
[5]
. Poderíamos resumir o acontecido assinalando que a
reanimação do mercado interno foi apoiado num forte crescimento
do emprego e numa recuperação salarial limitada.
CÍRCULO VICIOSO
Se o crescimento anémico dos últimos anos do governo anterior
incentivou a vontade de rapina dos grupos económicos concentrados,
é altamente provável que a recessão actual a acentue muito
mais. Ao contrair-se a economia, em consequência dos ajustes e das
transferências de rendimentos, esses grupos tentarão pelo menos
sustentar seu volume real de lucros apropriando-se de uma porção
crescente do rendimento nacional. Ainda que impulsionados pela sua
própria dinâmica e pelo exercício da totalidade do poder,
é quase certo que procurarão absorver um volume real maior.
Além disso, as medidas que procuram reequilibrar os
desequilíbrios provocados pelas próprias medidas
económicas do governo causam maior instabilidade e empobrecimento da
maior parte da população. É o caso da tentativa de
desacelerar a subida da cotação do dólar subindo as taxas
de juro, com o que por vezes se consegue travar por pouco tempo essa
tendência mas a custa do agravamento da recessão. Ou quando
se pretende diminuir o défice orçamental reduzindo a despesa
pública (despedindo empregados, encerrando programas, etc), o que agrava
a recessão e em consequência reduz as receitas fiscais e aumenta o
défice. Em suma, encontramo-nos diante de um círculo vicioso de
concentração de rendimentos, redução do Estado e
afundamento da actividade económica.
A queda dos salários reais não estimula mais investimento interno
ou externo, desestimulado pelo esvaziamento dos mercados nacional e global
(não há alternativa exportadora). Enquanto isso o governo
aparenta aferrar-se ao que seria a tábua de salvação da
economia: o endividamento externo que teoricamente lhe permitiria realizar
investimentos reactivadores. Mas o clima rarefeito do sistema financeiro
internacional comprime o espaço dos credores potenciais, cada vez mais
duros diante de uma economia nacional deprimida. Na realidade, essa ansiedade
por endividar-se não corresponde a uma paixão desenvolvimentista
e sim à pressão dos grupos de negócios que acumularam
super-lucros nestes últimos meses (exportadores, bancos, etc) e que
precisam convertê-los em dólares. É a evasão de
capitais e não o investimento produtivo que pede o endividamento externo.
Conclusão: os dois motores da saída da recessão na
década passada deixaram de funcionar. As políticas que procuravam
compensar o ciclo recessivo global foram eliminadas pelas classes dominantes
antes haviam sido úteis para elas a fim de restabelecer a
governabilidade e acumular lucros, agora destruíram-nas porque travavam
sua voracidade.
MODELO SINISTRO
É possível elaborar um modelo excessivamente abstracto de
estabilização do processo depressivo argentino sob a forma de
"economia de baixa intensidade"
ou de
"penúria",
ou seja, uma estrutura económica dual com um sector popular
contraído e uma elite a parasitar sobre o primeiro
(super-exploração dos trabalhadores e outros saqueios às
classes médias e baixas). Isso permitiria manter níveis de
importações relativamente baixos que assegurariam (nem sempre)
saldos positivos da balança comercial destinados a pagar dívidas
externas. Estas últimas, além de encherem os cofres das redes
financeiras, poderiam ser utilizadas para bloquear perigos de implosão e
de revolta social operando como uma espécie de droga dosificada
destinada a preservar a reprodução do sistema.
Esse modelo económico sinistro precisaria inevitavelmente do apoio de um
bem oleado mecanismo de repressão e degradação das classes
inferiores. Seria a instauração de um regime neofascista
concordante com a doutrina da
Guerra de quarta geração
[NR 2]
(restringindo-nos à realidade latino-americana não é
demais observar o que ocorre no México ou em países da
América Central). Exigiria além disso muita estabilidade no
interior da articulação mafiosa, com atenuação das
disputas internas perante um botim de volume variável sujeito a
numerosos factores de instabilidade locais e internacionais. Trata-se de um
cenário de realização muito difícil (mas não
impossível) acompanhando tendências depressivas globais em
simultâneo com o aumento da volatilidade em mercados decisivos,
proliferação de guerras, deteriorações
institucionais dos estados centrais, colapsos e crises graves de estados
periféricos e outros sintomas claros que mostram um planeta a caminhar
rumo a horizontes de alta turbulência.
O FANTASMA DO 2001
O governo macrista comporta-se como costumam fazê-lo os chamados
"sistemas caóticos"
que, ao contrário dos
"instáveis"
(em desordem permanente) e dos
"estáveis"
(que tendem para a ordem de maneira irresistível), oscilam entre um
pólo ordenador, ou seja, um "atractor" neofascista e
forças que o desordenam, que o conduzem para a crise de governabilidade.
A marcha rumo à ditadura mafiosa está escorada por três
estratégias convergentes: a corrupção de dirigentes, a
repressão dos protestos sociais e políticos e o bombardeamento
mediático. São operações de eficácia incerta
que circulam em meio ao afundamento económico e da luta de interesses
entre grupos dominantes. Apoiam-se além disso numa base social
reaccionária cujo núcleo duro impulsionado por uma euforia
neofascista está incrustado nas classes médias e altas.
A corrupção de dirigentes políticos e sindicais pode ser
útil [ao governo] a curto prazo para impor decisões impopulares
ou travar protestos. No entanto, desgasta os corruptos, corrói suas
posições de poder reduzindo a não muito longo prazo sua
capacidade operativa, tornando-os mais vulneráveis perante o
descontentamento popular. É o que se percebe nos primeiros meses do
governo macrista quanto à compra de sindicalistas, deputados, senadores
e governadores.
A repressão avança, funciona um Ministério da
Segurança subordinado ao aparelho de inteligência dos Estados
Unidos, regressaram as
"polícias bravas",
foi ditado um
"Protocolo"
de repressão de protestos populares, aparecem as primeiras
expressões, aparentemente desordenadas, de repressão ilegal. Mas
não é seguro que essa estratégia de amedrontamento tenha
êxito. É possível que o seu efeito acabe por ser o oposto
do que o governo procura. Na Argentina exista uma enraizada cultura de
confrontação contra a brutalidade estatal que pode catalisar um
transbordamento opositor.
O bombardeamento mediático foi um instrumento decisivo para a chegada de
Macri à presidência. Teve uma eficácia elevada atacando o
governo e ampliando um vazio político que podia ser ocupado por
opositores de direita que se limitavam a denunciar o oficialismo, contrapondo
promessas vagas de felicidade futura. Agora esses media têm de arcar com
a tarefa complexa de defender um regime claramente antipopular. Neste novo
cenário, sua eficácia é decrescente e a tentativa de
compensar esse declínio aumentando a pressão mediática
(já por si esmagadora) produz efeitos de saturação e
descrédito quanto às referidas intoxicações,
até gerar repúdios cada vez mais fortes.
Finalmente, a base social neofascista pode ser fanatizada ao extremo pelos
meios de comunicação mas é quase impossível impedir
que sua área de influência, sobretudo nas classes médias,
se vá reduzindo à medida que a depressão económica
se prolonga o que acabará por deteriorar esse sector
reaccionário.
Em síntese, o sistema dispõe de instrumentos e apoios sociais
cada vez mais vulneráveis. Sua força depende em última
instância do grau de debilidade do seu adversário: o espaço
popular, se este se puser em marcha e se fortalecer na luta o instrumental
autoritário poderia sofrer fissuras, brechas cada vez mais importantes,
seu inevitável centralismo operativo acossado por uma maré
ascendente de ataques, resistências e repúdios iria perdendo
vitalidade, acentuando-se suas contradições internas. O contexto
global turbulento deveria contribuir para o referido processo.
Cedo ou tarde a resistência popular pode chegar a converter-se em
ofensiva geral contra o sistema. A acumulação de esforços
combativos dos de baixo produzindo recuos nas elites dominantes terminaria por
gerar um salto qualitativo de grandes dimensões. Não seria a
primeira vez que ocorreria este fenómeno na Argentina, ainda que seu
aspecto e conteúdo possam incluir muitas novidades.
Obviamente a grave deterioração do governo macrista pode levar a
uma remodelação da equipe presidencial (uma espécie de
"governo-de-unidade-nacional") ou a uma mudança institucional
de governo destinado a estabilizar a situação. Ainda assim, mesmo
introduzindo medidas "sociais" mais ou menos audazes, este governo
enfrentaria uma crise sistémica esmagadora, muito mais grave que a de
2001, num contexto global depressivo. Uma conjuntura deste tipo dificilmente
poderia ser superada com aspirinas rosadas ou de outra cor.
Mal chegou à presidência Macri lançou à grande
velocidade uma enxurrada de decretos arbitrários, desenvolveu de
imediato uma ofensiva para assegurar o controle direitista dos meios de
comunicação
[NR 3]
, comprou (ou extorquiu) dirigentes políticos e
sindicais, reduziu o poder aquisitivo dos salários e das pensões,
lançou uma onda de despedimentos de empregados públicos,
concretizou enormes transferências de rendimentos para as elites
dominantes. Em suma: desenvolveu uma
blitzkrieg
destinada a evitar resistências possíveis antes que estas se
organizassem. De qualquer modo não estava em condições de
impor este saqueio gigantesco mediante um sistema de negociações.
O nível de destruição conseguido em tão pouco tempo
provavelmente o terá convencido do seu êxito, incitando-o a
continuar a avançar.
A irrupção devastadora das elites dominantes poderia ser
assimilada à de um exército a penetrar num vasto
território. No começo a ofensiva tem êxito. O efeito
surpresa, a exploração de debilidades locais, a
contundência da operação, etc permitem avanços
rápidos aparentemente irreversíveis. Mas pouco a pouco as
vítimas começam a reagir acossando o invasor e o espaço
simplificado nos mapas e relatórios de especialistas vai-se convertendo
num sistema complexo, cada vez mais incontrolável. A velocidade inicial
da sucessão de vitórias que a princípio aparentava ser a
chave do êxito começa a ser percebida pelo invasor com a causa
principal das suas dificuldades. A rapidez operativa gera fenómenos de
inadaptação, de super-extensão estratégica que
aumentam a sua vulnerabilidade levando-o finalmente à derrota, esmagado
por uma avalanche humana imparável (recordemos o que aconteceu a
Napoleão quando invadiu a Rússia).
Macri poderia acabar por descobrir que a realidade social argentina é
muito mais complexa do que aquilo que a sua visão de mafioso detectava,
que a cultura popular existe e se reproduz (maltratada, golpeada, mas existe),
que os salários não são como ele disse uma vez
"um custo mais"
que pode e deve ser comprimido ao máximo como qualquer outro insumo e
sim o pagamento a seres humanos que pensam e se defendem. E, finalmente, que
para um bandido não há nada pior que outro bandido (os
sócios de hoje podem ser os canibais de amanhã).
04/Abril/2016
[1] Horacio Verbitsky, "La transparencia del sigilo", Página
12, Buenos Aires, 27 de marzo de 2016.
[2] Jorge Beinstein,
"La ilusión del metacontrol imperial del caos. La mutación del sistema de intervención militar de los Estados Unidos y sus consecuencias para América Latina"
, Seminario "Nuestra América y Estados Unidos: desafíos del
Siglo XXI". Facultad de Ciencias Económicas de la Universidad
Central del Ecuador, Quito, 30 y 31 de Enero de 2013;
A ilusão do metacontrole imperial do caos
[3] Jorge Beinstein, art. cit.
[3] Fonte: "Semiannual OTC derivatives statistics", Bank for
International Settlements (BIS).
[4] Eduardo M. Basualdo, "La distribución del ingreso en la
Argentina y sus condicionantes estructurales", Memoria Anual 2008, del
Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), Argentina.
[5] Juan Kornblihtt e Tamara Seiffer,
"La persistente caída del salario real argentino (1975 a la actualidad)"
, Revista de la Bolsa de Comercio de Rosario, 2014,
[NR]
[1] Bicicleta especulativa: Na Argentina significa
por exemplo entrar 100 dólares a 1 peso por dólar, a seguir aplicar esses pesos
com uma taxa de juro elevada, digamos que de 40%. Com isso o
especulador ganha 140 pesos e a seguir recompra dólares a 1 peso por dólar,
caso em que transforma 100 dólares em 140 dólares. Se no período do
empréstimo o peso se desvalorizou 20%, então com os 100 dólares iniciais terá
conseguido 140 pesos para a seguir transformá-los em 112 dólares (isto é, uma
taxa de juro em dólares de 12%). A primeira coisa que Macri fez como
presidente foi desvalorizar o peso, mas a seguir impôs uma taxa de juro de 38%
ao ano com a esperança de que entrassem fundos especulativos. Mas isso
não aconteceu porque se aguardavam mais desvalorizações. Esta "bicicleta
financeira" é uma prática antiga em países com liberdade cambial e altas taxas
de juro.
[2] Guerra de quarta geração: Ver o livro de Andrew
Korybko, o qual pode ser descarregado
aqui
.
[3] Ver
Lei de Meios argentina sofre desmonte autoritário com governo Macri
Artigo anterior de Jorge Beinstein:
América Latina na hora do lumpen-capitalismo: Ilusões progressistas devoradas pela crise
[*]
Economista, argentino, docente da Universidade de Buenos Aires,
jorgebeinstein@gmail.com
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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