África: O tsunami do crescimento
A dívida e os Planos de
Ajustamento Estrutural (PAE), que obrigaram os Estados de África a optar
pelo liberalismo quaisquer que fossem os prejuízos, levaram ao fracasso
as oportunidades do continente negro e asseguraram uma miséria duradoira.
A saúde e a escola
passaram a ser pagas: só uma elite poderá respeitar as normas de
higiene, prevenir as doenças mais benignas, ter consciência dos
perigos da existência e dos seus segredos, informar-se, preservar o
ambiente, etc.
A água e a
electricidade, descuradas pelo Estado empobrecido, tornaram-se
hipotéticas, excepto para os mais ricos que podem dar-se ao luxo de ter
contentores de reservas, transformadores e grupos electrogéneos.
Os transportes públicos
desapareceram, dando lugar a uma selva de veículos privados em
condições miseráveis. Os eixos rodoviários nunca
foram construídos ou já não são arranjados por
falta de orçamento estatal. Ora, os camponeses, sem esses eixos,
impossibilitados de transportar para as cidades as suas produções
efémeras e perecíveis, não podem mais sobreviver.
Hoje, a nova palavra
mágica, encarregada de salvar o continente (e o mundo!), é
"crescimento". A lógica do "crescimento", imposta
graças à definitiva dependência que o endividamento
assegura e assentando na miséria, vai determinar, fatalmente, a
destruição física, moral e ecológica do continente.
Na realidade, cansados de um
quotidiano de privações constantes, de sofrimentos sem
saída, de mortes aberrantes, os africanos caíram no logro do
consumo desenfreado a qualquer preço. A falta do necessário torna
qualquer um mais ávido do supérfluo, segundo uma lógica
humana inacessível à razão lógica: na Europa, as
categorias sociais mais carenciadas sobreendividam-se para consumir mais que as
classes médias, que, essas, teriam meios para isso, mas mantêm-se
muitas vezes mais razoáveis.
No continente negro, o
telemóvel torna-se uma prioridade muito à frente da
segurança alimentar e toda a gente ingurgita pedaços de frango
importado, 83,5% dos quais declarados impróprios para o consumo pelo
Instituto Pasteur dos Camarões. Os produtos importados são todos
melhores que os produtos locais, seja qual for a sua inadaptação
às realidades locais: vestuário e calçado, em
nylon
e
sky,
que são vendidos depois de dados pelos habitantes dos países
ocidentais a associações caritativas ou terem ficado por vender
nos armazéns comerciais, têm um sucesso monstro em países
de temperaturas acima dos 30º e com uma taxa de humidade de 80%, onde
esses materiais plásticos provocam no corpo uma maceração
doentia, origem de doenças da pele.
Oferecer às
crianças, no Natal, um
game boy
é uma coisa vital, mesmo quando dura apenas algumas semanas, pois vem
da China e foi concebido para ser acessível às pequenas bolsas,
ou seja, com materiais de baixa qualidade que duram um tempo mínimo mas
asseguram a ilusão da posse e, também, uma
renovação tão rápida quanto possível,
sobretudo nas condições de temperatura, humidade e
utilização do continente africano (jogo na areia do pátio,
zaragatas entre crianças). O crescimento assim o exige e, deste modo, o
game boy
passará à frente do pagamento da factura da água, que
garantiria às crianças uma higiene mínima e as defenderia
contra a sarna, as amibas, as gastroenterites.
Comprar o último
telemóvel, acessível, agora, dada a baixa gama fabricada na China
por escravos, e expô-lo na mesa do bar onde se conversa sobre os
vários problemas é mais importante do que comprar um mosquiteiro
que salve os filhos do paludismo, pois o paludismo tornou-se uma fatalidade
contra a qual já não se luta.
Os painéis
publicitários substituíram em todas as ruas do continente os
painéis de prevenção sanitária: poucas pessoas
sabem ainda hoje as causas, os vectores das doenças de base (amibas,
kwashiorkor, etc) que eram ensinados na escola ou em campanhas nacionais de
prevenção, antes de os PAE terem imposto restrições
orçamentais draconianas a fim de garantir "o equilíbrio
macroeconómico do orçamento", isto é, o reembolso da
dívida e a isenção de taxas a investidores estrangeiros.
Consequentemente, a
esperança de vida diminui de ano para ano, por causa da Sida, segundo as
instituições internacionais, mas, na realidade, sobretudo pelo
facto de a maioria da população não ter acesso aos
cuidados de saúde.
Em primeiro lugar, porque de
há 10 anos para cá os salários dos funcionários
estão congelados, depois de terem sido reduzidos à metade com a
desvalorização do franco CFA
[1]
em 1994, medida macroeconómica também que faz dos cuidados de
saúde objecto das especulações mais macabras: por uma
cesariana, no Congo-Brazzaville, pagam-se 45 euros à caixa do hospital,
mas, depois, ainda com a mulher no bloco operatório, o médico, o
anestesista, as enfermeiras, uns atrás dos outros vêm reclamar
sucessivos pagamentos e a operação fica, finalmente, por 300
euros. Daí que uma mulher em 100 morra de parto.
Mas, também, porque os
cuidados de saúde garantem hoje muito pouco a cura, dada a
degradação do material e da competência (a maioria dos
médicos qualificados estão no Ocidente), e as pessoas já
não crêem nisso, preferindo entregar-se à fatalidade ou,
pior, ao poder dos pastores das mais diversas seitas, na sua maioria dos
Estados Unidos.
Submergidos pelas
dívidas a usurários hábeis, as pessoas desistem de se
defender, abandonam qualquer vigilância ou moral, que a escola nem sequer
lhes inculcou, à falta de professores, por um lado
(redução dos efectivos e dos salários dos
funcionários exigida pelas instituições financeiras
internacionais para equilibrar os orçamentos) e à falta, por
outro lado, de meios financeiros dos familiares no desemprego.
O trabalho assalariado
já não assegura um rendimento que permita viver e é
desvalorizado em relação à traficância e ao
desenrascanço que permitem aos malandros (das ruas e do Estado) consumir.
Qualquer actividade que
não produza dinheiro é considerada improdutiva. As actividades
produtoras de paz social ou familiar, de desenvolvimento intelectual, de
restabelecimento da moral, de equilíbrio psicológico individual,
de saúde, de riqueza cultural são escarnecidas e desprezadas. O
valor social não se mede senão pela produção de
riqueza financeira e os professores, que não podem "consumir"
por falta de meios e não "produzem" nada, a não ser
pessoas mais conscientes, estão entre os mais escarnecidos da sociedade.
Os grandes ladrões, a
rebuscar alegremente nas arcas do Estado, assegurando a
degradação geral dos serviços, são qualificados
como "fortes" pelos "pequenos" que, de tempos a tempos,
apanham as migalhas. Quando estes "fortes" atravessam a cidade e o
país, a velocidade louca, nos 4 por 4 novinhos em folha que chegaram ao
país a 100 mil euros, os outros deixam-nos passar, dão-lhes
passagem, por receio, de certo, mas não só: uma vaga
admiração por aquele que "triunfou" existe no fundo de
cada um. É que ele "triunfou" por beneficiar da sorte de ter
um membro da família nas estruturas do Estado. Assim, pode consumir,
esbanjar, degradar: ele tem esse direito, o dever mesmo, para ser respeitado.
Contudo, também ele
hoje, graças ao "crescimento" da China e da Índia, vai
consumir produtos de duração efémera: frigorífico
que dura dois anos e muitas vezes menos, pois também ele recebe a
corrente degradada e desadaptada que lhe envia a companhia nacional de
electricidade em situação de falência, para poder ser
privatizada em breve por um franco simbólico a uma multinacional
ocidental. Como também lhe pode dizer respeito as rupturas de gasolina,
provocadas pelos descarrilamentos dos comboios (da companhia nacional em
situação de falência). E, mesmo que ele tenha sempre a
prioridade nas quantidades restantes antes da penúria total, o seu grupo
electrogéneo pode ficar sem pinga de gasolina.
Mas é preciso consumir
produtos de plástico, brinquedos cada vez mais efémeros,
engenhocas marcadas com um ferro em brasa e vendidas por imigrantes sem eira
nem beira, artigos de informática e telefones cheios de materiais
minerais poluentes e não controlados, produtos químicos de beleza
(para branquear a pele), alimentos conservados quimicamente que serão
comidos após o prazo de validade, etc.
Produtos lançados a
seguir para o caminho à frente da casa ou apanhados pelos
miseráveis nos caixotes do lixo que os lançarão, depois,
onde puderem, de preferência à beira de um rio, já que
"a água lava tudo". Produtos todos eles mais poluentes uns que
os outros, pois vêm de fábricas não controladas, sem
normas, sem composição indicada. Produtos que poluirão
durante 200 anos depois de terem servido um dia ou dois meses.
Também o paludismo
grassa por causa do consumo: os saquinhos pretos, dados gratuitamente e
sistematicamente a toda a pessoa que consome, formam hoje camadas tais no solo
africano que a água não consegue infiltrar-se, mantendo-se,
assim, diante das casas, nos caminhos juncados de caixotes do lixo, charcas
imensas, ainda presentes uma semana depois da última chuvada, a dar como
certa uma reprodução fácil e eficaz das larvas de
mosquitos. E o gado e os galináceos dos campos africanos morrem ao
ingerir esses sacos, o que compromete igualmente a agricultura.
O "crescimento", isto
é, o aumento exponencial do consumo de produtos manufacturados ou
vendidos após uma leve transformação, é apresentado
oficialmente como uma fonte de melhoria do conforto individual e uma prova do
funcionamento da economia de um país, quando, na verdade, é
apenas o meio de permitir às empresas multinacionais conseguir lucros a
investir na bolsa ou na banca e de obrigar os indivíduos e os Estados a
contrair empréstimos para fazer girar o triturador da finança
internacional.
Impõe-se garantir o
"crescimento", apresentado como salvação única,
mas sobretudo como garantia da redução da miséria, quando
a própria CNUCED reconhece hoje que o crescimento permite que os mais
ricos se enriqueçam mais e que, aos mais pobres, se lhes acresça
a miséria.
"Dado que o crescimento não beneficia automaticamente os pobres, a
nova abordagem da questão insiste principalmente no fornecimento de
serviços públicos de educação primária e de
cuidados de saúde. A nova política continua a prever que uma
rápida liberalização comercial e financeira melhore o
acesso dos pobres aos activos financeiros e outros que lhes permitam escapar
à pobreza. Ora, a experiência em África deveria incitar
à maior prudência na matéria. O estudo mostra que um
crescimento das despesas públicas a todos os níveis é o
meio mais seguro de reduzir a desigualdade de rendimentos".
[2]
No entanto, não
há país africano que não faça previsões de
crescimento: na previsão do orçamento para 2005, o
Congo-Brazzaville conta com uma taxa, em termos reais, de 9,2%, o Nepad
[3]
espera, no começo do texto, 7% para os anos a vir e, depois, no fim, 6%
(!). Como esse crescimento se processará e que efeitos perversos vai
gerar, silêncio, consumamos! A ciência encarregar-se-á de
reparar os prejuízos ambientais! Que ciência? Uma ciência
resultante de uma investigação científica sem
orçamento?
22/Setembro/2005
[*]
Da Associação Para uma Alternativa ao Serviço da
Humanidade (APASH) e do Comité para a Anulação da
Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), Brazzaville, Congo.
Notas
[1] Franco CFA = moeda da Comunidade Financeira Africana.
[2] Do ajustamento à redução da pobreza: que há de
novo?
www.un.org/publications
. Ver igualmente o último relatório CNUCED "O
desenvolvimento económico em África: Repensar o papel do
investimento estrangeiro directo", Setembro/2005.
[3[ NEPAD = New Partnership for Africa's Development
O original encontra-se em
http://www.legrandsoir.info/article.php3?id_article=2689
.
Tradução de MJS.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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