África: O tsunami do crescimento

por Isabelle Likouka [*]

Pintura de Malangatana.         A dívida e os Planos de Ajustamento Estrutural (PAE), que obrigaram os Estados de África a optar pelo liberalismo quaisquer que fossem os prejuízos, levaram ao fracasso as oportunidades do continente negro e asseguraram uma miséria duradoira.

        A saúde e a escola passaram a ser pagas: só uma elite poderá respeitar as normas de higiene, prevenir as doenças mais benignas, ter consciência dos perigos da existência e dos seus segredos, informar-se, preservar o ambiente, etc.

        A água e a electricidade, descuradas pelo Estado empobrecido, tornaram-se hipotéticas, excepto para os mais ricos que podem dar-se ao luxo de ter contentores de reservas, transformadores e grupos electrogéneos.

        Os transportes públicos desapareceram, dando lugar a uma selva de veículos privados em condições miseráveis. Os eixos rodoviários nunca foram construídos ou já não são arranjados por falta de orçamento estatal. Ora, os camponeses, sem esses eixos, impossibilitados de transportar para as cidades as suas produções efémeras e perecíveis, não podem mais sobreviver.

        Hoje, a nova palavra mágica, encarregada de salvar o continente (e o mundo!), é "crescimento". A lógica do "crescimento", imposta graças à definitiva dependência que o endividamento assegura e assentando na miséria, vai determinar, fatalmente, a destruição física, moral e ecológica do continente.

        Na realidade, cansados de um quotidiano de privações constantes, de sofrimentos sem saída, de mortes aberrantes, os africanos caíram no logro do consumo desenfreado a qualquer preço. A falta do necessário torna qualquer um mais ávido do supérfluo, segundo uma lógica humana inacessível à razão lógica: na Europa, as categorias sociais mais carenciadas sobreendividam-se para consumir mais que as classes médias, que, essas, teriam meios para isso, mas mantêm-se muitas vezes mais razoáveis.

        No continente negro, o telemóvel torna-se uma prioridade muito à frente da segurança alimentar e toda a gente ingurgita pedaços de frango importado, 83,5% dos quais declarados impróprios para o consumo pelo Instituto Pasteur dos Camarões. Os produtos importados são todos melhores que os produtos locais, seja qual for a sua inadaptação às realidades locais: vestuário e calçado, em nylon e sky, que são vendidos depois de dados pelos habitantes dos países ocidentais a associações caritativas ou terem ficado por vender nos armazéns comerciais, têm um sucesso monstro em países de temperaturas acima dos 30º e com uma taxa de humidade de 80%, onde esses materiais plásticos provocam no corpo uma maceração doentia, origem de doenças da pele.

        Oferecer às crianças, no Natal, um game boy é uma coisa vital, mesmo quando dura apenas algumas semanas, pois vem da China e foi concebido para ser acessível às pequenas bolsas, ou seja, com materiais de baixa qualidade que duram um tempo mínimo mas asseguram a ilusão da posse e, também, uma renovação tão rápida quanto possível, sobretudo nas condições de temperatura, humidade e utilização do continente africano (jogo na areia do pátio, zaragatas entre crianças). O crescimento assim o exige e, deste modo, o game boy passará à frente do pagamento da factura da água, que garantiria às crianças uma higiene mínima e as defenderia contra a sarna, as amibas, as gastroenterites.

        Comprar o último telemóvel, acessível, agora, dada a baixa gama fabricada na China por escravos, e expô-lo na mesa do bar onde se conversa sobre os vários problemas é mais importante do que comprar um mosquiteiro que salve os filhos do paludismo, pois o paludismo tornou-se uma fatalidade contra a qual já não se luta.

        Os painéis publicitários substituíram em todas as ruas do continente os painéis de prevenção sanitária: poucas pessoas sabem ainda hoje as causas, os vectores das doenças de base (amibas, kwashiorkor, etc) que eram ensinados na escola ou em campanhas nacionais de prevenção, antes de os PAE terem imposto restrições orçamentais draconianas a fim de garantir "o equilíbrio macroeconómico do orçamento", isto é, o reembolso da dívida e a isenção de taxas a investidores estrangeiros.

        Consequentemente, a esperança de vida diminui de ano para ano, por causa da Sida, segundo as instituições internacionais, mas, na realidade, sobretudo pelo facto de a maioria da população não ter acesso aos cuidados de saúde.

        Em primeiro lugar, porque de há 10 anos para cá os salários dos funcionários estão congelados, depois de terem sido reduzidos à metade com a desvalorização do franco CFA [1] em 1994, medida macroeconómica também que faz dos cuidados de saúde objecto das especulações mais macabras: por uma cesariana, no Congo-Brazzaville, pagam-se 45 euros à caixa do hospital, mas, depois, ainda com a mulher no bloco operatório, o médico, o anestesista, as enfermeiras, uns atrás dos outros vêm reclamar sucessivos pagamentos e a operação fica, finalmente, por 300 euros. Daí que uma mulher em 100 morra de parto.

        Mas, também, porque os cuidados de saúde garantem hoje muito pouco a cura, dada a degradação do material e da competência (a maioria dos médicos qualificados estão no Ocidente), e as pessoas já não crêem nisso, preferindo entregar-se à fatalidade ou, pior, ao poder dos pastores das mais diversas seitas, na sua maioria dos Estados Unidos.

        Submergidos pelas dívidas a usurários hábeis, as pessoas desistem de se defender, abandonam qualquer vigilância ou moral, que a escola nem sequer lhes inculcou, à falta de professores, por um lado (redução dos efectivos e dos salários dos funcionários exigida pelas instituições financeiras internacionais para equilibrar os orçamentos) e à falta, por outro lado, de meios financeiros dos familiares no desemprego.

        O trabalho assalariado já não assegura um rendimento que permita viver e é desvalorizado em relação à traficância e ao desenrascanço que permitem aos malandros (das ruas e do Estado) consumir.

        Qualquer actividade que não produza dinheiro é considerada improdutiva. As actividades produtoras de paz social ou familiar, de desenvolvimento intelectual, de restabelecimento da moral, de equilíbrio psicológico individual, de saúde, de riqueza cultural são escarnecidas e desprezadas. O valor social não se mede senão pela produção de riqueza financeira e os professores, que não podem "consumir" por falta de meios e não "produzem" nada, a não ser pessoas mais conscientes, estão entre os mais escarnecidos da sociedade.

        Os grandes ladrões, a rebuscar alegremente nas arcas do Estado, assegurando a degradação geral dos serviços, são qualificados como "fortes" pelos "pequenos" que, de tempos a tempos, apanham as migalhas. Quando estes "fortes" atravessam a cidade e o país, a velocidade louca, nos 4 por 4 novinhos em folha que chegaram ao país a 100 mil euros, os outros deixam-nos passar, dão-lhes passagem, por receio, de certo, mas não só: uma vaga admiração por aquele que "triunfou" existe no fundo de cada um. É que ele "triunfou" por beneficiar da sorte de ter um membro da família nas estruturas do Estado. Assim, pode consumir, esbanjar, degradar: ele tem esse direito, o dever mesmo, para ser respeitado.

        Contudo, também ele hoje, graças ao "crescimento" da China e da Índia, vai consumir produtos de duração efémera: frigorífico que dura dois anos e muitas vezes menos, pois também ele recebe a corrente degradada e desadaptada que lhe envia a companhia nacional de electricidade em situação de falência, para poder ser privatizada em breve por um franco simbólico a uma multinacional ocidental. Como também lhe pode dizer respeito as rupturas de gasolina, provocadas pelos descarrilamentos dos comboios (da companhia nacional em situação de falência). E, mesmo que ele tenha sempre a prioridade nas quantidades restantes antes da penúria total, o seu grupo electrogéneo pode ficar sem pinga de gasolina.

        Mas é preciso consumir produtos de plástico, brinquedos cada vez mais efémeros, engenhocas marcadas com um ferro em brasa e vendidas por imigrantes sem eira nem beira, artigos de informática e telefones cheios de materiais minerais poluentes e não controlados, produtos químicos de beleza (para branquear a pele), alimentos conservados quimicamente que serão comidos após o prazo de validade, etc.

        Produtos lançados a seguir para o caminho à frente da casa ou apanhados pelos miseráveis nos caixotes do lixo que os lançarão, depois, onde puderem, de preferência à beira de um rio, já que "a água lava tudo". Produtos todos eles mais poluentes uns que os outros, pois vêm de fábricas não controladas, sem normas, sem composição indicada. Produtos que poluirão durante 200 anos depois de terem servido um dia ou dois meses.

        Também o paludismo grassa por causa do consumo: os saquinhos pretos, dados gratuitamente e sistematicamente a toda a pessoa que consome, formam hoje camadas tais no solo africano que a água não consegue infiltrar-se, mantendo-se, assim, diante das casas, nos caminhos juncados de caixotes do lixo, charcas imensas, ainda presentes uma semana depois da última chuvada, a dar como certa uma reprodução fácil e eficaz das larvas de mosquitos. E o gado e os galináceos dos campos africanos morrem ao ingerir esses sacos, o que compromete igualmente a agricultura.

        O "crescimento", isto é, o aumento exponencial do consumo de produtos manufacturados ou vendidos após uma leve transformação, é apresentado oficialmente como uma fonte de melhoria do conforto individual e uma prova do funcionamento da economia de um país, quando, na verdade, é apenas o meio de permitir às empresas multinacionais conseguir lucros a investir na bolsa ou na banca e de obrigar os indivíduos e os Estados a contrair empréstimos para fazer girar o triturador da finança internacional.

        Impõe-se garantir o "crescimento", apresentado como salvação única, mas sobretudo como garantia da redução da miséria, quando a própria CNUCED reconhece hoje que o crescimento permite que os mais ricos se enriqueçam mais e que, aos mais pobres, se lhes acresça a miséria. "Dado que o crescimento não beneficia automaticamente os pobres, a nova abordagem da questão insiste principalmente no fornecimento de serviços públicos de educação primária e de cuidados de saúde. A nova política continua a prever que uma rápida liberalização comercial e financeira melhore o acesso dos pobres aos activos financeiros e outros que lhes permitam escapar à pobreza. Ora, a experiência em África deveria incitar à maior prudência na matéria. O estudo mostra que um crescimento das despesas públicas a todos os níveis é o meio mais seguro de reduzir a desigualdade de rendimentos". [2]

        No entanto, não há país africano que não faça previsões de crescimento: na previsão do orçamento para 2005, o Congo-Brazzaville conta com uma taxa, em termos reais, de 9,2%, o Nepad [3] espera, no começo do texto, 7% para os anos a vir e, depois, no fim, 6% (!). Como esse crescimento se processará e que efeitos perversos vai gerar, silêncio, consumamos! A ciência encarregar-se-á de reparar os prejuízos ambientais! Que ciência? Uma ciência resultante de uma investigação científica sem orçamento?

22/Setembro/2005

[*] Da Associação Para uma Alternativa ao Serviço da Humanidade (APASH) e do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), Brazzaville, Congo.

Notas
[1] Franco CFA = moeda da Comunidade Financeira Africana.
[2] Do ajustamento à redução da pobreza: que há de novo? www.un.org/publications . Ver igualmente o último relatório CNUCED "O desenvolvimento económico em África: Repensar o papel do investimento estrangeiro directo", Setembro/2005.
[3[ NEPAD = New Partnership for Africa's Development


O original encontra-se em http://www.legrandsoir.info/article.php3?id_article=2689 .
Tradução de MJS.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
07/Out/05