A acumulação de capital na África Austral
A relevância contemporânea de Rosa Luxemburgo
por Arndt Hopfmann (prefácio)
A acumulação capitalista como um todo, como um processo
histórico real, tem dois aspectos diferentes. Um refere-se ao
mercado
para as mercadorias e o lugar onde é produzida a mais valia a
fábrica, a mina, a propriedade agrícola
O outro
aspecto da
acumulação de capital refere-se às relações
entre o capitalismo e os modos de produção não
capitalistas, os quais começam a surgir no cenário internacional.
Seus métodos predominantes são política colonial, um
sistema internacional de empréstimo uma política de
esferas de interesse e guerra. Força, fraude,
opressão,
saque são exibidas abertamente sem qualquer tentativa de
encobrimento
- Rosa Luxemburg,
The Accumulation of Capital,
p. 432.
O capital agora devora seres humanos: ele tornou-se um canibal.
Doravante toda a actividade humana deve tornar-se capital e parir juros, de
modo a que o
capital à procura de investimento possa viver: escolas,
infantários, universidades, sistemas de saúde, distribuidores de
energia, estradas, ferrovias, correios, telecomunicações e outros
meios de comunicação, etc. Os sonhos anarco-capitalistas
pretendem ir mais longe. Mesmo a polícia e a
legislação
devem ser transformados em investimentos do capital. Uma pessoa recebe
licença para viver e participar em qualquer destas esferas da sociedade
desde que pague ao capital as taxas exigidas na forma de juros. O capital
torna-se um 'supermundo' ao qual devem ser trazidas vítimas para o
sacrifício.
- Ulrich Duchrow e Franz Hinkelammert,
Property for people, not for profit,
p.148.
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Estas duas citações apresentam de uma forma abreviada os
traços básicos da acumulação capitalista desde as
suas origens até às suas formas actuais a dominância
das formas capitalistas na arena da produção material, o uso
contínuo da coerção, da violência e do roubo a fim
de aumentar a taxa de lucro, bem como a tendência intrínseca do
capitalismo para subjugar todos os aspectos da vida social ao reino do lucro.
O 3º Seminário de Educação Política Rosa
Luxemburgo, organizado em conjunto pelo Centro da Sociedade Civil da
Universidade de KwaZulu-Natal, em Durban, e pelo Gabinete Regional Sul Africano
da Fundação Rosa Luxemburgo, realizou-se de 2 a 4 de Março
em Durban. O seminário examinou estas características gerais da
acumulação capitalista no contexto global, regional e local. Tal
contexto é moldado, por um lado, pelo impacto crescente de um impulso
corporativo para a globalização, mas também pela
expansão do capital sul africano em países vizinhos, pela
emergência de novas formas de 'acumulação primitiva' sob o
rótulo do 'Fortalecimento da economia negra'
('Black Economic Empowerment')
e a mercantilização e privatização em curso de
serviços públicos.
Por outro lado, há um movimento crescente que não só
resiste à comercialização de todas as esferas da vida
humana como aspira construir alternativas criar 'um outro mundo' o que
não só é possível como também
necessário.
O êxito do Seminário deveu-se a muitos participantes.
Contribuições muito valiosas foram feitas por convidados de
além mar, como Elmar Altvater, Nicola Bullard, Massimo De Angelis,
Ulrich Duchrow e Gill Hart. Outras intervenções cruciais
provieram de activistas-académicos da região, incluindo Jeff Guy,
Ntwala Mwilima, Prishani Naidoo e Greg Ruiters. Mas isto por si só
não teria sido suficiente para tornar o seminário o evento
estimulante que foi. O outro factor foi a vibrante interacção da
base.
Contribuições de activistas das cidades e de movimentos sociais
e o muitas vezes esquecido trabalho discreto dos membros da equipe das
instituições organizadoras criaram uma atmosfera de debate
rigoroso e encorajamento mútuo.
Este livro contem algumas das contribuições ao 3º
Seminário de Educação Política Rosa Luxemburgo. Os
materiais aqui reunidos proporcionarão, esperamos, uma valiosa fonte de
inspiração para activistas e deverão encorajá-los a
estender os seus estudos a outras importantes obras escritas que fazem parte da
nossa enorme herança teórica. Entretanto, estes textos nunca
poderão reflectir o espírito de interacção viva e
solidariedade que prevaleceu durante todo o evento. Para experimentar este
sentimento único era essencial estar ali.
Por isso, estou ansioso por convidar os leitores para o Seminário Rosa
Luxemburgo de 2007, o qual será realizado de 1 a 3 de Março em
Cape Town.
Introdução
por Patrick Bond e Horman Chitonge
Com uma taxa de 16 protestos por dia na África do Sul no período
2004-05,
da qual 13 por cento era ilegal, é evidente que os activistas retornaram
a uma militância anterior que alguns receavam ter sido esquecida ou
completamente reprimida na era pós apartheid. Isto reflecte processos
através da região, na esteira de traições
pós independência de progressos prometidos. Se tomarmos apenas um
caso da região, o Zimbabwe, Simba Manyanya e Patrick Bond documentaram
cinco etapas ao longo de um período de vinte anos (1980-2000):
-um movimento de libertação que venceu repetidas
eleições contra uma oposição terrivelmente fraca,
mas sob circunstâncias de pioria do abstencionismo e de
despolitização das massas;
-em simultâneo, o inegável fracasso daquele movimento em
proporcionar uma vida melhor para a maior parte das pessoas de baixo rendimento
do país, enquanto a desigualdade material ascendia;
-crescente alienação popular, e cinismo, em relação
a políticos nacionalistas, quando o fosso entre dominantes e dominados
aprofunda-se inexoravelmente e casos cada vez mais numerosos de
corrupção e mau governo chegam à atenção do
público;
-crescente miséria económica depois de políticas
neoliberais serem tentadas e fracassarem, e
-a ascensão súbita de um movimento de oposição
baseado nos sindicatos, rapidamente apoiados pela maior parte da sociedade
civil, pela pequena burguesia e pelos media independentes o conduz
potencialmente à eleição de um novo governo pós
nacionalista.
Esta trajectória aparece inexoravelmente também para a
África do Sul, ainda que não na mesma escala de tempo, dadas as
ligações mais fortes entre sindicatos e partido dominante
(especialmente na esteira da ascensão e queda e ascensão e queda
e ascensão
de Jacob Zuma). Quanto a isto, teremos continuamente
nossos ouvidos atentos às dimensões regionais, para aprender
tanto quanto possível de episódios anteriores de capitalismo
nacionalista exaurido, e de reacções temporariamente sem
êxito das forças progressistas na sociedade civil.
Afinal de contas, durante mais de três séculos estas região
abrigou algumas das mais intensas competições do mundo entre o
capitalismo e a vida social e natural não capitalista na
mineração, agricultura, indústria e serviços
tomando plena vantagem da escravidão, do colonialismo, neocolonialismo,
apartheid e neoliberalismo. O resultado foi uma contínua
'acumulação primitiva' pela qual o capital atinge a
super-exploração de mulheres, povos indígenas, ambientes
naturais, trabalhadores e agora consumidores.
Para aprender mais acerca destes processos regionais, históricos,
teóricos e contemporâneos, em Março de 2006 o Centro para a
Sociedade Civil abriu projectos de investigação temática
sobre 'Justiça económica'. Lançámos este tema com
a revisão de algumas das melhores tradições sul africanas,
regionais e internacionais de teoria político-económica e
análise contemporânea. Nosso foco foi sobre
interacções mercadonão-mercado e novas formas de
acumulação primitiva.
Além da Fundação Rosa Luxemburgo, fomos apoiados neste
esforço por parceiros financeiros e intelectuais também
comprometidos com tais questões, incluindo o SA-Netherlands Programme
for Alternative Research in Development, Harold Wolpe Memorial Trust, Open
Society Initiative of Southern Africa, Research Council of Norway, SA National
Research Foundation e duas importantes publicações:
Capitalism Nature Socialism
e
Review of African Political Economy.
A fim de contextualizar, ideias acerca de uma suposta 'economia dual' na
África do Sul (e na verdade na região e no mundo) estão
agora a ser debatidas aos mais altos níveis políticos. O
princípio de 2006 apresentou um momento oportuno para discutir se
mercados formais e economia informal, bem como outros aspectos da sociedade e
da natureza, estão realmente tão divorciados quanto é
frequentemente assumido. Antes de morrerem, vários
activistas-académicos Harold Wolpe na África do Sul (1995),
Guy Mhone (2005) e José Negrão (2005) na África Austral
e Rosa Luxemburgo na Europa (1919) desenvolveram argumentos consistentes
acerca dos modos como os mercados exploram sistematicamente as oportunidade
'não-mercado', em outros modos de produção, na sociedade
(especialmente o trabalho não pago de mulheres) e no ambiente natural.
Nas três escalas de análise, avaliámos seus
estórias, revimos contribuições passadas e
contemporâneas às suas heranças, e considerámos se
cenários político-económicos actuais e futuros exigem
novas percepções.
Cientistas sociais interdisciplinares debateram problemas intelectuais
associados à exploração pelo mercado de esferas
não-mercado (sociedade e natureza) de 28 de Fevereiro a 2 de
Março, e de 2 a 4 de Março activistas de KwaZulu-Natal ajudaram
a ir da análise à prática, com discussões abertas e
debates de estratégia no quadro do Seminário de
Educação Política Rosa Luxemburgo. O número de
Março de 2007 da
Review of African Political Economy
inclui documentos daqueles dias dedicados a Wolpe, Mhone e Negrão, bem
como os documentos principais apresentados em homenagem às ideias de
Luxemburgo, e algumas das percepções estratégicas chave.
Começámos com a própria análise de Luxemburgo da
África do Sul e África Austral, em vários excertos
reveladores de
A acumulação de capital.
Mas ao discutir a
Acumulação
em perspectiva histórica, Arndt Hopfmann sustenta que não
só encontramos erros conceptuais como também podemos reconhecer o
fulgor das percepções de Luxemburgo para a sua
aplicação a problemas contemporâneos. Ao situar
historicamente o seu trabalho em KwaZulu-Natal, Jeff Guy nos reintroduz no
'modo pré-capitalista de produção' e seu interface com a
expansão capitalista na viragem do século XX. E para actualizar
o argumento teórico, Ahmed Veriava considera a acumulação
primitiva através do exame das duas direcções em que
podemos prosseguir o tema principal de Luxembrugo, aquele de David Harvey e de
Massimo De Angelis. Com sua noção de 'nossos do lado de fora'
('our outsides')
(isto é, aqueles terrenos de luta social que contrariam a
mercantilização), De Angelis acrescenta um importante lembrete
acerca do poder de agência.
Mas quando avaliamos a natureza do imperialismo contemporâneo, têm
de ser encontrada evidências firmes. No espírito de Luxemburgo,
Elmar Altvater investiga os muitos caminhos pelos quais emergiu um novo
imperialismo petro-fundamentado, bem como uma variedade de outras novas formas
de mercadoria que Luxemburgo pode ter previsto. Alguns de tais aspectos do
imperialismo é confrontar países uns com outros, uma perspectiva
que Patrick Bond argumenta já estar em actuação com o
modelo de acumulação da África do Sul a estender-se pela
região. Tal modelo de acumulação actualmente é
disfarçado pela retórica de estado acerca de como uma 'segunda
economia' pode ser extraída da primeira, como se fossem separadas. As
interconexões e subdesenvolvimento sistémico da massa de
trabalhadores informais são revelados por Caroline Skinner e Imraan
Valodia. Da mesma forma, o aprofundamento da forma mercadoria em
relação aos serviços do estado é disfarçado
por uma nova retórica de servir 'clientes', como mostra Greg Ruiters.
Parte do disfarce é também a desracialização dos
postos de comando, um processo desigual, para-arranca-para, criticado por
Leonard Gentle.
Que resistência a estes aspectos da acumulação regional de
capital? Em parte a recordar-nos das vozes proféticas, radicais,
pró-pobres, de tradição religiosa, Ulrich Duchrow
lança um ataque retardado aos próprios fundamentos da
acumulação de capital, a forma propriedade. Ntwala Mwilima
apresenta desafios ao trabalho regional quanto aos desafios ideológicos
colocados pelo investimento directo estrangeiro. A necessidade da unidade
entre o povo oprimido, especialmente os mais pobres dos pobres, é
enfatizada por S'Bu Zikode. No caso específico do combate à
mercantilização da educação, Saim Vally
traça argumentos estratégicos e revela práticas
anti-capitalistas. Finalmente, o relacionamento mais geral entre locais,
identidades, protestos e lutas de classes são dissecados por Trevor
Ngwane, que finalmente contrapõe uma palavra como antídoto
à acumulação de capital: socialismo.
Esta colecção de textos, apresentados no nosso Colóquio
sobre Economia, Sociedade e Natureza, é a primeira de muitas tentativas
para reviver as tradições de economia política que
tornaram a África do Sul e Austral um dos mais importantes
laboratórios de análise e prática anti-capitalista. Mas
se as compreensões académicas ocorrem tipicamente seis meses ou
mais após muitas de tais lutas, continuaremos a oferecer material
interessante somente se, no Centro para a Sociedade Civil e na
Fundação Rosa Luxemburgo, ouvirmos, bastante explicitamente,
tão intensamente quanto possível, a intelligentsia orgânica
nos novos movimentos por justiça sócio-económica e
ambiental.
Este livro, na sua versão integral, pode ser descarregado em
http://www.nu.ac.za/ccs/files/RL%20Capital-africa.pdf
(224 p., 969 kB). Tradução de JF.
Este prefácio e introdução encontram-se em
http://resistir.info/
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