Brasil apóia a farsa do Haiti
por José Arbex Jr.
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Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Castro Alves
[1]
, in
Navio Negreiro.
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A aliança estratégica de Lula com Bush passou dos limites desta
vez
O Brasil enviará 1.100 militares ao Haiti. A tropa vai liderar a
força internacional de paz (integrada por contingentes estadunidenses,
franceses, canadenses e dos países do Caribe) que vai atuar no Haiti, na
chamada "segunda fase da ajuda multinacional", aprovada pelo Conselho
de Segurança das Nações Unidas. "O presidente Lula
disse que o Brasil fica honrado com essa indicação e que
está à disposição das Nações Unidas
tanto para o envio de tropas como para o comando", disse o porta-voz da
Presidência, André Singer, quinta-feira, dia 4 de março.
Qual o significado do papel que o Brasil é levado a assumir, do ponto de
vista de sua estratégia de política externa? Para responder,
é necessário identificar os interesses de outros países
sobre a região, em particular o jogo dos Estados Unidos.
Não por acaso, a revolta no Haiti eclode agora, quando Washington
aumenta as pressões sobre a Venezuela e multiplica as ameaças de
invasão de Cuba. O Haiti ocupa um lugar central no mapa
geopolítico do Caribe: é o cenário ideal para uma base
militar permanente dos Estados Unidos. Nem é preciso teorizar muito
sobre o asunto. Basta olhar o mapa.
Além disso, a localização do Haiti permite o controle mais
eficaz do narcotráfico. Como observa o economista canadense
Michel Chossudovsky
, desde que o Euro tornou-se uma moeda de referência
internacional, uma boa parte dos narcodólares tornou-se narcoeuros,
assim contribuindo para enfraquecer a hegemonia mundial da moeda estadunidense.
A criação de uma eventual "narcodemocracia" no Haiti,
sustentada pela Casa Branca, garantiria aos barões de Wall Street o
controle do "corredor da cocaína" produzida na Colômbia
e vizinhos.
Claro que o povo do Haiti tem suas razões para revoltar-se: fome,
miséria, brutalidade policial. O Departamento de Estado de George Bush
soube aproveitar-se do repúdio generalizado a Jean-Bertrand Aristide,
para patrocinar um golpe de Estado, enviar os seus soldados ao país e
garantir a posse de um novo governo, mais eficaz e útil aos
propósitos da Casa Branca.
Nesse quadro geral, o Brasil é chamado a liderar a "força
multinacional de paz". Guardadas as devidas diferenças, e feitas
todas as ressalvas, o Brasil sentiu-se "honrado" por fazer parte da
grande farsa, tanto quanto a Polônia, ao aceitar liderar uma parte das
"forças de paz" que ocupam o Iraque, como reconhecimento pelo
apoio sem hesitação que o país deu à invasão
de Bagdá (os outros dois "líderes" são os
Estados Unidos e a Grã-Bretanha). Os diplomatas do Itamaraty não
podem alegar "desconhecimento" dos óbvios objetivos
estratégicos dos Estados Unidos, nem da participação da
CIA na articulação do golpe que depôs Aristide. Caso o
façam, que peçam demissão por incompetência.
Por quê, então, o Brasil aceitou um papel tão infame? A
resposta está nos objetivos estratégicos da política
externa de Lula, que vê o Brasil como uma potência regional, com
vocação para liderar um bloco do Terceiro Mundo, no quadro da
economia globalizada. O norte dessa estratégia, o eixo que dá
coerência ao conjunto das ações diplomáticas do
Brasil, é a obtenção de um assento permanente no Conselho
de Segurança das Nações Unidas (no caso da Polônia,
para manter a nossa analogia, a cartada é outra: Varsóvia procura
mostrar-se um parceiro "confiável" de Washington, no quadro da
disputa entre Estados Unidos e Alemanha pelo controle da Europa central, cuja
vocação "natural" é ser zona do euro).
Assim, em nome de supostos "interesses de Estado", o governo
brasileiro aceita coonestar um golpe de Estado promovido pela CIA. E mais: finge
acreditar, de forma totalmente ridícula, que de fato vai
"liderar" uma força multinacional... Impossível, nesse
ponto, não parafrasear o nosso grande poeta Castro Alves,
em seu "Navio Negreiro": "Existe um governo que a bandeira
empresta/Para cobrir tanta infâmia e cobardia"...
17/05/2004
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[1]
Castro Alves (1847-1871), poeta brasileiro anti-escravocrata. Clique em
Navio Negreiro
para ler o texto integral deste poema.
Este artigo encontra-se em
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