Cartas do Haiti:
relatos da situação num país em luta pela sua soberania
1° Dia
"Estou em casa"
Na quarta-feira, dia 9, Eduardo Almeida desembarca no Haiti. Nesta carta, ele
envia as suas primeiras impressões, mostrando uma situação
distinta da que encontrou em 2007, na primeira viagem. Desta vez, o
repúdio às tropas da ONU é evidente, e pode ser visto nas
pichações nos muros.
Um velho avião a hélice desce no aeroporto de Porto
Príncipe. Estou de volta ao Haiti, dois anos depois da primeira vez que
estive aqui, com uma delegação da Conlutas.
Como negro, tenho um enorme orgulho da história haitiana. Aqui se deu a
única revolução vitoriosa dos escravos de toda a
história, que derrotou os exércitos de todas as potências
coloniais da época, incluindo a Espanha, Inglaterra e França. O
aeroporto se chama Toussaint Loverture, o grande líder da
revolução, que derrotou as tropas de Napoleão.
No caminho do aeroporto para a cidade, o choque com a realidade atual: a
miséria nas ruas e inúmeros quartéis da Minustah, a
força de ocupação da ONU. O Haiti hoje é de novo
uma colônia, vítima de uma ocupação militar,
dirigida pelo exército brasileiro.
Fim de tarde em Porto Príncipe. Uma multidão caminha pelas
calçadas invadindo as ruas. Homens apressados, mulheres com trouxas de
roupas na cabeça. O povo negro vai se confundindo com a noite na cidade
sem iluminação nas ruas.
Nesses dois anos muita coisa mudou. Naquela época, as tropas da Minustah
eram vistas com simpatia. Vieram para cá mandadas por Bush em uma
intervenção militar, mas capitalizavam as esperanças com a
intervenção "humanitária" e a identidade
cultural do povo haitiano com o brasileiro.
Converso com os companheiros de Batay Ouvriyé, uma
organização ligada a todas as lutas sindicais e populares do
país. Hoje o sentimento da população é de
ódio em relação à ocupação militar.
Não houve nenhuma melhora social. Mas as tropas reprimem duramente as
mobilizações. Entram nas favelas de Porto Príncipe
atirando indiscriminadamente contra todos.
A polícia carioca entra nos morros atirando contra os
"suspeitos", ou seja, todos os jovens negros. As tropas brasileiras
no Haiti como todas da Minustah fazem o mesmo nos bairros pobres.
E aqui todos são negros. Existem muitas denúncias de
espancamentos e de estupros das mulheres haitianas. Pichações
"Fora a minustah" surgem nos muros da cidade e são rapidamente
apagadas.
O governo Lula está conseguindo impor um governo neoliberal no Brasil,
enganando os trabalhadores, que pensam que têm um "aliado" no
governo. A enganação da "missão
humanitária" no Haiti é ainda maior. Os operários e a
juventude brasileira precisam saber o que se passa no Haiti. Porque aqui, a
farsa acabou.
Ando pelas ruas em Petión-ville, um bairro pobre daqui. As
calçadas das ruas agora são ocupadas por vendedores ambulantes,
como os camelôs do Brasil, que vendem de tudo. Nas ruas escuras,
lanternas iluminam as mercadorias. Os rostos negros negociam, conversam, riem,
falam alto.
O povo haitiano está rompendo com as tropas de ocupação. E
eu me sinto cada vez mais em casa.
2° Dia
A classe operária haitiana começa a se mover
No segundo dia no país, Eduardo conversa com operários da
capital, Porto Princípe, sobre os protestos de rua em defesa do aumento
do salário mínimo, em agosto. Apesar da forte repressão e
das demissões que se seguiram, percebe o orgulho no rosto de cada um.
Faz calor por aqui, mesmo no início do inverno como agora. As pessoas
nas ruas usam camisetas, blusas e camisas de mangas curtas, seja de dia ou de
noite. Não existe grande variação de temperatura entre o
verão (33 graus) e o inverno (27). O povo haitiano não tem roupas
diferentes para uma estação ou outra.
Estou em Belair, um dos bairros pobres de Porto Príncipe. Cinco
operários e duas operárias da organização
Batay Ouvriyé
(Batalha Operária) me descrevem a grande greve operária de
agosto. Foram golpeados pela polícia ou pela Minustah, alguns foram
presos, todos estão ameaçados de demissão ou já
foram demitidos. Mas falam com orgulho da greve. E têm razão.
Primeiro contaram como o salário mínimo no Haiti era no primeiro
semestre deste ano de 75 gourdes por dia, mais ou menos R$ 70 mensais
[26/mês], quase sete vezes menor que o brasileiro. É bom
lembrar que os preços das mercadorias aqui são semelhantes aos do
Brasil.
As grandes empresas têxteis norte-americanas produzem aqui a um
preço baratíssimo (salários menores que os chineses), com
custos de transporte muito pequenos (o Haiti é praticamente na costa dos
EUA). Empresas como a Nike, Wrangler e Levis confeccionam seus produtos no
Haiti. Neste momento já existem 25 mil operários têxteis, e
os planos de construir cinco novas zonas francas podem elevar este
número em seis anos para 400 ou 500 mil. Para discutir este plano,
esteve no Haiti recentemente o ex-presidente dos EUA Bill Clinton, com 150
empresários. Do Brasil esteve também uma delegação
de doze empresários, incluindo um representante de José Alencar,
vice-presidente do Brasil e dono da Coteminas, uma grande empresa têxtil.
Enquanto os operários falam, lembro que um dos motivos centrais para que
a revolução haitiana de 1804 fosse vitoriosa foi que sua base
social era de um tipo diferente de escravos. O Haiti era a mais rica das
colônias, e produzia açúcar para o mercado mundial em
grandes plantações. Os escravos eram concentrados em grandes
fazendas, se aproximando à condição do proletariado
agrícola. Isso lhes deu uma consciência coletiva, uma forma de
agir e combater que foi decisiva para a vitória. Agora, o imperialismo
está repetindo a dose, com a indústria têxtil. Pode acabar
tendo a mesma resposta.
O motivo do orgulho dos operários de Batay Ouvriyé é que
neste ano, a capital, Porto Príncipe, viveu uma grande luta pela
elevação do salário mínimo. Um exercício em
grande escala da moderna classe operária haitiana.
A reivindicação era de 200 gourdes por dia, algo próximo a
R$ 190 por mês [71/mês]. As mobilizações
começaram em maio, com Batay Ouvriyé organizando junto com outros
grupos protestos junto ao parlamento, que depois de muita pressão, votou
em julho pelo reajuste. Mas o presidente Préval, atendendo às
pressões das multinacionais, vetou o reajuste para a indústria
têxtil, só aceitando os 200 gourdes para os demais ramos da
produção. Para os têxteis, permitiu somente 125 gourdes,
mais ou menos R$ 120 por mês.
As mobilizações se radicalizaram, agora contra Préval. As
fábricas têxteis da zona industrial pararam todas, se mantendo em
greve por duas semanas. A patronal deixou de pagar os salários (que
são pagos aqui todas as semanas), para estrangular a
mobilização pela fome. Houve quebra de escritórios e mesas
dos gerentes.
Dos 25 mil em greve, dez a quinze mil operários faziam
manifestações diárias que percorriam a cidade, saindo da
zona industrial e indo até o parlamento ou até o palácio
presidencial. Pelas ruas, eles gritavam "Abaixo Préval",
"Préval, capacho dos patrões", "Abaixo a
Minustah". Como é tradição aqui, levavam galhos de
árvores nas mãos que sacudiam com força enquanto
marchavam. No caminho, passavam pelos bairros pobres da capital. A
população vinha lhes dar água ou simplesmente aplaudir.
As manifestações tinham de enfrentar a repressão da
polícia e da Minustah. Muitas vezes se dispersavam e reagrupavam logo
depois. Uma vez viraram um carro da ONU, obrigando seus ocupantes a gritar
"200 gourdes". Outra vez puseram para fugir uma brigada da Minustah
em frente ao Parlamento.
A burguesia e Preval atacaram Batay Ouvriyé como responsável pela
greve. Um dirigente da burguesia ameaçou processá-los pelas
depredações dentro das fábricas. Nos bairros e nas
fábricas os operários associavam Batay à luta pelos 200
gourdes.
Uma das operária me fala: "Foi a primeira vez na história
daqui que a classe operária de uma categoria tão importante se
moveu em conjunto, e com tanta força". Por duas semanas seguidas, a
cidade foi sacudida por mobilizações cada vez mais radicalizadas.
O apoio dos bairros pobres fechou o circuito. Na verdade uma fortíssima
mobilização operária com apoio majoritário popular
levou a uma crise política ao governo, ao parlamento e à
ocupação militar.
Foi marcada então uma mobilização para 17 de agosto, em
que pela primeira vez os bairros pobres não só apoiariam as
passeatas, mas se somariam à mobilização. As
organizações populares de Cité Soleil (a maior favela do
Haiti), Belair, Solino se comprometeram a participar. Esse ato poderia parar
toda a cidade, e dar um novo salto na mobilização.
Aí entrou em cena com força a Minustah, comandada pelas tropas
brasileiras. A cidade foi toda ocupada militarmente, em particular as ruas de
acesso à zona industrial e aos bairros pobres mais importantes. Foram
proibidas todas as mobilizações. Durante uma semana, as
fábricas ficaram paradas e a cidade semi-paralisada pela
ocupação militar e a repressão. Muitos ativistas ficaram
quinze a trinta dias presos.
Os operários gritavam em creole: "Si se pa t pou Minista nou ta gen
jete Préval" (se não fosse pela Minustah,
derubaríamos Préval).
No dia 19, o congresso voltou atrás e votou na imposição
de Préval. Dizem que as empresas deram milhões de dólares
aos parlamentares.
As fábricas voltaram a funcionar uma semana depois, com policiais
armados em seu interior, que impediam qualquer ação e
resistência. Cansados, sem salários e frente a uma
repressão brutal, os operários voltaram ao trabalho. Dois meses
depois centenas de ativistas que estiveram à frente da luta foram
demitidos das fábricas.
Transmito aos operários brasileiros, o recado de seus camaradas de
classe haitianos: "A Minustah está aqui para nos fazer aceitar o
inaceitável". O verdadeiro papel das tropas do governo Lula no
Haiti é este: reprimir uma mobilização justa que
reivindicava receber menos da metade do salário mínimo dos
operários brasileiros. Não existe nada de humanitário na
missão das tropas. Estão defendendo a exploração
brutal dos haitianos, a serviço das multinacionais e da burguesia
brasileira.
A classe operária haitiana foi à luta e foi derrotada. Mas tirou
dessa mobilização conclusões muito importantes sobre o
papel de Préval e da Minustah. Pixações contra o governo e
as tropas inundaram os muros do país. Foi apenas o primeiro
exercício como classe de uma longa batalha. O Haiti rebelde
começa a tomar um rosto proletário.
3° Dia
Clinton, Soros... e o Haiti
Eduardo conta sobre o trabalho nas maquiladoras e os interesses
norte-americanos no país. Por trás da visita de Clinton e das
declarações dos Estados Unidos, o plano para aproveitar ainda
mais a mão-de-obra miserável, para produzir as calças
jeans famosas para os EUA.
O carro anda lentamente pelas ruas de Porto Príncipe. Estou voltando da
entrevista com operários dirigentes da greve de agosto. Ainda soam em
meus ouvidos suas palavras em creole, seus gestos decididos.
No caminho, Didier Dominique, de Batay Ouvriyé me leva até a Zona
Industrial onde tudo começou. Muros altos separam uma área enorme
das ruas. Ali está instalada a "indústria da agulha",
como eles chamam, porque inclui a têxtil propriamente dita, além
da confecção de bolas de futebol e tênis. É hora da
saída dos trabalhadores e uma multidão invade as calçadas,
se amontoam nos tap-taps, caminhonetes que fazem o transporte urbano aqui.
Logo depois, aparece outra área enorme, também cercada de muros
altos, em que será construída uma zona franca. Uma placa enorme
diz "Aqui está o futuro do país". Quem financia este
projeto da zona franca é um grande expoente da burguesia mundial, nada
menos que George Soros, o mega especulador.
O gerenciador de todo este plano de investimento na indústria é
Bill Clinton. O ex- presidente dos EUA foi nomeado "enviado especial da
ONU" para o Haiti. Já esteve no país por duas vezes
só em 2009. Na verdade, ele é o posto avançado de uma
operação econômica de importância para o imperialismo.
A lei Hope, votada em 2005 por três anos, torna as indústrias
têxteis estabelecidas no Haiti livres de todos os impostos, tanto para a
produção nesse país (inclusive do pagamento do terreno,
luz e água), como para exportação para os EUA. A lei Hope
2, agora por dez anos, foi sancionada por Obama, que tem Hilary Clinton como
secretária de Estado.
Não existe "filantropia" para o imperialismo, menos ainda para
quadros do peso de George Soros e Bill Clinton. Existe uma
operação de importância para o imperialismo com a
indústria têxtil no Haiti, com os menores salários do
continente e bem próximo dos EUA.
Lula foi subserviente a Bush, quando ele pediu que o Brasil chefiasse as tropas
de ocupação no Haiti. Agora é um instrumento de Clinton,
que hoje é o chefão no Haiti.
Vejo os operários saindo do trabalho na zona industrial. Lembro das
palavras dos grevistas que me deram a entrevista contra a Minustah.
4° Dia
"Nas ruas de Le Cap"
Eduardo visita a segunda cidade do Haiti. Em uma região agrícola,
apenas com a luz das estrelas, ele recorda a história do país,
que foi palco da primeira revolução negra das Américas. E
lembra do Rio de Janeiro, sua cidade natal, onde o povo negro está sendo
morto nas favelas.
Passo pelas ruas estreitas de um bairro pobre em Le Cap, a segunda cidade do
Haiti. Acabei de sair de uma sede de Batay Ouvryé (Batalha
Operária) onde conversei com operários agrícolas da
região. Aqui não há grandes indústrias. As grandes
fazendas de café e laranja são as dominantes, e Batay
Ouvryié dirige praticamente todos os sindicatos locais.
O céu limpo diminui a escuridão completa na favela sem
iluminação. As estrelas conhecidas reforçam a
sensação de familiaridade. Ando tranquilo, como não faria
como estranho em uma favela nos morros de minha cidade natal, o Rio de Janeiro.
A violência urbana no Haiti é incomparavelmente menor que no
Brasil. É um povo simples, alegre, dócil, que me faz lembrar a
frase de Trotsky: "As revoluções são
impossíveis, até que se tornam inevitáveis".
Este povo se tornou o primeiro país livre do domínio colonial
pela revolução de 1804 e derrubou uma das ditaduras mais
sanguinárias da história (Duvalier).
Isso vale ser recordado nos dias de hoje. O imperialismo desenvolve uma
ofensiva recolonizadora fortíssima, com todo o processo da
globalização e os planos neocoloniais. Existem distintos
estágios dessa recolonização, que incluem o controle de
ramos das economias de nossos países, a privatização das
estatais, abertura das fronteiras, etc. Em alguns países a
situação é ainda mais grave, com a economia dolarizada
(como no Equador) e outros já com tratados de livre comércio
(como o Nafta do México, os TLCs da América Central).
Mas o Haiti já é diferente, voltou a ser uma colônia. O
país tem um "acordo de livre comércio" com os EUA,
através da Lei Hope, com toda a economia a serviço das
multinacionais. O Haiti não tem forças armadas,
substituídas pela Minustah, comandadas por tropas brasileiras. Tem um
governo fantoche, manipulado grosseiramente pela embaixada ianque. Como se
não bastasse, ainda tem sua costa e seu espaço aéreo
entregues oficialmente ao controle da DEA (departamento anti-narcóticos
dos EUA).
Não existe nada que justifique definir o Haiti hoje de forma distinta. O
fato de existirem eleições não muda nada. Também
existiam na Índia, quando ainda era colônia inglesa.
Como um país que fez uma revolução fantástica como
o Haiti, chegou a essa situação? Depois de 1804, o país
estava devastado pela guerra e teve de enfrentar o bloqueio comercial
imperialista por 60 anos. Além disso, o governo Boyer reconheceu uma
dívida à França, como pagamento pelas propriedades dos
colonos pela independência. Esse foi, talvez, a primeira grande
penalização de um país pela dívida externa: o
país teve de dedicar dois terços de seu orçamento por mais
de 40 anos para pagar uma dívida brutal. Com isso, deixou de ser
independente para retornar a um status semi-colonial, e uma miséria
permanente. Na verdade, o imperialismo nunca perdoou a ousadia da
revolução e fez o país pagar duramente por esse
"pecado".
O Haiti foi ocupado pelos EUA entre 1915 e 34, nas primeiras
manifestações do novo imperialismo dominante. Toda sua
história depois seja nas muitas ditaduras ou nos poucos governos
eleitos, incluiu sempre a pressão e o controle do vizinho poderoso.
Até que em fevereiro de 2004, o imperialismo invadiu de novo o
país. O presidente eleito (Aristides) foi preso em sua própria
casa por tropas francesas e norte-americanas e deportado. Depois veio a
Minustah, com a invasão legalizada pela ONU.
É uma ironia da história que o país que viveu a primeira
revolução anti-colonial no século XIX, exatamente 200 anos
depois se transforme na primeira colônia do século XXI. Outra
ironia é que o exército que garante pela força a
submissão colonial do Haiti seja comandado e composto por vários
dos governos "progressistas" da América Latina como Lula, Evo
Morales, Lugo, Kirchner, etc.
Enquanto ando pelas ruas de Le Cap, lembro das palavras de um operário
de uma fazenda de café: "Aqui existe um ódio enorme contra a
Minustah, mas ainda é diferente por serem brasileiros, argentinos,
paraguaios. Se fossem norte-americanos já teria explodido tudo".
5° Dia
"Sobre misérias e misérias"
Com 70% de taxa de desemprego, o Haiti tem um salário até quatro
vezes menor do que o do Brasil, na indústria textil, e quase nenhum
direito trabalhista. Eduardo escreve sobre a "experiência" que
o imperialismo está fazendo no país, com apoio brasileiro, e a
comparação que poderá ser feita pelos patrões. As
ameaças de levar a produção para a China, hoje tão
comuns nos EUA, serão modificadas lá e aqui pelo
país caribenho.
Ontem fui jantar num restaurante modesto de Le Cap. Uma televisão
ligada, prendendo a atenção de todo mundo. Passava uma novela
mexicana, daqueles dramalhões, dublada em francês. Os atores eram
todos brancos, num país negro como o Haiti. Era demais.
Mas os haitianos me dizem que, assim mesmo, só não faz mais
sucesso porque aqui não existem televisores. A TV no Brasil é um
eletrodoméstico quase obrigatório mesmo nas casas mais humildes.
Aqui é raríssimo. A miséria haitiana é de outra
qualidade da conhecida pelos brasileiros.
O Brasil é um país em que existe muita pobreza e fome. O
desemprego real atinge quase 20% nas grandes cidades, o emprego informal chega
a 50% dos trabalhadores. Os salários são baixíssimos. Isso
é utilizado pelas multinacionais como uma base para a
transferência de fábricas dos países imperialistas para o
Brasil. Agora, por exemplo, em plena crise das empresas
automobilísticas, a GM vai investir no país cinco mil
milhões de reais, a Ford dois mil milhões, a Volks seis mil
milhões. Esse é um fator de pressão da burguesia sempre
presente sobre os operários norte-americanos: "se vocês
não aceitarem reduzir seus salários, vamos transferir a
fábrica para o Brasil". Ou, o que é mais comum "para a
China".
Mas no Haiti existe outro tipo de miséria. Já existem elementos
claros de barbárie. O desemprego atinge em Porto Príncipe entre
70-80% da população. O salário mínimo da
indústria têxtil (o setor de ponta) é quase quatro vezes
menor que o brasileiro. O analfabetismo atinge 90% das pessoas. Ler e escrever
não são necessários para a vida comum. A
comunicação entre as pessoas já parte da realidade de que
ninguém sabe ler. Os jornais não existem para o povo, se
restringem aos hotéis e alguns pontos turísticos.
Não existe água e esgoto nas casas (a não ser nas casas da
burguesia, hotéis e no comércio). Em algumas casas tem energia
elétrica, que acaba todos os dias sem nenhum aviso. A maior parte dos
habitantes não existe oficialmente, não tem nenhum documento. As
pessoas retiram água dos poços artesianos, carregam para casa em
baldes. Usam carvão para cozinhar. Quase não existe alcoolismo,
mas por uma razão surpreendente: os haitianos não têm
dinheiro nem para comprar uma cerveja. As pessoas andam longos períodos
para não pegar um transporte, mesmo os baratíssimos e
péssimos daqui.
O imperialismo está fazendo uma experiência. Está
instalando aqui uma indústria de relativo baixo nível
tecnológico, com um grau de exploração que se aproxima da
barbárie. Um gigantesco exército industrial de reserva assegura a
mão-de-obra baratíssima e a pressão sobre os que
trabalham, para que não reivindiquem reajustes.
Nas fábricas existe uma organização do trabalho moderna,
os módulos. Grupos de trabalhadores fazem, por exemplo, uma camisa, com
cada um fazendo uma parte. Como ganham por tarefa, se impõe a disciplina
do patrão pelos próprios trabalhadores, que cobram qualquer um
que se atrase. Esse é o capitalismo moderno, com claros elementos de
barbárie.
Novas zonas francas já estão planejadas. Existe uma grande
área já reservada ao lado de Citè Soleil, para que os
trabalhadores possam ir a pé para o trabalho. Se conseguirem implantar
esse plano, terão uma nova referência de taxa de lucros.
Poderão ameaçar os operários brasileiros, argentinos,
paraguaios, bolivianos com "posso levar a fábrica para o
Haiti".
Lula está cometendo um duplo crime aqui. Primeiro viola a soberania de
um povo, com uma ocupação militar a serviço de
Bush-Obama-Clinton. Em segundo lugar, participa da preparação de
um ataque direto contra o nível de vida proletariado brasileiro.
A frase de Lenin "Não é livre um povo que oprime outro
povo" ganha aqui um sentido duro e concreto.
6° Dia
"As laranjas amargas da Cointreau"
No sexto dia, Eduardo Almeida conversa com um grupo de 50 trabalhadores
camponeses. Por seis meses, trabalham para a multinacional que produz o licor
Cointreau e, nos outros meses, cultivam a terra como camponeses, tendo de, como
servos, dar parte de sua produção. Ele escuta sobre as lutas que
fizeram, as denúncias de prisões. Os trabalhadores tomam
consciência de sua força e compartilham uma lição
simples, mas a mais importante de todas.
San Rafael, duas horas de carro de Le Cap. Estamos em uma das passagens para a
planície central do Haiti, uma zona usada pelos escravos na
revolução como zona de refúgio. Hoje, San Rafael é
centro de toda uma área de terras ocupadas por camponeses já
há mais de vinte anos, com inúmeras lutas e prisões.
Reúnem 50 mil pessoas, em cinco comunidades, sob a direção
de Batay Ouvriyé (Batalha Operária). Nesse momento um de seus
líderes, Elio Pierre, está preso há seis meses.
Sou recebido pela coordenação das cinco comunidades. A
reunião é debaixo de uma grande árvore. Sombra garantida
em um dia quente. Era para ter umas 20 pessoas, mas aos poucos vão se
juntando os ativistas que estavam por ali. No final, estão sentados
comigo quase 50 camponeses.
O primeiro fala com voz mansa como a luta pela terra começou junto com a
revolução. Toussaint Loverture foi o general da
independência, mas era também o representante das novas classes
dominantes negras. A referência histórica de muitos por aqui era
Moisi, um dos generais da libertação, o dirigente dos cimarrons ,
os quilombolas daqui, escravos fugidos que formavam comunas no interior. Moisi
terminou sendo morto pelo próprio Toussaint, mas a luta seguiu desde
então, até os dias de hoje.
Outro conta a luta deles em Guacimal em 2002. A Cointreau, multinacional
francesa, planta aqui as laranjas amargas com que faz um de seus licores mais
famosos. Os trabalhadores são operários por seis meses (colhendo
as laranjas e semeando novamente), e camponeses pelos outros seis meses. Nesse
segundo período, trabalham nas mesmas terras para sua própria
subsistência. A multinacional impôs que lhe dessem a metade de sua
produção como camponeses.
Houve então uma luta duríssima, que durou vários meses,
com muitos presos. Em um dos enfrentamentos morreram dois trabalhadores,
Ipharés Guerrier e Fransilyen Eximé. A multinacional só
recuou quando os mesmos camponeses, já transformados em operários
se recusaram a colher a laranja da safra seguinte. A vitória de Guacimal
ajudou a organizar as outras ocupações, e até hoje os
mortos são reverenciados.
Eles contam como os latifundiários estão se organizando de novo
para tentar tomar suas terras de volta, agora ajudados pela Minustah. Existe um
tom de revolta ancestral, secular nessas vozes. Quando um fala, outro
apóia, terminam quase num coro. Deram sua vida pelas terras que ocupam,
e vão seguir dando. Senti de perto o pulso da história, o
hálito da revolução nesses camponeses simples, sentados em
volta de uma velha árvore.
Me escutam atentamente quando lhes falo como Lula está ampliando o
agronegócio no Brasil, e não faz nada pela reforma
agrária. Como engana os trabalhadores brasileiros com o papel
"humanitário" da Minustah. Ficaram alegres quando lhes propus
uma luta comum contra a Minustah e o apoio à luta pela
libertação de Elio Pierre.
No final, uma cena bem semelhante às do MST no Brasil. Vários
deles trouxeram uma grande pedra para o meio da roda. Um de seus líderes
pediu que um dos presentes tentasse erguer a pedra. Vários tentaram sem
conseguir, por seu peso enorme. Sugeriu então que dois tentassem.
Conseguiram, com muito esforço. Depois, quatro pessoas eu
inclusive levantaram a pedra com facilidade.
O coordenador falou então para mostrar como só podiam ser
vitoriosos se estivessem juntos, e que mesmo a prisão de Elio Pierre
poderia ter sido evitada se a reação fosse mais forte. Não
falava à toa. Eles já tiraram da prisão na marra
vários de seus líderes. A lição serve para
trabalhadores de distintos países, como o Brasil e Haiti.
7° Dia
Não nos pararão !
Último dia de Eduardo no país, ele visita a universidade
pública, conversa com os estudantes. Leva na lembrança, as
pichações, painéis e cartazes contra a Minustah.
Entro na universidade do Haiti. É a única universidade
pública do país. Estou na Faculdade de Ciências Humanas, o
centro mais importante do movimento estudantil do país.
A faculdade está toda pichada contra a Minustah e o governo. Em um
grande painel está escrito "Não nos pararão!" em
creóle. Achei as letras estranhas e me aproximei para ver: eram feitas
com as bombas de gás lacrimogênio lançadas contras eles na
última mobilização.
Bumba é um dos ativistas. Inteligente e informado, um típico
ativista do movimento estudantil, como os brasileiros. Ele me conta como o
movimento vem desde o primeiro de maio desse ano. Eles integraram o
"comitê por um outro primeiro de maio" junto com Batay
Ouvriyé, uma Central Sindical do Funcionalismo Público e outras
organizações. Foi essa mobilização que deflagrou a
luta pelo reajuste do salário mínimo para 200 gourdes. Uma
delegação da Conlutas esteve presente nesse primeiro de maio, que
foi reprimido pela polícia.
Os estudantes seguiram em maio, junho e julho, com mobilizações
de apoio aos 200 gourdes. Faziam mobilizações que saíam
das faculdades para as ruas e logo eram reprimidos. A cada repressão,
saía uma mobilização maior.
A polícia vinha primeiro, com a Minustah logo depois, como força
maior se necessário. Dizem que essa é a nova tática. A
Minustah recompôs a polícia que estava em pedaços, para
ficar em um segundo plano da repressão. Mas muitas e muitas vezes, a
Minustah teve de enfrentar os estudantes. Mas eles estiveram em todos os
momentos da luta pelos 200 gourdes, junto com os operários até a
greve de agosto.
Já existia um conflito desde abril com os estudantes de medicina. Eles
se levantaram contra o currículo privatizante, sem nenhuma
preocupação com a medicina preventiva e saúde
pública. Depois de muitos enfrentamentos, ocuparam a faculdade, e
permaneceram aí por meses e meses. Em uma operação de
guerra, com tropas especiais, a polícia e a Minustah desocuparam o
prédio da Faculdade perto da meia noite, aproveitando os poucos
estudantes presentes. Desde então, tentam retomar as aulas, mas os
estudantes seguem em greve. Desde abril até hoje, quase nove meses de
greve, apesar da direção da universidade, do governo e da
Minustah.
O dia 18 de novembro é uma data tradicional no Haiti. Foi a
última grande batalha da independência. Os estudantes escolheram
este dia para uma manifestação contra a presença da
Minustah. Saíram da Faculdade de Direitos Humanos, a mesma em que estou
agora. A polícia já os esperava com gás
lacrimogêneo, mas não conseguiu impedir a passeata.
Eles se reagruparam e seguiram adiante. Passaram em frente à faculdade
de medicina ocupada pela polícia, tentaram reocupar, mas não
conseguiram pela repressão. Seguiram então pelas ruas,
encontraram um carro da Minustah e o viraram de rodas para cima. Depredaram
mais dois carros da Minustah e um outro do estado.
São destes enfrentamentos as bombas de gás que formam o painel na
entrada da faculdade. Nas mobilizações pelos 200 gourdes, foram
mortos um estudante e um operário pela polícia e a Minustah.
Foram cerca de 40 presos, dos quais 20 estudantes. Houve novos presos com o ato
de 18 de novembro. Os últimos foram soltos há pouco mais de uma
semana.
Betil James me recebe na Faculdade. É um dos coordenadores do movimento.
Fala sempre de maneira bem articulada e segura. Me levam para uma sala, onde
farei uma palestra. Saem para chamar os estudantes e voltam com umas 6ª
pessoas. Ali estava boa parte dos que estiveram à frente das
mobilizações e alguns dos presos.
O debate é muito interessante. Querem entender como Lula, que era
dirigente sindical mudou tanto a ponto de mandar tropas para o Haiti. Explico
que o governo brasileiro é das grandes empresas multinacionais, mas com
a cara de um líder operário. E que é isso que o estado
burguês faz, transformando burocratas em administradores do capitalismo.
Que Lula engana os trabalhadores com seu plano econômico tanto como sobre
a Minustah. Quando eu conto como o governo diz que a MInustah faz uma
"ação humanitária" no Haiti, que ajuda a
resolver os problemas de esgoto, saúde, etc, eles se riem.
Uma parte deles tem simpatias por Chavez e Castro, que não integram a
Minustah. Mas eu lhes pergunto por que esses governos seguem apoiando
Préval. Isso é um crime político, que indica o
caráter desses governos.
[1]
Um deles me pergunta se não era correto que Chavez apoiasse
Préval com o petróleo que manda, que possibilita uma economia
para o governo de 200 milhões de dólares ao ano. Eu lhe pergunto
quanto dinheiro Chavez enviou para o movimento que luta contra Préval, e
ele me reconhece que nenhum. Assim o governo haitiano pode economizar dinheiro
para usá-lo na repressão e para conseguir mais apoio.
Eles me perguntam como fazer para estreitar as relações com o
movimento estudantil e operário brasileiro. Eu lhes falo da Anel e da
Conlutas. Saiu da reunião a proposta de uma grande campanha contra a
presença da Minustah e um compromisso de defesa comum dos presos que
ocorrerem.
Desço as escadas da faculdade ao lado de Betil, Bumba e outros ativistas
estudantis. Olho pela última vez para os muros da faculdade. Meu
último dia no Haiti foi decorado com pichações,
painéis e cartazes contra a Minustah.
[1] É a opinião do autor. Resistir.info
não tem de concordar com tudo para publicar um texto e considera
que relações normais entre Estados não são
compatíveis com o financiamento dos partidos da oposição
uns dos outros,
[*] Sindicalista brasileiro, do movimento Opinião Socialista.
O original encontra-se em
http://www.conlutas.org.br/exibedocs.asp?tipodoc=Internacional&id=4439
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